ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
No buraco com Lobianco
Humor musical num inferninho gay
Renato Terra | Edição 91, Abril 2014
“Entra no meu buraco/Entra que tem bebida/A vida de artista é dura/Eu não pago as minhas dívidas/Eu recebo minhas entidades/Minha Pombagira ri/Neste palco eu serei maior/Bate palma pra mim”, cantou o humorista Luis Lobianco à frente do palco. A música vinha de uma máquina de videokê ao fundo. Sobre cenas bucólicas da natureza, a tela exibia a letra original do hit gospel parodiado pelo comediante: “Entra na minha casa/Entra na minha vida/Mexe com minha estrutura/Sara todas as feridas/Me ensina a ter santidade/Quero amar somente a Ti/Porque o Senhor é o meu bem maior/Faz um milagre em mim.”
Lobianco é conhecido do público como ator do Porta dos Fundos – é o papa gay que encomenda a pintura da Capela Sistina a Michelangelo num esquete da trupe carioca. Naquela noite, o ator usava uma maquiagem carregada, como se tivesse desembarcado do ônibus de Priscilla – A Rainha do Deserto. Apresentava-se para uma audiência de oitenta pessoas apinhadas – sentadas e em pé – numa sala de 30 metros quadrados. O chão do palco estava pintado com as cores do arco-íris. Havia candelabros e corações na parede, e, do teto, pendia um globo prateado reluzente.
Na plateia, homens de camisa social, meninas com as roupas da moda, gays de várias idades e senhoras circunspectas cantavam, aplaudiam e gritavam gracinhas. O programa da noite era o Buraco da Lacraia Dance Show, espetáculo de humor encenado todas as sextas numa boate LGBT na Lapa, na região central do Rio de Janeiro. Lobianco é um dos cinco amigos que criaram e protagonizam o espetáculo, em cartaz há dois anos.
A paródia de Faz um Milagre em Mim foi a primeira das dezenas de canções que os atores apresentaram durante duas horas. No repertório, clássicos do karaokê, como Escrito nas Estrelas, famosa na voz de Tetê Espíndola, e Porto Solidão, sucesso de Jessé, se alternaram com surpresas como uma versão de Pintinho Amarelinho cantada em alemão por Éber Inácio.
Num dos números, Lobianco permaneceu estático no centro do palco, caracterizado como uma Bibi Ferreira anárquica, com um vestido de paetês, óculos escuros e uma peruca negra de corte Chanel tamanho GG. Sobre um arranjo de chanson française de cabaré, o humorista encadeava palavras aleatórias pronunciadas com sotaque francês carregado, como Prozac, Rivotril ou Vivenda do Camarão. Terminou com um xingamento endereçado a Marco Feliciano – em português.
O ingresso do espetáculo custa 35 reais, com cerveja e caipirinha liberadas a noite toda. À medida que o show avançava, a plateia ia se soltando. Num número em que Letícia Guimarães cantou caracterizada de Amy Winehouse, o público se ouriçou e pontuou a apresentação com gritos de “Gostosa!” e afins. Do fundo da plateia, um gaiato preferiu um galanteio improvável: “Falecida!”
O Buraco da Lacraia, inferninho que abriga o espetáculo, funciona num casarão com fachada antiga numa rua pouco movimentada. Horas antes da apresentação, com a casa ainda vazia, o quinteto explicou que o videokê era um hobby entre os amigos. A turma se reunia para cantar em casas da Lapa e na Feira de São Cristóvão. “Era uma macacada, uns faziam as bailarinas e outros, backing vocal”, lembrou Letícia Guimarães. “A gente se jogava no chão, dava cambalhota”, completou Patrícia Pinho. O grupo chamou a atenção dos frequentadores, e desconhecidos começaram a pagar músicas para vê-los cantar.
A ideia de transformar as performances em espetáculo veio quando Sidnei Oliveira, ator do grupo e frequentador do Buraco da Lacraia há dez anos, recebeu do proprietário a missão de encher a casa nas noites de sexta. “No começo estávamos todos duros e desempregados, e tínhamos tempo para ensaiar”, contou Letícia. O grupo começou a preparar um espetáculo influenciado por referências como o grupo Dzi Croquettes, o teatro de revista, os shows de cabaré e o Cassino do Chacrinha. “Acabou dando nesse show, uma ode ao videokê”, contou a atriz.
O Dance Show é um espetáculo low cost. A cenografia saiu por parcos 2 500 reais: além do aparelho de videokê, há plásticos pretos estendidos no fundo do palco decorados com alguns discos de vinil. A equipe é enxuta: há apenas um diretor, além dos cinco atores, que se encarregam da produção, da arrecadação e do rateio da bilheteria.
A ideia original era fazer apenas quatro apresentações, principalmente para os amigos, mas o público cresceu e pediu mais. Sete mil pessoas já assistiram ao espetáculo, segundo a estimativa da trupe. “No início era um público do meio artístico”, explicou Luis Lobianco. “Hoje a gente não tem ideia de quem vem.”
O comediante do Porta dos Fundos disse que o espetáculo é rigorosamente ensaiado. “Até o que parece espontâneo é marcado.” Mas o clima intimista e a bebida liberada às vezes criam situações que não estavam no roteiro. Houve o dia em que espectadores pegaram instrumentos no banheiro feminino, que funciona como camarim auxiliar, e iniciaram um show paralelo. “Já teve gente que subiu no palco com cerveja, possivelmente tomado por alguma entidade”, brincou Lobianco. “É um público etílico.”
Letícia Guimarães atribui os arroubos da plateia ao ambiente único do Buraco da Lacraia. “Não tem frescura, o copo é de plástico, a cerveja é Itaipava”, explicou. “As pessoas ficam bêbadas de um jeito diferente porque aqui é um lugar libertador.” Lobianco disse que a empreitada deu certo também porque ofereceu uma alternativa cultural barata e agregadora. “O público não tem cara. Vem gay, travesti, evangélico, famosos, gente que estava passando na rua”, contou. “Já trouxe até minha família.”
Assim que o show terminou, apareceram no canto do palco dois garçons sarados vestindo apenas uma gravata-borboleta sobre o torso nu. O proprietário pediu a palavra e convidou a plateia: “A pista de cima está aberta.”