CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Nenhum som no ar
Intérpretes surdos e cultura negra no palco mineiro
Amanda Gorziza | Edição 207, Dezembro 2023
A canção Vi mamãe Oxum na cachoeira soou no teatro, numa versão para piano. Uma mulher e um homem negros, vestidos de branco, entraram no palco. Embalados pela melodia melancólica, os dois dançaram e sinalizaram a letra da canção, de forma coreográfica, na Língua Brasileira de Sinais (Libras). Ouviu-se, então, o primeiro verso da música As ayabás, na voz de Maria Bethânia: Nenhum outro som no ar pra que todo mundo ouça. A mulher no centro do palco fez o movimento de pentear o cabelo – gesto que representa Oxum – e contou, sempre em Libras, a história dessa iabá (como são chamados os orixás femininos). O homem, na lateral da cena, fazia o papel de intérprete dos sinais para o português.
Assim começa Corpo, preto, surdo: louvação às ayabás, peça montada pelo projeto BH em Libras especialmente para a 24ª edição do Festival Cenas Curtas, do Galpão Cine Horto, realizado em setembro em Belo Horizonte. Criada pelos dois atores – Jaqueline Gonçalves, de 38 anos, e Marcos Andrade, de 31 –, a peça celebra a cultura afro-brasileira em canções, danças e poemas que louvam Oxum, rainha dos rios e das cachoeiras. Outras iabás não figuraram no enredo porque o festival, promovido pelo Galpão – um dos mais reputados grupos teatrais do país – destinava-se a cenas de no máximo 15 minutos.
Em montagens tradicionais com tradução em Libras os atores falam no centro do palco, enquanto o intérprete ocupa seu lugar no canto, perto da coxia. “A pessoa surda que está na plateia precisa olhar para o lado para acompanhar a sinalização. Já o ouvinte olha para a frente”, observa Andrade. Em Corpo, preto, surdo, invertem-se os papéis: Gonçalves, mulher surda, é a protagonista em cena, e Andrade, que é ouvinte, torna-se o intérprete. “Esse formato muda a configuração da peça e torna o teatro mais inclusivo”, diz ele.
Fundado em 2015 por Andrade e sua mulher, Dinalva Andrade, atriz e intérprete de Libras, o BH em Libras ministra cursos da língua de sinais, dá aulas de teatro e dança para surdos e oferece intérpretes para eventos. Também faz consultoria de acessibilidade para empresas. No fim de junho, promoveu, com incentivo fiscal municipal, o 1º Festival Mineiro de Arte Surda, com debates, workshop de teatro, batalha de poesia e shows de stand up.
Além de Corpo, preto, surdo, o projeto já realizou outras duas peças. Memórias de Ana, de 2017, destinava-se a pessoas surdas e cegas, mas os atores eram ouvintes. Em 2019, foi encenado Nós temos voz, resultado final de um curso de teatro para surdos que o BH em Libras realizou em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Nessa produção que tratava dos abusos cotidianos na vida dos surdos, Jaqueline Gonçalves fez sua estreia no palco.
Surda desde o nascimento, ela é formada em letras com ênfase em Libras e atua como professora. Já na infância, seu coração batia forte pelas expressões artísticas, como a dança, mas não havia na época tanta preocupação com a acessibilidade. Quatro anos atrás, Gonçalves ficou sabendo do trabalho do BH em Libras pelo Instagram e viu uma oportunidade de realizar antigas aspirações. Em 2019, conheceu Andrade em um curso de teatro para surdos. Homem de múltiplos interesses, ele é advogado, ator e pesquisador do teatro negro. Seu contato com a comunidade surda se deu por meio da esposa intérprete. Durante a pandemia, ele começou a estudar a língua de sinais e agora está cursando letras com ênfase em Libras.
Gonçalves e Andrade se inscreveram no Festival de Cenas Curtas com o intuito de captar recursos para a criação de uma peça mais robusta. Também queriam mostrar o potencial expressivo da Libras que, para além de um meio de comunicação, pode ser utilizada como recurso coreográfico. “Quando um ouvinte ouve uma música, ele pode cantar e dançar junto. Já para o surdo, a sinalização é uma maneira de cantar também”, explica Andrade. A cena apresentada no festival serviu como uma pequena iniciação do público ao universo da Libras: os atores ensinaram os espectadores a sinalizar a letra de Eu vi mamãe Oxum na cachoeira.
A criação da dramaturgia foi conjunta. Gonçalves trabalhou mais na sinalização em Libras e nas expressões faciais e corporais; Andrade, nas músicas, no ritmo e na dança. Como a cena ampara-se em canções, os ensaios foram mais trabalhosos para a atriz, que precisou fazer uso de recursos não sonoros. A partir das vibrações da música, ela foi modulando a intensidade de seus passos e gestos. Embora usasse a visão periférica para acompanhar os movimentos do parceiro, Gonçalves diz que a sincronização da dança não a preocupava tanto: “O objetivo do nosso teatro é outro.” Ainda assim, a sincronia da dupla em cena chamou a atenção.
Corpo, preto, surdo ficou entre as quatro apresentações mais votadas pelo público no Festival de Cenas Curtas, no qual competiam dezesseis grupos. Os quatro eleitos disputaram o prêmio Cena Espetáculo 2023, que foi entregue à criação de Gonçalves e Andrade. Depois da vitória, a cena foi apresentada mais três vezes, uma delas no Festival de Arte Negra de Belo Horizonte.
O prêmio vai bancar uma peça inédita, a ser apresentada no ano que vem no Galpão Cine Horto. Os dois atores vão expandir a cena de Oxum, colocando mais três iabás no palco – Iemanjá, Nanã e Iansã – e relacionando-as à travessia de escravizados nigerianos para o Brasil no século XVII.
O primeiro verso da canção As ayabás – composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil – orientará os trabalhos que Gonçalves e Andrade terão pela frente até a estreia do novo espetáculo. “Se não tiver nenhum som no ar, todo mundo consegue escutar – até mesmo a pessoa surda”, diz o ator.