No tempo em que os bichos falavam
Os desenhos quase infantis do pseudomédico e quase geógrafo português que estudou a fauna e a flora brasileiras no século XVIII
Francisco António de Sampaio | Edição 21, Junho 2008
Ponha-se na pele de Francisco António de Sampaio, um português “de gênio naturalmente curioso”, autodidata em “medicina, cirurgia e farmácia”. Ele veio para o Brasil ainda menino, em meados do século XVIII. Morava em Cachoeira, no interior baiano, quando apareceram por lá esbirros da administração ultramarina, “prendendo, seqüestrando e extorquindo dinheiros avultados”. Numa vila onde o médico mais próximo ficava “a 14 léguas por mar e mais de 30 por terra”, Sampaio foi multado como charlatão. Passou então a se intitular “geógrafo”. Mas não desistiu de remediar a ignorância da metrópole a respeito dos recursos naturais da colônia, preparando uma História dos Reinos Vegetal, Animal e Mineral, em três tomos, para a Academia das Ciências de Lisboa.
Sampaio se debruçou sobre suas plantas e seus bichos com um olho nos espécimes à sua frente e o outro no método científico de Lineu. Na época, o europeu que, do outro lado do Atlântico, quisesse vislumbrar a forma de um tamanduá-bandeira, teria que se fiar em relatos de viajantes que, ao longo dos séculos, o apresentaram como um bicho do tamanho de “um grande cão”, “com cauda comprida e coberta de cerdas como os esquilos” e “cabelos grossos como os de um cavalo”. Sampaio, bem ou mal, retratou o tamanduá e explicou as funções de sua língua “longa e elástica”. Isso, em 1793, era um ensaio de zoologia nos trópicos.
Francisco António de Sampaio desenhou e descreveu 104 espécies de animais, de mamíferos a peixes, de insetos a moluscos. Despachava os originais para Lisboa em caixotes, e esperava até oito anos para saber se as remessas chegavam ao destinatário. Nesse passo, a posteridade perdeu de vista sua obra, recolhida a coleções particulares, arquivos públicos ou anais bibliográficos. Os desenhos e textos de Sampaio levaram mais de dois séculos para retomar o caminho das livrarias, reunidos pela editora Dantes num pequeno volume chamado Eu Observo e Descrevo. O atraso reduziu a pó as veleidades científicas de Sampaio. Agora, ele serve mais do que nunca para mostrar que o Brasil já teve infância.
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