ILUSTRAÇÃO: Andrés Sandoval_2019
Nasce uma atriz
A figurante que alegra Bacurau
Tiago Coelho | Edição 157, Outubro 2019
No povoado Santo Antônio da Cobra, no semiárido do Rio Grande do Norte, a costureira aposentada Tânia Medeiros tomou o ônibus e seguiu para Natal, a uma distância de 240 km. Ao chegar, reuniu-se com familiares e amigos, e foram todos diretamente para o cinema de um shopping. Cerca de quinze minutos depois que as luzes da sala se apagaram, Medeiros entrou em cena em Bacurau, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Ela apareceu de relance e calada, mas não havia como não reconhecer seu rosto magro, o nariz avantajado e os óculos de lentes grossas. Em polvorosa, uma amiga de 89 anos que nunca tinha ido ao cinema gritou: “Olha lá a Tânia!” E acenou no escuro para a tela. “Se aquiete, mulher. Estou aqui do seu lado. Silêncio!”, pediu a atriz estreante de 72 anos. O que a amiga não sabia era que a participação mais marcante de Medeiros ainda estava por vir.
Faz pouco tempo que Medeiros começou nas artes cênicas. Quando os produtores do filme foram até o seu povoado em busca de figurantes, em fevereiro do ano passado, a senhora baixinha aceitou instantaneamente o convite. “Sempre sonhei alto. Queria ser atriz. Mas não imaginava que essa chance fosse chegar, nessa altura da vida. Nunca antes tinha passado gente de cinema por essas bandas”, contou.
Para fazer o filme, ela deixava diariamente a casa em que vive com a filha, o genro, a neta e a bisneta e viajava para Barra, povoado vizinho ao seu, onde ficava a principal locação de Bacurau. Nos créditos finais do filme, ela aparece com seu nome de batismo, Sebastiana Maria de Medeiros Filha. Mas prefere ser chamada de Tânia, pois não gosta dos prenomes dados pelos pais.
Foi Leonardo Lacca, diretor-assistente e preparador de elenco, quem trabalhou diretamente com o grupo de figurantes. Ele disse que a intenção dos diretores do filme era que a figuração não servisse apenas para preencher espaços nas cenas. “Em Bacurau, não há uma camada de elenco na frente e a figuração atrás. Queríamos que os dois grupos interagissem entre si, criando uma textura única entre eles. Todo mundo tinha que parecer habitante daquele lugar, da Sônia Braga à dona Tânia”, explicou Lacca. “Por isso buscamos para a figuração pessoas que se destacassem por serem desinibidas diante da câmera.”
Medeiros se mostrou bem à vontade no set e disposta a encarar as longas horas de trabalho. As filmagens duraram dois meses. “Todo mundo foi maravilhoso. Eu mal podia acreditar que a Sônia Braga estava ali do meu lado. Você sabia que ela tem idade parecida com a minha?” A atriz tem 69 anos, três a menos que Medeiros. “E está bonitona, inteirona. Assim como eu, ela tem uma cinturinha bem fina.” A figurante guarda apenas uma pequena frustração: uma cena em que ela e Sônia Braga se estapeavam acabou sendo excluída da montagem final.
Tânia Medeiros aparece em dez cenas de Bacurau, que conta a história de um povoado no sertão nordestino atacado por um grupo de bandidos estrangeiros. O longa-metragem dos dois diretores pernambucanos ganhou neste ano o Prêmio do Júri no Festival de Cannes e o de melhor filme nos festivais de Munique e de Lima. Neste, recebeu também o prêmio de melhor direção.
A atriz caloura contou que Mendonça Filho sempre se dirigia a ela sussurrando. Um dia, quando filmavam o velório da personagem Carmelita, o diretor pediu: “Entra séria.” Medeiros achou que ele tinha dito “entra cega” e avançou em cena com os olhos fechados. Deu de cara com uma câmera. “O que você tá fazendo?”, perguntou Mendonça Filho, rindo, junto com toda a equipe. A figurante achou que tinha quebrado o equipamento e precisaria pagar o conserto, mas nada aconteceu com a câmera. Ainda bem, porque com o cachê acertou as contas atrasadas.
A sua principal cena no filme surgiu de improviso. No terço final de Bacurau, quando se aproxima o dia do ataque dos assassinos impiedosos, a população solicita a ajuda do cangaceiro andrógino Lunga, interpretado pelo ator Silvero Pereira. Os diretores pediram a Medeiros para dizer o que lhe viesse à cabeça na hora que Lunga entrasse em cena. Quando o personagem finalmente aparece no povoado, vestido de uniforme militar estilizado, cabelo com corte mullet (ou no estilo Xororó, curto na frente e longo atrás), colares e pulseiras, bem ao estilo Mad Max, a figurante, focalizada em close, dispara: “Que roupa é essa, menino?” Ela relembrou: “Vi o Silvero com aquela roupa doida e falei… O Kleber sempre dizia que gostava de minha voz rouca.” A fala de Medeiros provoca um breve alívio cômico num momento de muita tensão no filme.
A atriz estreante já viu Bacurau quatro vezes e se emocionou com a reação da plateia à sua fala. Em algumas das sessões, foi reconhecida pelo público. “Ser atriz é uma coisa tão boa”, disse. “Todo mundo repete essa minha fala no filme quando me vê e pede para fazer foto. Quero ser chamada para atuar no Rio, em São Paulo… Aceito o que aparecer.”
E um convite já apareceu. Lacca a chamou para fazer algumas cenas do longa-metragem que está rondando no Recife, As Aventuras de Seu Cavalcanti. “Ela memoriza tudo muito facilmente. E fala muito bem. Entra na cena acreditando. E a câmera gosta dela. É o que a gente chama de carisma cinematográfico”, disse o diretor. Medeiros interpreta uma mulher que se relacionou com um homem casado, de quem teve uma filha. “Quando o Lacca me falou do filme, eu disse que era a história de minha vida. Tive minha filha de um relacionamento assim. Cuidei dela sozinha. Na certidão, no lugar que deveria estar o nome do pai, tem três tracinhos.”
No Brasil, 510.400 pessoas haviam assistido Bacurau desde 29 de agosto, quando o filme estreou, até 25 de setembro. Os espectadores costumam sair da sessão buscando respostas e interpretações para a alegoria da barbárie criada por Mendonça Filho e Dornelles. Por ter embarcado na equipe como figurante, Medeiros não recebeu o roteiro previamente e só entendeu o enredo pouco a pouco, “uma cena após a outra”. Para ela, Bacurau tem um significado simples: “É uma boa história para passar uma mensagem para todo o Brasil e para o mundo – a de que o povo nordestino não é um pobre coitado. E que sabe se defender quando é atacado.”