Em Quanto mais quente melhor, Tony Curtis se traveste não só como nunca se havia visto, mas também como jamais se viu desde então. Ele acredita no papel, e nós acreditamos nele FOTO: © 1978_RICHARD C. MILLER_MPTV.NET
Não suporto Olivier
Ele não tem jogo de cintura, é autocentrado, mal-humorado, afetado – e não chega aos pés do grande Tony Curtis
David Mamet | Edição 24, Setembro 2008
Um dos maiores deleites cinematográficos dos anos 60 foi o curta de animação O Encontro entre Bambi e Godzilla. Para os que não tiveram a sorte de ver: um jovem e saltitante Bambi chega ao alto de um morro e, com graça irresistível, perscruta o horizonte. Suas orelhas ficam em pé, pressentindo o perigo. Um monstro imenso, pesando 1 bilhão de toneladas, Godzilla, surge no alto do morro e pisa em Bambi, reduzindo-o a papa. Entram os créditos.
Eis aqui a minha história de B x G.
Fui outro dia a uma festa de gente do show business, na qual uma amiga externou uma opinião particularmente escandalosa. Todos nós, criaturas de rebanho, tivemos uma reação de repulsa, mas ela deu de ombros e declarou que tinha envelhecido, e que um dos grandes prazeres dos velhos era poder dizer tudo que pensavam. Era a segunda vez em dois dias que eu ouvia a mesma coisa. Os franceses dizem jamais deux sans trois – de modo que devo presumir que o lema “envelheça e diga o que pensa” tem sido dito à minha volta já faz algum tempo, mas só percebi agora.
Por que seria? E a resposta, óbvia, dá um passo à frente e vem ocupar a primeira camada da consciência: porque fiquei velho. Tendo envelhecido, vou reivindicar as minhas prerrogativas, e exercê-las.
Não preciso mais acreditar nas asneiras que são ditas à minha volta – o que já me deixa bem mais à vontade, pois essa submissão só me valeu contratempos. E estou livre para proferir as minhas próprias bobagens. Posso dizer tudo que eu quiser, a exemplo da sibila da nossa festa.
Há limites, claro. A Constituição dos Estados Unidos, esse documento adorável, estabelece que a liberdade de expressão só vai até a defesa da derrubada violenta do governo; e as tradições das Ilhas Britânicas observam um mandamento implícito vedando qualquer crítica a Laurence Olivier.
Não agüento mais e pretendo livrar os meus ombros do peso desse fardo intolerável: não suporto as atuações de Laurence Olivier. Ele é duro, autocentrado, mal-humorado, afetado e pouco generoso. Em Khartoum, a Batalha do Nilo, todo mundo, tanto os árabes como os cristãos, refere-se ao seu personagem como o “Mahdi”, enquanto ele, com a pele coberta de chocolate, e com um nariz falso do tamanho de um condado, se autodenomina Macch-di, como se corrigisse a pronúncia de todos os seus colegas.
Em Lady Hamilton, ele passa o tempo todo sussurrando e desviando o rosto da câmera. Em Invasão de Bárbaros, quem haverá de saber que diabos ele está fazendo? Ele tem um bom momento, no papel de Hurstwood em Perdição por Amor, quando a porta do cofre de Dreiser se fecha. E não vai de todo mal nas cenas musicais de Vida de Artista. Mas, no geral, tenho fome de comida e ele só me oferece um daqueles cardápios com a foto dos pratos.
Não pretendo abalar a sua reputação de “Maior Ator do Mundo”. Ele conquistou a posição com justiça, conservou-a com honradez e contribuiu muito para o teatro britânico e mundial. Além disso, quem o viu no palco fala dele com reverência. Assim, deixarei de lado o bem que ele fez. (Um gesto insensível, pois, por muitos anos, gozei do privilégio de ter as minhas peças encenadas no National Theatre, que ele dirigia, e, inclusive, conheci a minha mulher no palco que leva o nome dele. Se você, caro leitor, por desgosto com a condição humana, não conseguir continuar lendo, aceite a contrição de “um autor compreensivo”. Mas estou ficando velho, e posso dizer o que quero. Rezo para não fazer mau uso desse dom precioso, permitindo que degenere em mera licença. Mas não rezo com muito fervor.)
Falo da arte e dos artistas que provocam não reverência, mas amor. E não consigo amar as atuações de Olivier. Quem, então, eu contrastaria com ele, perguntam-se vocês, que ultraje cometerei para aumentar ainda mais a má vontade dos leitores?
Faço uma pausa e imagino que já tenham chegado à conclusão, deduzindo que vou falar do meu amor por Tony Curtis.
Podem torcer o nariz com desprezo e lembrar o filme O Príncipe Ladrão, no qual o príncipe que ele fazia falava com um fortíssimo sotaque do Brooklyn. Mas quero sublinhar só duas das suas atuações. À menção da primeira, todos sorrirão amorosamente; e os que conhecem a segunda hão de assentir, concordando com ar ponderado: Quanto Mais Quente Melhor e O Homem que Odiava as Mulheres.
O primeiro é um trabalho cômico perfeito. Na pele do saxofonista fugitivo, e depois perdidamente apaixonado (por Marilyn Monroe), ele é irretocável. Assume a farsa com a maior seriedade possível, e só isso bastaria. Mas, então, ele precisa se vestir de mulher. Entra para uma orquestra feminina a fim de fugir da fúria de Al Capone. E se traveste não só como nunca se havia visto, mas também como jamais se viu desde então. Faz o papel de mulher a sério. Acredita no papel, e nós acreditamos nele. E então, caro leitor, e sei que você está concordando com o meu relato, ele se transforma num milionário vestido de capitão de iate, e faz a melhor imitação de Cary Grant de todos os tempos.
É um trabalho que dá vontade de abraçar. É o desempenho cômico levado à perfeição: idiossincrático, amoroso, empenhado e perfeitamente autêntico.
Depois o vemos como O Homem que Odiava as Mulheres. Ele faz o papel de Albert de Salvo, o assassino. A câmera o acompanha ao longo de vários episódios sinistros, nos quais ele persegue e mata as vítimas. Ficamos chocados com a aparente racionalidade do que o motiva. Como esses atos fazem todo sentido para o ator, o que vemos não é um monstro, mas a capacidade humana (sua e minha) para a monstruosidade.
Em seguida, De Salvo é preso. Um psiquiatra o faz reviver os crimes, dos quais, descobrimos, ele não tem consciência. Não se lembra deles. E, nas sessões de interrogatório, o vemos recuperar, pouco a pouco, a memória de crimes horrendos – e ele se desintegra diante de nossos olhos.
São grandes momentos de um ator frente às câmeras. Não louvamos e reverenciamos a “técnica perfeita” de Curtis, simplesmente nos lembramos desses momentos pela vida inteira.
O diretor Mike Nichols me disse, faz muito tempo, que não existe o que chamamos de “carreira” – e que é uma verdadeira bênção se a pessoa tiver feito cinco bons trabalhos em três décadas. Lembro ainda Tony Curtis em A Embriaguez do Sucesso, em Trapézio e no papel do presidiário acorrentado a Sidney Poitier em Acorrentados, e chegamos a cinco.
Aponto ainda Robert Duvall, Kenneth More, Bernard Miles, Ray Winstone e Vivien Merchant como os verdadeiros grandes atores – os que nunca se perguntam: “É seguro?” Pois, como disse Curtis: “Há quem ache que quanto mais quente melhor, mas eu prefiro os clássicos.”