CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Neopaganismo piaga
Um assessor do agronegócio funda vila politeísta no Piauí
Samária Andrade | Edição 188, Maio 2022
Rafael Nolêto formou-se jornalista em 2011 na Universidade Estadual do Piauí (Uespi) com um trabalho de conclusão de curso pouco convencional sobre bruxaria e paganismo na internet. Ele queria compreender a relação da mídia e das redes sociais com certa espiritualidade pagã que se desenvolvia no Piauí à época. Com prenome de arcanjo, Nolêto estava com 22 anos e foi apelidado de “bruxinho” pela turma da universidade.
Na manhã de 20 de março passado, com uma coroa de folhas e flores na cabeça, camisa branca, colete e calça verde – figurino criado por ele –, Nolêto conduzia cerca de dez pessoas na Celebração das Flores da Vila Pagã, comunidade criada por ele em 2014. Instalada em um terreno na zona rural de José de Freitas, a cerca de 30 km de Teresina, a vila é um espaço de culto politeísta. Alinha-se ao neopaganismo, movimento que prega a retomada de antigos cultos à natureza e de práticas da chamada bruxaria moderna, com rituais de invocação à fertilidade da terra.
Na versão piauiense, o neopaganismo adotou características próprias, incluindo folclore, lendas locais e até pinturas rupestres – o estado é rico em sítios arqueológicos. Nolêto afirma já ter catalogado mais de duzentos mitos piauienses. “Um povo sem raiz, qualquer vento derruba. Precisamos conhecer nossa ancestralidade”, pontifica o jornalista, hoje com 33 anos.
Chega-se à Vila Pagã por um trecho de estrada de terra cercada de espessa mata de cocais. Logo após cruzar a entrada – um portal rústico, pintado de verde e estampado com vários símbolos –, veem-se as primeiras esculturas de personagens míticos. As estátuas de cores fortes e estilo naïf, em escala maior que a humana, são identificadas em placas – como a Deusa Fortuna e o Mestre Babaçu – e foram criadas por Nolêto, com a colaboração de trabalhadores locais.
As plantas de todas as edificações da Vila Pagã também foram desenhadas por ele. São seis construções, e a maior delas serve de hospedagem aos visitantes que chegam para os cultos. Em outras ocorrem as celebrações, como o Santuário Piaga ou o Templo das Almas, com pequenas estátuas de pessoas que, na crença popular, fazem milagres. Uma lojinha vende suvenires: livros, incensos e desenhos de divindades feitos pelo guru.
Das estátuas às orações, tudo é invenção de Nolêto, que diz se inspirar em cerimônias de outras partes do mundo. Das tradições locais, ele buscou elementos do piaganismo – de “piaga”, pajé ou feiticeiro, palavra consagrada na literatura brasileira pelo poema O Canto do Piaga, de Gonçalves Dias. Somente aqueles que participam há pelo menos um ano dos estudos promovidos pelo Círculo Piaga, também fundado por ele, podem tomar parte da roda durante a Celebração das Flores.
A palavra “piaga” está relacionada ao austríaco Ludwig Schwennhagen, um professor que se radicou no Brasil nas primeiras décadas do século XX e defendeu em livro a duvidosa teoria de que os fenícios teriam sido os primeiros povos estrangeiros a chegarem ao Brasil, aportando no Nordeste e fazendo da região rochosa do atual Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí, a base de uma nova civilização. O nome do local escolhido teria sido batizado de Piagui, em referência a feiticeiro e de onde viria “Piauhy”, segundo Schwennhagen. Essa é uma interpretação diversa da comumente difundida, de que o nome do estado veio do peixe piau. “Temos a religião piaga, ou seja, do Piauí, a música piaga, a arte piaga e assim por diante. Tudo isso é como um movimento coletivo de reconstrução identitária”, defende Nolêto, autor do livro Mitologia Piaga (Clube dos Autores).
Na roda da Celebração das Flores – cerimônia fechada à qual a piauí teve acesso – também está a advogada Eulália Rodrigues que, encantada com o projeto de Nolêto, em 2016 comprou um terreno vizinho à vila, o que permitiu ampliá-la para 9 hectares. Dentre as poucas coisas da Vila Pagã que não são obra de Nolêto, estão os quitutes preparados por Rodrigues, como bolos e canjicas, para serem servidos após a cerimônia, que ela ajuda a organizar.
Todos dançam, cantam e falam sobre divindades durante a celebração. Ao final, saem em procissão para devolver a estátua da deusa Flora a um pequeno altar no meio do jardim. As músicas foram compostas por Nolêto, que também grava a voz. Piagas, bruxedos, gravuras e sons/Ancestrais da terra, despertem meus dons/A grande cultura renasce outra vez/ Herança sagrada, no solo se fez, diz a letra de Canção Piaga.
Para custear a Vila Pagã, Nolêto trabalha como jornalista na assessoria de comunicação de uma grande fazenda do agronegócio no Sul do Piauí, a 456 km de sua comunidade politeísta. Por causa do trabalho intenso, tem passado apenas um fim de semana por mês na vila. Conta que a atividade de jornalista lhe permite manter o lugar, para o qual diz ter muitos planos.
Filho de pais católicos, Nolêto estudou no Colégio Diocesano São Francisco de Sales, um dos mais tradicionais de Teresina, mas sempre teve atração pelo politeísmo. Quando criança, desenhava seres mitológicos e feiticeiros em seus cadernos. Seus pais frequentam a Vila Pagã, mas sem entusiasmo. “Não entendem o local como sagrado”, diz o filho. Ele acredita que, nos momentos de crise, as religiões pagãs podem apresentar soluções para reconectar o homem ao mundo e às boas energias.
Nolêto tem dez livros publicados e participa de videoconferências em universidades brasileiras, como a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Federal de Sergipe (UFS), geralmente convidado por cursos de antropologia e arqueologia. Além de assinar textos com seu nome de batismo, divulga suas ideias religiosas sob o nome Raj Endi Porã. “Raj vem do sânscrito e significa rei, aquele que governa, Endi vem do tupi e significa luz, Porã é também tupi e significa belo. Raj Endi Porã seria aquele que governa promovendo iluminação e disseminando coisas belas”, explica. “Bruxinho”, o apelido de faculdade, era muito pouco para ele.