CREDITO_SAMSON FLEXOR_1960_COLEÇÃO MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA USP
Nenhum mistério
Paulo Henriques Britto | Edição flip_2018, Julho 2018
DA IMORTALIDADE
A música secreta destes dias
não vai se revelar senão no tempo
em que a sua melodia
já não traga a ninguém nenhum alento.
Nesse dia, por ora ainda distante,
de silente e tardio entendimento,
o que era só ruído antes
se deixará gravar, com traço lento
e firme, numa bela partitura
a ser lida por vocês,
de geração ainda mais futura,
que abrirem a pasta ax293.
DA OPORTUNIDADE
Não era a hora – nunca é hora –
mas o que se há de fazer.
Todo momento é sempre agora
(antes de se derreter).
E foi assim que, não obstante
a hora fosse inadequada,
foi nesse preciso instante
que não aconteceu nada.
O que implicou uma sucessão
de inconsequentes consequências.
(Não terá sido, pois, em vão
tão oportuna inexistência.)
DOS NOMES
Os nomes se enchem aos poucos.
Um dia eles perdem o estofo,
aos poucos, ou então de repente.
Então ficam ocos.
O mundo está sempre se enchendo
de cascos vazios desse tipo.
Inúteis. No entanto, assim mesmo
continuam sendo,
ocupando tempo e lugar,
iludindo quem os assume,
prestando falso testemunho
do que já não há.
E o mundo se presta a essa farsa.
É como se já não bastassem
as coisas e os nomes de coisas
que as coisas disfarçam.
E há quem (imagine!) ache pouco,
e abrace esses nomes sem estofo
e diga e rediga esses ocos
feito louco.
DO SUBLIME
A consciência toda exulta,
e não é pra menos:
é chegada a hora absoluta,
o rei dos momentos.
Todo o tempo ela preparou-se
pra esse instante excelso,
com infinitos alvoroços
e risíveis excessos,
antegozando o inteiro espectro
de fatais consequências,
abrindo alas pra todo um séquito
de obscuras contingências.
Tão ansiosamente aguardado,
o instante enfim resulta
num objeto desengonçado,
espécie de catapulta
de utilidade pouco clara.
Um gesto temerário
instala a esplêndida almanjarra
no fundo do armário.
Os poemas integram o livro Nenhum Mistério, a ser publicado em agosto pela Companhia das Letras.