IMAGEM: ANDRÉS SANDOVAL
Não deu rede
Um cinegrafista na cola da PM
Tiago Coelho | Edição 136, Janeiro 2018
“O negócio está feio na Penha”, disse Jadson Marques ao conferir no celular a notificação recebida às 8h20. O repórter cinematográfico de 51 anos arregalou os olhos quando leu as mensagens em voz alta: “Tiroteio na Vila Cruzeiro”, “Troca de tiros no Alemão”. A bordo de seu Cobalt prata, Marques trafegava pela Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, à espera da primeira pauta do dia. Então zarpou rumo ao Complexo da Penha, na Zona Norte, onde ficam as favelas mais conflagradas pela escaramuça entre traficantes e policiais.
No trajeto, uma mensagem informou que, na Vila Cruzeiro, um morador havia enterrado dois corpos no quintal de casa. “Será que tem a ver com a troca de tiros?”, perguntou-se, farejando um furo. “Se eu pegar uma operação policial, pode sair no jornal do meio-dia.” O relógio no painel do carro marcava 9 horas quando ele chegou a seu destino. “Vai dar tempo”, disse para si mesmo.
O cinegrafista queria emplacar uma matéria no SBT Rio, que vai ao ar na hora do almoço e destaca a cobertura policial. “Se a história do corpo enterrado for verdade, é capaz de ir para o jornal da noite, transmitido para todo o Brasil”, disse Marques, piscando e falando com rapidez, como faz quando está ansioso.
Marques estreou na imprensa em 1999, como fotógrafo policial do jornal O Dia. Anos depois, notou que os próprios leitores tinham passado a mandar ao jornal imagens dos problemas da cidade. Entendeu que o trabalho dos fotógrafos que cobrem o cotidiano estava se tornando obsoleto e decidiu buscar novos rumos. Viu um nicho na cobertura policial em favelas, de onde as equipes de tevê vinham se afastando desde as mortes do repórter Tim Lopes, da Globo, em 2002, e do cinegrafista Gelson Domingos, da Band, em 2011. Num cenário de crise das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, e aumento da violência urbana, assunto não lhe faltaria.
A amizade que fizera com policiais e moradores de favela ao longo dos anos lhe garantiu uma boa rede de contatos que avisam quando há tiroteios e batidas nas comunidades. Marques montou a própria empresa e passou a prestar serviço para as emissoras de tevê no Rio. Sua marca registrada é estar sempre a dois passos de distância dos policiais durante as trocas de tiros. Atualmente trabalha para o SBT, de onde vem a maior parte de sua renda. Faz receita também com anúncios em seu site e com visualizações em seu canal no YouTube, cujos vídeos às vezes passam de 2 milhões de acessos.
Tá vendo aquela rua?”, perguntou Marques na entrada da Vila Cruzeiro. “É monitorada o dia inteiro por traficantes. Se um carro estranho passar, corre o risco de levar chumbo”, continuou, enquanto vestia um colete à prova de bala. Após cumprimentar mototaxistas, foi conversar com moradores e voltou para o carro frustrado: “Agora já está tudo tranquilo.”
Marques não conseguiu nenhuma informação conclusiva sobre os corpos enterrados. “Não tenho como provar, ninguém quer botar a cara para falar.” Sem a confirmação da notícia, dificilmente conseguiria entrar em rede nacional à noite. O relógio agora marcava 10h15. “Ainda dá tempo de emplacar uma matéria no jornal do meio-dia se eu conseguir algo quente.”
O repórter recebeu então uma nova mensagem pelo WhatsApp: uma operação policial prenderia traficantes na Vila Kennedy, uma das favelas mais perigosas da cidade, na Zona Oeste. Sem hesitar, Marques pegou a avenida Brasil e rodou 25 quilômetros. Chegou antes das 11 horas, mas soube por um policial militar que a operação já havia sido concluída. O cinegrafista não arredou o pé – pressentia que algo mais aconteceria. “Aqui na Vila Kennedy sempre dá ruim.”
Um policial anunciou que fariam uma batida num desmanche de carros roubados, e Marques seguiu o comboio da PM pelas ruas da comunidade. Muitas vias estavam interditadas por grandes barras de ferro instaladas por traficantes, pichações como “Polícia vai morrer” ou “Bala na PM” cobriam os muros. “Neste exato momento estamos sendo vigiados”, sussurrou o cinegrafista enquanto olhava atento ao redor.
De repente, as viaturas pararam, os policiais desceram e entraram numa rua estreita. O repórter estacionou seu carro e saltou de câmera na mão. Acompanhou os PMs até um barracão com várias peças de carros desmontados. Estava na cola dos policiais quando saíram da viela minutos depois levando um homem algemado suspeito de ser o dono do desmanche.
Durante a operação, Marques disse ter se deparado com dois concorrentes. Segundo contou, desde que seus vídeos passaram a fazer sucesso, outros cinegrafistas autônomos começaram a fazer reportagens sobre violência urbana que são postadas na internet e vendidas para emissoras de tevê. “Mas nem todos são jornalistas de verdade”, protestou. “Eu tenho registro”, continuou, com ar irritado, mostrando o crachá no peito. “Ouço os dois lados, falo com os moradores e respeito o trabalho dos policiais, por isso tenho acesso livre em qualquer lugar. Dos outros já não posso dizer o mesmo.”
Enquanto almoçava, Marques disse que as imagens do desmanche provavelmente iriam ao ar no dia seguinte. Já não dava tempo para entrar ao meio-dia, e decerto não interessariam ao telejornal da noite, em rede nacional. “Nem houve tiro”, explicou.
De repente uma mensagem da redação do SBT voltou a animá-lo. “Tem um jovem morto na frente de uma escola em São João de Meriti”, disse, atropelando as palavras. Partiu para a terceira pauta do dia, desta vez na Baixada Fluminense, a 24 quilômetros de onde estava. “Preciso chegar antes que a Delegacia de Homicídios apareça e leve o corpo”, afirmou. “Certeza que isso dá rede.”
Em frente ao Colégio Estadual Caetano Belloni, um corpo coberto por um lençol jazia sobre o asfalto. Dois policiais guardavam a cena do crime, enquanto a vizinhança velava o cadáver. Um cortejo de mulheres negras se aproximou aos soluços. Eram parentes do jovem morto. “Não fica olhando, senão você não dorme à noite”, recomendou uma delas a uma menina.
O cinegrafista posicionou a câmera num tripé e apontou o microfone para um homem que se dispôs a dar um depoimento. O entrevistado explicou que o jovem tinha 19 anos e estava no 1º ano do ensino médio, embora não frequentasse as aulas havia meses; era usuário de maconha e andava envolvido com “gente errada” na região. Pessimista, Marques disse depois que dificilmente a reportagem sairia em rede nacional. “Ele não era estudante e nem estava uniformizado”, justificou. “Talvez passe no jornal do meio-dia amanhã.”
No dia seguinte, nenhuma das imagens captadas pelo cinegrafista na véspera foi aproveitada. Na hora do almoço, o SBT Rio exibiu uma matéria sobre a batida policial na Vila Kennedy, com imagens de um colega de Marques que havia chegado a tempo de filmar a operação.