Imagem de O Livro das Árvores: antes, os povos originários da Amazônia guerreavam entre si. Agora, os inimigos são outros: caçadores, garimpeiros, pecuaristas, madeireiros e traficantes CRÉDITO: REPRODUÇÃO DE O LIVRO DAS ÁRVORES (GLOBAL)_REALIZADO PELA ORGANIZAÇÃO GERAL DOS PROFESSORES TIKUNAS BILÍNGUES E JUSSARA GOMES GRUBER
Nha’ã I Na I Necü I Torü Ni’ I
Por que me sinto em dívida com as famílias de Bruno Pereira e Dom Phillips
Djuena Tikuna | Edição 190, Julho 2022
Eu estava na rua quando li a notícia pelo Facebook. O indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips tinham desaparecido na Terra Indígena Vale do Javari, no Oeste do Amazonas. Logo me bateu uma sensação horrível, uma vontade de chorar. A gente se coloca no lugar deles, vem de tudo à cabeça. Aqueles homens estavam defendendo o nosso território, a nossa casa.
Nasci e fui criada ali perto, na Terra Indígena Tukuna Umariaçu, em Tabatinga, cidade que faz fronteira com o Peru e a Colômbia. Minha infância foi nas águas barrentas do Solimões. Quando o rio baixava, a gente aproveitava as margens para plantar melancia, tomate, feijão, abóbora e mandioca. Quando o rio subia, a gente ia pescar. Eu me lembro do barulho do vento soprando na copa das árvores. Também me lembro de subir num pedaço de tronco caído, que era um palco para mim. Não à toa, acabei virando cantora. Eu morava com minha avó, numa casa de palha, porque meus pais viviam em Manaus. Fui uma criança tão feliz quanto os demais tikunas, que sempre enxergaram a floresta como parte de nossa família. Dizemos que o rio é um pai que alimenta seus filhos, e o mato, uma mãe que cura.
Pena que a infância livre que eu tive não existe mais (estou com 38 anos). Agora o que se ouve são histórias de crianças que somem quando pulam no Solimões, ou de um senhor que foi pescar e nunca mais voltou. Os mais velhos atribuem os sumiços à cobra-grande Yewae. Não sei se faz muito sentido, porque na verdade essa personagem da cosmogonia do povo Tikuna protege os rios. A cobra que atormenta as barrancas do Alto Solimões é outra. Ela é rajada de sangue e atende o chamado da destruição. Está a serviço do crime, inclusive dos praticados pelos novos barões do agronegócio e seus comparsas, os políticos de estimação da bancada do Boi, da Bíblia e da Bala.
Por isso, fiquei muito aflita quando li aquela notícia. Eu não conhecia o Bruno nem o Dom, mas quem é da região entende rapidamente o que um desaparecimento significa. O rio virou porta de entrada para armas e cocaína no Brasil. Lá também acontece a pesca ilegal do pirarucu, que o Bruno combatia sem trégua.
Quando fiz 8 anos, me mudei com meu irmão para Manaus, onde meu pai trabalhava como segurança de um banco. Eu não sabia falar português e nem sequer tinha sandália ou sapato. Me lembro de notar, constrangida, que eu e meu irmão éramos os únicos descalços no Porto de Manaus. Meus pais moravam numa casa de palafita no bairro Cachoeirinha, onde também ficava a escola. Um dia, a professora me mandou ler a palavra “paralelepípedo”. Foi um trauma: como eu não falava a língua dos brancos, minha infância virou um terror. Sofri muito preconceito até conseguir me comunicar.
Só voltei à Terra Indígena Umariaçu aos 24 anos. Muita coisa tinha mudado. Ruas ganharam asfalto e pontes foram construídas onde antes só se atravessava de canoa. O alcoolismo, o crime e as gangues estavam por toda parte. Minha avó reclamava que já não podia fazer roça, porque os traficantes tinham invadido as áreas de plantio. Ela também dizia que, nos lugares mais isolados, os tikunas eram obrigados a cultivar folha de coca. Quem desobedecesse sofria ameaça de morte.
Para piorar, havia o radicalismo das igrejas evangélicas. Na minha infância, fazíamos o Ritual da Moça Nova: durante mais ou menos seis meses, logo depois da primeira menstruação, as jovens ficavam reclusas, em contato apenas com mulheres, e se preparavam para ser apresentadas como moças à comunidade. Com o aparecimento das igrejas, a prática sumiu, e algumas pessoas chegaram a incendiar uma casa onde se realizava o ritual. Hoje, a destruição de nossa cultura prossegue a todo vapor. Quando vou para o Umariaçu e me deparo com tamanho estrago, sempre choro.
O curioso é que, em Manaus, meus pais percorreram o caminho inverso. Compraram um terreno com outros parentes Tikuna, no bairro Cidade de Deus, onde fundaram a Comunidade Wotchimaücü, que se tornou referência dentro e fora do Amazonas. Lá a gente procura manter nossa língua e nossos costumes.
A morte do Bruno e do Dom abalou muito a região do Alto Solimões. Um parente do povo Kokama comentou que os assassinos ficaram com medo da polícia e se esconderam na própria Terra Indígena Vale do Javari. Quando vi o comentário num grupo de WhatsApp, liguei para o parente. Queria entender melhor a história, saber se aquilo fazia mesmo sentido, mas ele ficou com receio de me contar. Disse que os indígenas têm medo de estar grampeados. Falou até para eu me cuidar, mesmo que já não more ali.
Também andei conversando com o cacique Rockson Cruz, da minha comunidade, que hoje reúne 8 mil tikunas (somos o povo originário mais populoso da Amazônia). Ele contou que os indígenas não param de receber ameaças e que não é mais possível navegar no Solimões depois de certo horário, por causa dos piratas. Vários pescadores do Umariaçu e de outras aldeias tiveram peixes, barcos e motores roubados. Embora seja responsável por nos proteger, a Funai simplesmente não se mexe.
“Os tchiarás [não indígenas] invadem nosso território para caçar e cortar árvores. Quando os tikunas descobrem, são ameaçados. Os invasores juram que vão nos matar se formos reclamar em Tabatinga. Já denunciamos a situação para o Ministério Público, a polícia, a Funai, e nada mudou. Criamos até um grupo de mototaxistas, que levam nossos parentes ao Centro de Tabatinga e trazem de volta. Talvez isso dê um pouco mais de segurança para nós”, me disse o cacique. O território dos tikunas é vizinho do 8° Batalhão de Infantaria de Selva, mas os bandidos parecem não se importar. Como o crime contamina tudo ao redor, o resultado é indígena bebendo, se drogando e andando armado.
Há três anos, em Tabatinga, mataram outro indigenista, o Maxciel Pereira dos Santos, que era braço direito do Bruno na Funai. O assassinato ocorreu numa sexta-feira à tardinha, na avenida mais movimentada da cidade e na frente de todo mundo, incluindo a mulher do Max. Nunca prenderam ninguém.
O Max era conhecido por tocar um trabalho muito sério de fiscalização no Vale do Javari. Ele apreendia os pirarucus tirados ilegalmente de lá. Depois que o Max morreu, o Bruno entrou no lugar dele. Mas como a Funai está sendo destruída – o presidente Jair Bolsonaro trocou praticamente todos os diretores por policiais ou militares –, o Bruno precisou se licenciar do órgão para continuar defendendo os indígenas. Ele passou a trabalhar na Univaja. A associação representa cinco povos do Vale do Javari que têm contato frequente com os brancos (Kanamari, Mayoruna, Marubo, Matis e Kulina), além de outros três isolados ou de recente contato. O Bruno assumiu uma função que o Estado deveria estar exercendo, e isso numa área quase do tamanho de Portugal. Por isso, digo que ele foi morto pelo governo.
No passado, os povos originários da Amazônia guerreavam entre si, mas agora, diante de tudo o que está acontecendo, decidiram se aproximar. Existe uma nova guerra na região. Nossos inimigos são caçadores, garimpeiros, pecuaristas, madeireiros e traficantes. A ausência do Estado só os fortalece. O medo que se espalha pelas comunidades vai aumentar se os jornalistas forem embora.
Eu me sinto em dívida com as famílias do Bruno e do Dom. Eles doaram suas vidas pela causa indígena, saíram de seus lares para contribuir com a nossa luta, mesmo sabendo dos riscos que corriam. São exemplos muito dignos num país carente de dignidade. Recentemente, circulou pela internet um vídeo em que o Bruno entoa um canto do povo Kanamari chamado Wahanararai. A cena me emocionou demais. Não é qualquer um que interpreta um canto indígena de maneira tão bonita. A gente vê que o Bruno estava sentindo cada uma daquelas palavras, estava vivendo aquilo. Quero dedicar a ele e ao Dom um poema que escrevi há alguns anos, cuja tradução para o português é mais ou menos a seguinte:
Hoje a floresta está triste
Os rios estão secando
Os pássaros não cantam mais
Só sabem chorar
O céu sangra
E as borboletas voam para longe
Na minha aldeia as crianças ardem [em febre
Queimando até o sopro de cura do pajé
Somos sobreviventes, precisamos viver
Somos o grito da floresta
Somos os peixes subindo a correnteza
Somos a revoada das araras no pôr do sol
Somos os filhos desta Terra
A floresta é nossa. Nós somos a floresta
Na língua dos tikunas, o poema fica assim:
Nhumarü naῖnecü rü nangetchaü
Nhumarü natügü rü nitche’e
Werigü tama marü nawiye’egü
Nhumarü na au’e
Daῦna’ane rü napu iduüma
Berugü rü yawa nae’gü
Tchautchiüãnewa buãta rü tia’ünegü
Yuücü arü Cue’ rü tiaãẽgü
Name imaẽü
Yiemagüni i ã’ügagü i naῖnecüwa
Yiemagüni i tchoni iῖgü de’a iyaeüwa [i’ῖgü
Yiemagüni i ngo’ügü i totchimaüῦ [ü’acü i derenecü
Yiemagüni i maῖyugü i du’ügü i po [raügü
Nha’ã i naῖnecü i torü ni’ῖ
Não queremos mártires. Queremos os nossos heróis vivos. Em 2019, o parente Paulino Guajajara foi morto a tiros por invasores da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão. O caso teve repercussão internacional, mas os assassinos ainda não foram julgados. Quantos mais terão de morrer para que a violência acabe? Como garantir a segurança dos tikunas, kokamas, marubos e dos parentes isolados? Se a gente não fizer nada, o que vai sobrar para os que vierem depois de nós? Volto sempre ao Alto Solimões porque quero ajudar meu povo a sobreviver física e culturalmente. Os antigos dizem que, se os tikunas acabarem, o mundo acabará também. Eu e muita gente acreditamos que eles estão certos.
Leia Mais