Muitos dos poetas da guerra eram jovens da elite cultural e econômica britânica que se alistaram por fervor nacionalista; seus versos se tornaram mais amargos no decorrer do conflito ILUSTRAÇÃO: TENDING THE WOUNDED_1917_CLAUDE SHEPPERSON_1867-1921_TATE_LONDON 2014
Nas trincheiras
Uma seleção de poetas da Primeira Guerra Mundial
João Moura Jr. | Edição 93, Junho 2014
A guerra, as pessoas diziam, reavivou o interesse pela poesia”, escreve Virginia Woolf no romance Rumo ao Farol (1927). E se em outros países beligerantes, como Alemanha, França e Itália, a poesia se fez presente durante os quatro anos que durou a Grande Guerra, em nenhum deles seu papel cultural foi tão marcante quanto na Inglaterra. Jornais diários e revistas semanais publicavam sistematicamente poemas dos mais diversos autores e, como que para comprovar essa importância, uma placa comemorativa com o nome de dezesseis deles foi instalada no Poet’s Corner da Abadia de Westminster, em 1985.
Em boa medida a responsabilidade por esse surto poético é atribuída a uma sequência de cinco sonetos do jovem Rupert Brooke – o homem que enviou “tantos à morte, com emoções nobres e inspiradoras em seus corações”, segundo as palavras do organizador de uma antologia. Brooke, que combateu como subtenente da Real Divisão Naval na Bélgica, morreria na Grécia em 23 de abril de 1915, antes de o conflito completar um ano, de septicemia, provavelmente originada por uma picada de mosquito no Egito naqueles tempos pré-antibióticos.
Membro do King’s College de Cambridge e grande amigo de Edward Marsh, o secretário particular do então ministro da Marinha Winston Churchill, Brooke chegou a ser descrito por William Butler Yeats como “o jovem mais bonito da Inglaterra” (the handsomest young man in England). Já era figura bastante conhecida nos meios intelectuais e na alta sociedade inglesa quando organizou e editou, no final de 1912, junto com Marsh, a primeira antologia de poesia georgiana, Georgian Poetry, 1911–12. A publicação deste livro e de “1914”, a sequência de sonetos sobre a guerra, na revista New Numbers no início de 1915, tornaram-no popular entre o grande público.
Eddie Marsh foi o principal idealizador e o financiador da antologia, a que se seguiram mais quatro, lançadas de dois em dois anos até 1922. Bisneto de Spencer Perceval, o único primeiro-ministro inglês a ser assassinado, ele havia recebido como herança parte do que chamava de “o dinheiro do assassinato” (the murder money), a enorme soma que o Parlamento havia votado em favor dos muitos filhos do político. O título do livro, em homenagem ao novo rei, George V, também foi escolhido por ele, sob protestos de Brooke, que o considerava muito convencional.
Convencional era também boa parte dos integrantes da antologia, que teve enorme sucesso: a primeira edição esgotou-se rapidamente. Ao todo foram vendidos 13 mil exemplares. O tom, em geral, era o mesmo do mais célebre poema de Brooke, que constava dessa primeira fornada de poesia georgiana, “The Old Vicarage, Grantchester” (O velho vicariato, Grantchester), uma espécie de “Canção do exílio” mais comprida que havia sido composta durante uma estada em Berlim em maio de 1912. Seu título original era “The Sentimental Exile” (O exilado sentimental), o que diz muito do seu conteúdo, e foi trocado por sugestão de Marsh. Quando primeira-ministra, Margaret Thatcher declarou ser esse o seu poema predileto. Àquele que foi em sua curta vida um seguidor do fabianismo, versão light de socialismo propagada por Sidney e Beatrice Webb e por Bernard Shaw, talvez não agradasse saber da posição que viria a ocupar na cabeceira da Dama de Ferro.
Os georgianos eram otimistas e nacionalistas. Formalmente conservadores, adeptos da poesia rimada e metrificada, pregavam as belezas do campo, um bucolismo meio artificial de uma Inglaterra parada no tempo. Tudo isso os transformou nas vítimas preferidas dos responsáveis por outro conjunto de seletas mais ou menos contemporâneas, os imagistas, mais identificados com os modernistas. O mentor dessa nova vertente foi o americano Ezra Pound – àquela época vivendo na Inglaterra –, que em 1914 lançou Des Imagistes: An Anthology (alguns dos poemas já haviam sido divulgados antes, na revista americana Poetry). Contra a retórica e o estilo grandiloquente, os imagistas defendiam a economia e a originalidade da metáfora justa, e apregoavam o verso livre. Ou, como disse um dos autores franceses favoritos de Pound, Rémy de Gourmont: “Como preceitos positivos, querem a precisão da linguagem, a nitidez da visão, a concentração do pensamento que gostam de sintetizar numa imagem dominante.”
Ao contrário de Georgian Poetry, a seleção dos imagistas organizada por Pound foi mal recebida tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Em Londres muitos compradores devolveram seus exemplares para a Poetry Bookshop, a livraria de Harold Monro, que, por sinal, também editava os georgianos sob a chancela de sua revista, a Poetry Review.
A maioria dos poetas ingleses da guerra tem afinidade com os georgianos, e alguns participaram da antologia de Marsh, como, entre os aqui presentes, Siegfried Sassoon e Isaac Rosenberg. Edward Thomas era amigo de Rupert Brooke e resenhou elogiosamente seu único livro de poemas publicado em vida. Conheceu Eddie Marsh em 1913, antes mesmo de começar a escrever poesia (sua obra poética, composta de cerca de 150 poemas, talvez a mais original entre as produzidas pelos poetas mortos durante a guerra, foi escrita entre dezembro de 1914 e 9 de abril de 1917, quando uma granada o matou). Mas aparentemente os dois não se deram muito bem: mais tarde, diante do pleito de amigos de Thomas para que publicasse poemas dele, Marsh se manteve irredutível em sua decisão um tanto arbitrária de não editar poetas mortos.
Edward Thomas, que além de organizar antologias escrevia resenhas, livros de crítica literária e narrativas de viagem, começou a fazer poesia incentivado por seu amigo Robert Frost, outro grande poeta americano que vivia na Inglaterra e que se encantou com sua prosa, sobretudo com o belo livro de viagem In Pursuit of Spring, de 1914, que descreve uma travessia pelo sul da Inglaterra. De temperamento melancólico, Thomas é um poeta da natureza, reticente e de olhar aguçado, e alguns de seus poemas, como “A coruja” e “In memoriam (Páscoa, 1915)”, complementam os de um Wilfred Owen ao focalizar a perturbação que a guerra causava na vida civil.
Se nos poemas de Rupert Brooke ainda há traços de nacionalismo exacerbado e de otimismo em seu incentivo ao alistamento, isso se perderia na obra de outros poetas com o desenrolar da guerra. No começo, a maioria das pessoas acreditava que o conflito duraria no máximo meses (Brooke era um dos poucos a achar que ele não acabaria tão cedo). Foi ao sul do Chemin des Dames – denominação pitoresca de um caminho que as filhas do rei Luís XV tomavam para chegar até uma de suas damas de honra – que os alemães, fatigados e impossibilitados de continuar em sua ofensiva em direção a Paris, cavaram buracos no solo e instalaram sua artilharia pesada em setembro de 1914. Como escreve o historiador inglês A.J.P. Taylor em sua ótima história ilustrada do conflito: “A guerra de trincheiras havia começado. A guerra de movimento acabou quando os homens se enterraram.” A partir daí estava criado o impasse que levaria o conflito a prolongar-se por quase quatro anos.
É nesses campos da França, rasgados por trincheiras e explosivos, que o bucolismo dos georgianos tomará um choque de realidade. Se “Absolvição”, de Siegfried Sassoon, de 1915 – que abre os seus The War Poems –, ainda tem o mesmo tom patriótico dos sonetos de Brooke, os posteriores “O herói” e “Ordens do dia da base” já são totalmente desencantados. Neste último, o título em inglês, “Base Details”, tem um duplo sentido impossível de manter em português, já que “base” quer dizer não só “base”, mas também “baixo, vil, desprezível”. Na Grande Guerra, a privilegiada situação dos membros do estado-maior na retaguarda revoltava os soldados na linha de frente. Como escreve o mesmo A.J.P. Taylor: “Em guerras anteriores, e na Segunda Guerra Mundial, generais, e até marechais, também corriam riscos e morriam em ação. Na Primeira Guerra Mundial eles levavam vidas confortáveis.” Sassoon, que se tornaria o crítico mais irônico e sarcástico da guerra, no começo a defendeu a ferro e fogo, sendo cognominado Mad Jack por sua bravura e ferocidade em combate. Ferido duas vezes, recebeu a Cruz Militar, que mais tarde jogou fora.
O mais trágico dos poetas mortos na guerra – e um dos maiores – é Wilfred Owen. Internado em 1917 num hospital psiquiátrico em Edimburgo, conheceu Siegfried Sassoon, que o aconselhou e encorajou a escrever. Em outubro de 1918 também recebeu a Cruz Militar. Sua morte ocorreu no dia 4 de novembro, uma semana antes do armistício. Owen foi um poeta especialmente querido pela geração de 30 – W. H. Auden, Cecil Day-Lewis e Stephen Spender. O poeta, romancista e crítico John Wain, um dos angry young men do final da década de 50, certa vez perguntou: “Existe, em toda a literatura, poema de guerra melhor do que ‘Hino a uma juventude condenada’?” Um dos editores da poesia de Owen observa a respeito da comparação do belo último verso desse poema (And each slow dusk a drawing-down of blinds): “Baixar as persianas, agora um costume quase esquecido, indicava que estava passando uma procissão funerária, ou que alguém morrera no interior da casa.”
O título do poema “Dulce et decorum est” é uma referência a um verso proverbial da Ode II do livro III, de Horácio (“Dulce et decorum est pro patria mori”), e significa: “É doce e decoroso morrer pela pátria.” Os “soturnos 5.9” do último verso da primeira estrofe são granadas de gás letal, utilizadas pela primeira vez pelos alemães em Ypres, na Bélgica, em 22 de abril de 1915, como um meio extremo de recriar a guerra de movimento, já que desde o final de 1914 nenhum dos meios convencionais empregados conseguiu fazê-lo. Em breve, tanto os ingleses quanto os franceses estariam usando o gás letal. Ainda em “Dulce…”, o amigo a que se dirige o poeta na última estrofe é Jessie Pope, autora de diversos livros infantis e também de versos de guerra, a quem o poema originalmente seria dedicado.
Isaac Rosenberg, que foi um dos muitos beneficiários do mecenato de Edward Marsh, era poeta e artista plástico. Extremamente baixo e com pulmões fracos, não tinha nem de longe o perfil adequado para o serviço militar, mas se alistou assim mesmo. Foi morto em ação no dia 1º de abril de 1918. Seu célebre poema “Raiar do dia nas trincheiras” tem um rato como personagem principal, animal onipresente no dia a dia dos soldados, devorando mantimentos e mesmo os cadáveres abandonados nas trincheiras. A menção à papoula se explica por sua flor vermelha ser o símbolo da guerra para os ingleses, graças a um poema do canadense John McCrae, morto num hospital de base em 1918, e que começa assim: “As papoulas florescem sobre os campos de Flandres” (In Flanders fields the poppies blow). “In Flanders Fields”, composto durante a segunda batalha de Ypres e publicado anonimamente em Punch no dia 8 de dezembro de 1915, viria a se tornar o mais conhecido poema da guerra. Nele, os mortos em batalha, que falam na primeira pessoa, passam – textualmente – a tocha aos vivos para que prossigam sua luta contra o inimigo. Como escreve o poeta e crítico americano William Logan, “hoje ‘Nos campos de Flandres’ parece insuportável” (seems insufferable now). O Dia do Armistício, 11 de novembro, é também chamado de Dia da Papoula (Poppy Day).
William Butler Yeats não integra propriamente o grupo dos poetas de guerra. Recusou-se a inseri-los em seu Oxford Book of Modern Poetry, sob a alegação de que “o sofrimento passivo não era um tema para poesia”; referia-se ao fato de os autores, escrevendo na primeira pessoa, se apropriarem do sofrimento de outros homens. Mas Yeats tem pelo menos um de seus poemas incluído em diversas antologias da guerra: “Um aviador irlandês prevê a sua morte”. Este e “Retaliações” são dois dos quatro que dedicou ao major Robert Gregory – filho de sua grande amiga Lady Gregory, teatróloga e animadora do Abbey Theatre de Dublin –, morto por um fogo amigo na Itália. “Ao ser-lhe solicitado um poema de guerra” foi enviado em 1915 para a romancista Edith Wharton, e seria publicado no ano seguinte numa coletânea de literatura de guerra organizada para angariar dinheiro para refugiados belgas.
Em “Um aviador irlandês prevê sua morte”, o poeta se coloca no lugar do piloto. Se nos primeiros versos este ainda se acha em terra, pensando que encontrará seu fado “em meio às nuvens e ao vento”, no final ele já se vê no ar (“Um afã levou-me ao tumulto/Das nuvens, de puro prazer”). Como escreve a crítica literária Helen Vendler, professora de Harvard e uma das melhores leitoras contemporâneas de poesia, “fazer um aeroplano levantar voo num poema (essa, afinal, é a primeira era em que um poema sobre aeroplano poderia ser escrito) é um majestoso truque de prestidigitação”. Afinal, Verdun, em 1916, foi o cenário da primeira batalha aérea.
“Retaliações” é uma admoestação ao fantasma de Robert Gregory por ter se alistado em uma guerra que não era sua. O poema, que teria sido aceito pelo The Nation de Londres no final de novembro ou começo de dezembro de 1920, só foi publicado postumamente – por decisão do próprio Yeats, atendendo ao desagrado que lhe foi manifestado pela mãe do morto. O título é uma referência às barbaridades praticadas contra civis pelas Forças Armadas inglesas em resposta à ação de guerrilheiros do IRA na Guerra de Independência irlandesa nos anos 1919–20. Como irlandês, Yeats vê a guerra de um modo diferente tanto daqueles que a defendem, como Rupert Brooke, quanto dos desiludidos, como Siegfried Sassoon.
RUPERT BROOKE (1887–1915)
I. PAZ
Louvado seja Deus, que ao contrapor Sua hora
À nossa juventude, acordou-nos do sono
Para, com destra mão e a lucidez da aurora,
Como quem salta em limpas águas em um assomo,
Dar as costas a um mundo velho, frio, fatigado,
E a corações doentes que a honra já não move
E a homens pela metade e a seu triste trinado
E a todo o amor vazio que hoje não mais comove.
E eis que, após a vergonha, nos veio a salvação,
Lá onde o mal e a pena o sono retifica,
Onde só o corpo quebra e só se perde o alento;
Nada lá que perturbe o alegre coração
A não ser a agonia, mas esta um dia finda;
E a morte é o pior amigo e inimigo a um só tempo.
II. SEGURANÇA
Amada! Entre os que são felizes nesta hora
Bendito o que achou nossa silente segurança
Nas sombrias marés do mundo que ressona.
“Quem mais seguro há?”, foi a nossa demanda.
A segurança achamos em tudo que não morre,
Os ventos, a manhã, alegria e abandono,
A noite densa, os pássaros, nuvens que no céu correm,
O sono, a liberdade e a terra no outono.
Erguemos uma casa que o tempo não derruba.
Ganhamos uma paz de todo inabalável.
A guerra nada pode. Será armada e segura
Minha ida ante a morte, o êmulo inelutável;
Mesmo que não mais haja segurança e que os homens
Caiam; e mais segura ainda se estes meus membros morrem.
III. OS MORTOS
Soai, clarins, soai por estes ricos Mortos!
Pois nenhum deles, mesmo o pobre e o solitário
Legou-nos dom menor que ouro sob seu sudário.
Deram as costas ao mundo; o doce e vermelho mosto
Da juventude escoaram; e a um porvir de trabalho
E alegria renunciaram, e a essa serenidade
Inesperada a que chamam senilidade;
E aos que imortalidade lhes dariam, os não nados.
Soai, clarins, soai! À nossa escassez deram
A santidade há muito inexistente, e o Amor
E a Dor. E, como um rei, retorna a Honra à terra
E os súditos provê de real emolumento;
E a nobreza acompanha-nos seja lá aonde for;
E a herança recebemos ansiada há muito tempo.
IV. OS MORTOS
Estes corações foram feitos de regozijos
E zelos, bem lavados pela mágoa e alertas
À alegria. E a bondade foi acrescida ao viço.
Tinham a aurora e o ocaso, a terra e sua paleta.
O movimento e a música conheceram, assim como
O dormir e o acordar; de amigos orgulharam-se;
E o frêmito sentiram pelo que é espantoso;
Foram sós; e tocaram flores, pelos, faces.
Tudo acabou. O vento muda em gargalhada a água
Que o rico céu ilumina como se fosse frágua.
O gelo imobiliza, de um gesto, a onda que dança
E as errantes belezas. Deixa um esplendor
Compacto, uma glória inquebrantável, branca,
Uma amplidão na noite, de paz e de palor.
V. O SOLDADO
Se eu tiver de morrer, pensai de mim só isso:
Que há algures no estrangeiro algum canto de campo
Que será para sempre Inglaterra. Tal rico
Torrão abrigará de pó mais rico um tanto;
Pó que Inglaterra criou, formou, tornou consciente,
Com flores para amar, caminhos para andar;
Lavado por seus rios, com a benção do sol quente,
Um corpo de Inglaterra a respirar seu ar.
Pensai que o coração, o mal todo arrancado,
Qual um pulsar no eterno espírito, devolve
Em um lugar qualquer aquelas reflexões
Que lhe deu Inglaterra, e tudo lá sonhado,
O riso pelo amigo ensinado e, lá onde
O céu é inglês, doçura e paz nos corações.
SIEGFRIED SASSOON (1886–1967)
ABSOLVIÇÃO
Da terra a angústia absolve-nos os olhos
Até que o belo brilhe no que vemos.
Nosso flagelo é a guerra, e fez-nos doutos,
Somos livres lutando para sê-lo.
Horror ao inimigo, aos ferimentos,
E perda do almejado, tudo passa.
A legião feliz somos, pois sabemos
Que o tempo é áureo sopro sobre a grama.
Se houve antes relutância em partirmos
Foi por querer da vida mais que o nada.
O que é do coração ora exigimos:
Que mais querer, irmãos, meus camaradas?
O HERÓI
“Morreu exatamente como desejaria”,
Disse a mãe após ler e dobrar a missiva.
“O coronel escreve tão bem.” Mas quebrou-se algo
Naquela voz cansada que gaguejou num engasgo.
O olhar um pouco alçado: “Nós, mães, de um herói morto
Orgulhamo-nos tanto.” E o olhar quedou-se absorto.
Calado, o Irmão Oficial foi-se embora. Ele havia
Contado à pobre dama só piedosas lorotas
Que ao longo de seus dias ela alimentaria.
Enquanto ele tossia, os olhos da velhota
Repletos de deleite e triunfo haviam brilhado
Por seu bravo menino, o glorioso soldado.
Lembrou-se ele então como este inútil medricas
Apavorou-se quando aquela noite a mina
Explodiu em Wicked Corner; como não poupou esforço
Para que o enviassem a casa, e como, enfim já morto
E em pedaços, ninguém parecia se importar
Exceto a solitária velhinha de olhos no ar.
ORDENS DO DIA DA BASE
Caso eu fosse feroz e careca e ofegante,
Viveria com os majores rubicundos na Base,
E lúgubres heróis enviaria linha adiante
Para a morte. Veríeis minha flácida face
Petulante a comer e beber num bom hotel
E a ler a Lista de Honra. “Pobre camaradinha”,
Eu diria, “conheci o seu pai muito bem;
Sim, sofremos terríveis perdas na última rinha.”
Finda a guerra, os cadáveres amontoados na lama,
Eu iria para casa e morreria em paz – na cama.
ISAAC ROSENBERG (1890–1918)
AGOSTO DE 1914
Fogo. E o que entra em combustão
Em nossas vidas? O amado
Celeiro do coração?
Tudo o que será lembrado?
Tem três vidas uma vida –
Ferro, mel e ouro. Do trio,
Idos o mel e o ouro, fica
Apenas o duro e frio.
De ferro são nossas vidas
A fundir-se na nascente.
No campo abre-se a ferida,
Na boca quebra-se um dente.
RAIAR DO DIA NAS TRINCHEIRAS
A escuridão se esfarela.
É o Tempo druida de sempre,
Mas por minha mão algo passa
Ao colher no parapeito
A papoula para pô-la
Atrás da orelha: sardônico,
Estranho rato. Seu truão,
Eles em ti atirariam
Se de tuas cosmopolitas
Simpatias soubessem (e
Sabe Deus que antipatias).
Agora que tocaste esta
Mão inglesa, em breve farás
O mesmo com uma alemã.
Basta cruzares o verde
A separar-nos, parece
Que sorris por dentro quando
Passas por esses atletas
Altivos e de olhos firmes,
Com menos sorte que tu
Para a vida, estatelados
Nas entranhas da terra, os
Rasgados campos da França.
O que vês em nossos olhos
Aos fogos arremessados
Do céu? Que trinado, que
Coração apavorado?
Papoulas que deitam raízes
Nas veias dos homens murcham,
Mas a minha está a salvo, apenas
Um pouco branca das cinzas.
WILFRED OWEN (1893–1918)
HINO A UMA JUVENTUDE CONDENADA
Que dobre de finados aos que morrem qual gado?
– Apenas a monstruosa cólera dos canhões.
Apenas a gagueira dos fuzis disparados
Pode tartamudear rápidas orações.
Basta de escarnecê-los; basta de prece e sinos;
Nenhuma voz de luto que não seja o uníssono
Dos obuses gementes, dementes, mofinos;
E os clarins a chamá-los de condados tristonhos.
Que velas cumprirão o dever de despachá-los?
Nos olhos dos meninos, não nas mãos, será vista
A sacra e bruxuleante chama das despedidas.
A palidez das jovens lhes servirá de pálio;
Será guirlanda o afeto das almas resignadas
E cada anoitecer um baixar de persianas.
DULCE ET DECORUM EST
Íamos arqueados, velhos mendigos sob um saco,
Pernas bambas, tossindo como harpias, blasfemantes
Na lama, até aos clarões nossas costas voltarmos
E arrastarmo-nos para nosso pouso distante.
Alguns seguiam dormindo. Outros sem seus coturnos.
Seguiam com os pés em sangue, cansados, manquitolas,
Cegos e mesmo surdos ao ruído dos soturnos
5.9 a explodir às suas costas.
Gás! GÁS! Rapazes, rápido! De imediato uma azáfama
E máscaras são às pressas colocadas, bem a tempo;
Mas entre nós alguém grita e logo desanda
A debater-se como se houvera visgo ou incêndio…
Pude vê-lo através da embaçada viseira
E da espessa luz verde como a afogar-se em mar.
Em todos os meus sonhos, ante minha impotência,
Vagarosamente ele submerge a sufocar.
Se em sonhos embaçados também fosses capaz
De seguir a carroça em que foi colocado
E ver a contorcer-se os olhos do rapaz,
Brancos, e o rosto caído, como o de um pobre diabo,
Se pudesses ouvir, a cada sacudida,
Vir dos podres pulmões o sangue borbulhante
E obsceno como um câncer, amargo qual ferida
Sem cura numa língua sem culpa, nesse instante
Não dirias, minha amiga, com tão ardente fé
A crianças que desejam sorver da glória o gole
A vetusta mentira: Dulce et decorum est
Pro patria mori.
FUTILIDADE
Movei-o para que fique sob o sol –
Em casa os suaves raios o acordavam
(De campos não semeados seu lençol).
Acordavam-no sempre, até na França,
Até esta manhã e esta neve.
E se agora acordá-lo algo deve
Decerto o saberá o sol suave.
Pensai como desperta ele as sementes
E o barro despertou da estrela fria.
Dos membros e do flanco ainda quentes
A rigidez mover conseguiria?
Foi para isso que o barro alçou-se tanto?
O que levou do sol os raios fátuos
A interromper da terra o sono e o encanto?
WILLIAM BUTLER YEATS (1865–1939)
AO SER-LHE SOLICITADO UM POEMA DE GUERRA
Em tempos como os de hoje suponho que o melhor
É um poeta silenciar-se, por ser insuficiente
Seu dom contra o estadista a praticar o mal;
Já teve em que imiscuir-se todo poeta que for
Capaz de agradar seja a uma jovem indolente,
Seja a um homem idoso sob a noite hibernal.
UM AVIADOR IRLANDÊS PREVÊ A SUA MORTE
Sei que encontrarei meu fado
Em meio às nuvens e ao vento;
Não odeio quem combato
E não amo quem defendo;
De Kiltartan Cross eu vim,
Minha gente são seus pobres;
Tanto faz da guerra o fim,
Não lhes encherá o alforje.
Por lei ou dever não luto,
Ou quem me aponte o que fazer;
Um afã levou-me ao tumulto
Das nuvens, de puro prazer.
Passado e porvir, na mente
Tudo pesei, de tal sorte
Que, sem alento igualmente,
Para tal vida, tal morte.
RETALIAÇÕES
Se antes de morrer derrubaste
Dezenove aviões mais ou menos,
Creio que com isso te fartaste
E todo o resto era de somenos.
“Fui mais feliz em um ano apenas”,
Disseste, “do que nos demais.”
E tanto a memória das cenas
De batalha te satisfaz,
Mesmo morto, que tudo apaga.
Ergue-te, porém, de teu túmulo
Italiano e vai de revoada
A Kiltartan Cross; lá o acúmulo
De pensamentos posteriores
Sobre a causa que defendeste
Decerto mudará suas cores:
Soldadesca bêbada e agreste
Lá mata teus arrendatários;
Homens que veneram teu pai
Ora padecem o seu calvário.
E a recém-casada aonde vai
Para amamentar os seus filhos?
Levam bala e a lei não se importa.
Então tapa com pó os ouvidos
Entre outros mortos e lorotas.
EDWARD THOMAS (1878–1917)
A CORUJA
Ladeira abaixo eu vinha, com fome, não esfomeado,
Com frio, mas havia calor em mim o bastante
Para arrostar o vento norte; e tão cansado
Que a visão do repouso me conduzia avante.
Na pousada comi, aqueci-me e dormi,
Cônscio de minha fome, meu cansaço e meu frio.
E da noite lá fora protegido me vi,
Não fosse, melancólico, de uma coruja o pio
A reverberar longo e claro na colina;
Não uma nota alegre, capaz de a paz trazer;
Antes me recordava que de uma triste sina
Escapei, e outros não, naquele anoitecer.
E salgados tornaram-se o repouso e a ceia,
Pelo pio do pássaro, e também moderados;
Falava pelos que ora estão sob as estrelas
Sem poder jubilar-se – os pobres e os soldados.
IN MEMORIAM (PÁSCOA, 1915)
As flores que esta noite se adensam nas ramadas
Recordam-nos os homens distantes de seu povo.
Nesta Páscoa as teriam colhido com as amadas;
Entretanto jamais as colherão de novo.
POIS A MIM POUCO ME IMPORTA
“Pois a mim pouco me importa
– Quem o sabe é Deus do céu –,
Se acaso uma terra inóspita
Cobrir-me-á como um véu”,
Foi o que respondi ao toque de clarim esta manhã.
Mas, de risada malsã,
Apenas os clarins sabem
O que dizem de manhã.
E não se importam, também,
Ao soarem o toque a que respondi esta manhã.