ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2012
No caminho da ordem
Uma instituição colonial atravessa o destino do espanhol Coscollá
Luiza Miguez | Edição 74, Novembro 2012
O espanhol José Palacios Coscollá vive da paixão pelo esporte. Nos anos 50 e 60, foi goleiro do Fluminense e do São Cristóvão. Guarda, orgulhoso, fotos com Zico, Pelé e Fio Maravilha. Aos 74 anos – 64 de Brasil, para onde emigrou com a família –, Coscollá bate ponto no trabalho de segunda a sábado, às sete e meia da manhã. Uma hora depois, abre aos clientes o sobrado centenário onde funciona a Mariu’s Sport, loja de material esportivo que inaugurou em 1970 no número 19 da rua da Carioca, no Centro do Rio.
Coscollá se veste com o estilo de um jogador aposentado: camiseta de grife estrangeira e óculos Ray-Ban espelhados que tomam a maior parte do seu rosto. Foi com eles que escondeu as lágrimas ao se lembrar da tarde em que recebeu, no início de agosto, uma carta enviada também para outros dezoito comerciantes da rua. “Era um documento do proprietário oferecendo para venda, por 54,8 milhões de reais, um bloco de 42 imóveis, incluindo o meu.” Ele e os demais locatários tinham trinta dias para manifestar o desejo de empreender a compra milionária. “Vender uma rua inteira, tombada pelo patrimônio histórico, era tão absurdo que não deu para acreditar.”
O proprietário em questão é a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, uma irmandade de católicos leigos conhecida pela sigla VOT. O sobrado alugado por Coscollá é um dos cerca de 400 imóveis que a Ordem preserva do patrimônio acumulado depois de sua chegada à cidade, em 1619 – época em que o Rio era pouco mais que um pântano insalubre, onde viviam cerca de 30 mil pessoas.
Nada simboliza mais a influência da VOT naquela cidade colonial do que a Igreja de São Francisco da Penitência, no morro de Santo Antônio, colado à rua da Carioca. Branca e austera por fora, a igreja da década de 1730 é uma joia do barroco português, coberta de ouro em suas paredes internas, abóbadas, colunas e púlpito. A película dourada reveste anjos, aves, folhas e parreiras, esculpidos em cedro. A estátua de são Francisco, ajoelhado aos pés de Cristo, está no centro do altar.
A construção que homenageia o santo mendicante foi financiada por doações dos integrantes da VOT. Eles reproduziam aqui costumes da metrópole, onde o bom devoto demonstrava sua posição social e religiosa por meio da participação nas irmandades, organizadas por profissão, estrato social e, no Brasil, pela cor da pele. Na colônia, os franciscanos seculares eram intelectuais e comerciantes.
“As irmandades não eram nada discretas”, diz o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti. “O maior prazer era divulgar seus integrantes e o quanto de dinheiro tinham.” Professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Crônicas Históricas do Rio Colonial, Cavalcanti conta que a Coroa exigia austeridade nas casas, proibindo o uso de prata e ouro. Para fins religiosos, o luxo era liberado. Irmãos da VOT, como o comerciante Cosme Velho Pereira, doaram fortunas à confraria.
Foi assim que a irmandade recebeu terrenos e casarões nos arredores do morro de Santo Antônio, na região portuária e em bairros vizinhos ao núcleo original da cidade. Apenas duas outras ordens seculares chegavam a lhe fazer sombra: a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia e a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, cuja igreja portentosa sobreviveu ao bota-abaixo do casario do Rio antigo quando foi aberta a avenida Presidente Vargas, há quase setenta anos.
O patrimônio das confrarias foi incrementado ainda por terrenos cedidos pela prefeitura, para que neles construíssem igrejas, orfanatos, hospitais e cemitérios. Elas eram então as principais provedoras de serviços públicos. Na República, a VOT sobreviveu abrindo seus imóveis à exploração comercial. O valor dos aluguéis, no entanto, foi baixando com a manutenção precária das casas e edifícios e a decadência das áreas em que estão situados.
Quando Coscollá abriu a Mariu’s Sport, com um antigo sócio chamado Mariu, circulavam na rua da Carioca clientes endinheirados, que depois migraram para os shoppings e para o comércio da Zona Sul. Agora que a região voltou a ser valorizada, com as obras para a Copa e a Olimpíada, o espanhol e seus vizinhos se viram barrados na festa. No fim de outubro, eles organizavam o enterro simbólico da via. “Combinamos de fechar o comércio para pôr panos pretos nas fachadas contra esse sacrilégio”, disse o espanhol. A banda da Sociedade dos Amigos da Rua da Carioca ensaiou marchas fúnebres para a manifestação.
A Sociedade entrou com uma ação no Ministério Público, tentando anular a venda. Presidente da associação e dono da Mala Ingleza, loja de 112 anos, Roberto Cury argumenta que, por lei, o governo deveria ter preferência na compra de imóveis tombados. O professor Nireu Cavalcanti diz que seria necessária uma análise dos registros de doação dos imóveis à VOT, de modo que o possível fim original de assistência social não se transforme em lucro privado.
Até o final de outubro, os locatários ainda não tinham sido oficialmente notificados da venda dos sobrados, arrematados pelo Opportunity Fundo de Investimento Imobiliário. O Fundo diz que um de seus objetivos é lucrar com aluguéis, e que entrará em contato com os “clientes e parceiros” da Carioca. O Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), que tombou os imóveis, se declarou surpreendido com o anúncio da venda. Encaminhou um ofício questionando o procedimento, e a VOT respondeu ter sido motivada por urgência financeira. O bloco vendido inclui imóveis não tombados, o que, segundo o Inepac, impede o privilégio de compra pelo estado. Seria preciso anular a venda e negociá-los em separado.
A Arquidiocese do Rio interveio na vot no ano passado. Os negócios da Ordem passaram a ser administrados pela associação paulistana Lar de São Francisco na Providência de Deus. Gilmar Santos, do conselho administrativo da nova gerência, diz que a VOT tem quase 140 milhões de reais em dívidas. “Estávamos pagando 1,2 milhão de reais por mês de juros bancários. É impossível para qualquer empresa sobreviver.”
Fora dos gramados profissionais há quarenta anos, Coscollá só parou de jogar futebol há pouco tempo, a contragosto, porque sentia dores no corpo. Enquanto conversa, ele acompanha pelo canto do olho o movimento impaciente de um cliente que experimenta joelheiras ortopédicas. “Vou ser sincero”, diz, agora tirando os óculos. “Talvez leve um tempinho, mas acho que estamos mesmo na rua. Só que a partida a gente nunca pode pensar que já perdeu, tem que tentar. Sei que eu vou arrumar outro lugar, dar meu jeito e reabrir.”