Além de ser proibido olhar para o chão, aprendi que no tango é sacrilégio conversar enquanto se dança. O ritual exige silêncio. A dama que se entrega por completo ao parceiro pode, inclusive, dançar de olhos fechados FOTO: ALEJANDRO LIPZYC
Nos braços do meu taxi dancer
Uma brasileira aprende o passo-a-passo do tango argentino
Adriana Marcolini | Edição 44, Maio 2010
Dez anos atrás, a jornalista e tradutora carioca criada em São Paulo ADRIANA MARCOLINI embarcou para Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, onde viu o que é um país devastado pela guerra. Foram seis meses de trabalho junto ao Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados. Cinco anos depois, retornou à ex-Iugoslávia para fazer uma pesquisa para o Laboratório de Estudos da Intolerância, da Universidade de São Paulo. Decorridos outros cinco anos, Adriana voltou a fazer as malas. Dessa vez, para cumprir contrato de nove meses no Escritório de Comunicação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Buenos Aires. Vencido o prazo, esticou a permanência na Argentina por mais um ano, trabalhando como free-lancer para publicações brasileiras. Retornou da capital portenha com o troféu particular que buscava, aos 49 anos: destreza para, do alto de um sapato salto agulha e sola de cromo, deslizar numa pista de milonga sem ser apontada como gringa.
QUINTA-FEIRA, 3 DE ABRIL DE 2008_Desembarco em Buenos Aires com uma obstinação: aprender a dançar tango direito. As poucas aulas que frequentei na academia Tango B’aires, em São Paulo, tinham me apontado o caminho.
12 DE MAIO_Fui bisbilhotar um curso de dança indicado por um amigo. A aula, no amplo salão da milonga Porteño y Bailarín, terminava às 22 horas – uma hora antes da abertura do salão como casa noturna. Havia alunos demais e não gostei da professora. Mas conheci o assistente dela, um italiano chamado Alfredo Caravita, que só cobrava 10 pesos (por volta de 5 reais) pela aula em grupo. Ele se formou pela Universidade do Tango, mantida pela prefeitura de Buenos Aires. A universidade tem dois cursos de três anos de duração: instrutor e professor de história do tango. Ambos são gratuitos. Migrei para as aulas do professor Caravita.
Logo no começo, fiquei sabendo que nas milongas portenhas, as casas onde se dança tango em Buenos Aires, há três maneiras diferentes de bailar: o “tango de salão”; o “milonguero” e o “tango nuevo”. Enquanto o primeiro mantém uma distância um pouco maior entre os corpos e o abraço é mais flexível, o segundo é mais fechado, porque ambos parceiros de baile estão mais próximos um do outro. Já o último, que como diz o nome, é um novo tipo de baile, rompe com todas as estruturas na maneira de dançar o tango. Em teoria, este último estilo deveria ser praticado somente por aqueles que já dominam os passos da dança – o que lhes permite partir para a improvisação. Escolho aprender o “tango de salão”, por ser o que me parece mais fácil. O aprendizado começa com intermináveis exercícios de “caminhada individual”. À primeira vista parece fácil, mas caminhar ao som do compasso é um exercício e tanto. É a forma mais sutil de bailar. O bom dançarino não é aquele que faz figuras múltiplas na pista – os movimentos com as pernas que tanto fascinam os estrangeiros – mas aquele que é capaz de ter uma caminhada elegante, sutil e expressiva. Quem é do ramo ensina: uma figura se aprende em uma hora; já o caminhar pode levar dez anos.
A direção que se quer imprimir ao movimento (para a esquerda, para a direita, adiante, para trás), o ritmo e a amplitude dos passos fazem parte do repertório ilimitado à disposição de um dançarino de tango. Caravita enfatiza que em alguns passos, a forma de pisar no chão, meio de lado, começando pela lateral interna do pé, imprime uma elegância especial, sobretudo às mulheres. Quando bem delineados, os pés femininos, mesmo calçados, adicionam sensualidade ao tango.
Nas aulas seguintes, passamos para a “caminhada em dupla”, nome dado ao movimento do par que se desloca um de frente para o outro. As damas aprendem a manter os braços meio estendidos, com os cotovelos ligeiramente dobrados, e a apoiar as palmas das mãos sobre o peito do parceiro, perto dos ombros. Feito isso, o par passa a caminhar para frente e para trás por toda a superfície do salão. O objetivo do exercício é iniciar a mulher na arte de sentir o contato do tórax do parceiro – é com o peito que o cavalheiro conduz a dama.
Além da regra genérica de ser proibido olhar para o chão, aprendi que no tango é sacrilégio conversar enquanto se dança. O ritual exige silêncio. A dama que se entrega por completo ao parceiro de tango pode, inclusive, dançar de olhos fechados. É uma viagem, garante o professor. Talvez algum dia eu chegue lá. Por enquanto, não consigo sequer sentir o tórax do meu companheiro – primeiro passo para poder ser conduzida por ele.
2 DE JUNHO_Péssima notícia: Caravita anunciou que esta seria a nossa última aula no endereço atual. Devido a problemas com o proprietário, teve de arrumar outro local, que achei pequeno demais. Não o segui.
16 DE JUNHO_Conheci um colombiano que dá aulas individuais por apenas 10 pesos, Ernesto Falla. Ele me garantiu ter um método capaz de me fazer sair do estágio de indigência de tanguista e chegar ao nível intermediário. Isso significa dominar os oito passos básicos do ritmo: “posição parada com os pés juntos”, “saída para trás”; “saída de lado”; “pequena caminhada”, também chamada de “parte andada”; “cruzamento”; e “resolução final”, em três etapas. Eles constituem a estrutura básica da coisa, e podem ser combinados entre si ou integrados a outros elementos. Não é imperativo que a numeração de um a oito siga essa ordem.
Marcamos a primeira aula para o sábado, na minha casa. Combinamos que ele traria um casal de colombianos para os exercícios ficarem mais atraentes.
5 DE JULHO_Começamos a ensaiar um elemento cheio de armadilhas, o “abraço”, considerado o “coração” do tango dançado. Nessa posição, a dama deve passar o braço esquerdo sobre o ombro de seu parceiro e pousá-lo sobre as costas dele. Sem se dependurar, contudo. Não existe um ponto exato onde apoiar, pois isso vai depender da altura do parceiro e do estilo de dança de cada um. O braço direito masculino, por sua vez, é posicionado nas costas da dama e a mão direita deve ficar na altura da escápula de sua parceira de baile. Se ele a coloca mais para baixo, tira-lhe a mobilidade.
Os outros dois braços do par – o direito feminino e o esquerdo masculino – formam a segunda parte do “abraço”. No tango dançado sob a forma mais tradicional, ou seja, no “de salão”, se ensina mantê-los dobrados a 90 graus do chão, com toque de mãos sob certa pressão – não confundir com força. A comunicação ideal entre dama e cavalheiro se dá através desse toque: quando ele é bem executado, a mulher recebe um impulso e o transforma em movimento. O abraço confere estabilidade, segurança e proteção à parceira de baile. Só que manter os dois braços unidos a 90 graus é cansativo; quem não tem preparo físico sentirá a musculatura na manhã seguinte. Mantê-los firmes, sem pender, é uma arte.
7 DE JULHO_Mais cedo ou mais tarde vou ter de me arriscar numa pista de dança de verdade. Só em Buenos Aires há mais de oitenta milongas. Li no La Nación que a indústria do tango gera mais de 400 milhões de pesos (cerca de 200 milhões de reais) por ano.
11 DE JULHO_Para a minha estreia, acabei escolhendo a La Viruta, por saber que o clima ali era descontraído e adequado para iniciantes. Tinha ido lá na semana anterior e visto pessoas dançando mal sem serem importunadas. Isso me animou.
Como tudo em Buenos Aires começa tarde, o salão da Viruta (ingresso: 18 pesos, 9 reais) só abre à meia-noite. Se chegar antes, não entra. Fui sozinha. Pareceu-me adequado ir de vestido de lã cinza sem manga, e uma blusa rendada por baixo, de cor vinho. Calcei um sapato de salto alto, conservador. Ao entrar no salão – imenso recinto retangular com dois bares nas pontas –, as mesas, alinhadas nas duas laterais da pista, ainda não estavam totalmente ocupadas. Sentei-me em uma delas e pedi um uísque. Passei um tempão observando os pares na pista. Por fim, decidi que não ficaria sem dançar. Como ninguém havia me convidado, levantei e fui quebrar a regra número 1 das milongas portenhas: uma mulher jamais convida um homem para dançar. A iniciativa deve vir do cavalheiro. Lembrei dos bailinhos de adolescente no interior do Brasil, com as meninas cochichando entre si, à espera de serem tiradas para dançar por algum menino, de preferência sem espinhas. Mas como há muito não sou mais adolescente e tampouco sou portenha, e estou mesmo resolvida a bailar, encarei a tarefa, protegida pelo fato de ninguém me conhecer. Concluí que o máximo que poderia acontecer seria levar um “não”. Na Viruta, a etiqueta do tanguista me pareceu ser elástica.
Abordei primeiro um rapaz que falava inglês com sotaque britânico. Trocamos umas duas frases, o suficiente para que eu percebesse que ele estava um pouco bêbado. Dançamos uma só música e nos despedimos. A experiência não foi grande coisa – nossos passos deram um nó. Minha segunda escolha recaiu sobre um argentino que, apesar do inusitado da situação, aceitou. Expliquei que era estrangeira, ainda estava tendo aulas, mas que não gostaria de sair de Buenos Aires sem dançar numa milonga. No hay problema, vamos, respondeu ele, secamente. A tanda, a tradicional sequência de quatro tangos tocada nas milongas, já estava na metade e só dançamos duas músicas. Talvez meio atrapalhados, mas dançamos. Ao final, ainda arrumei coragem para perguntar como havia me saído. Ele comentou que na segunda música me saí melhor. Retornei várias vezes a La Viruta. Ali, podia errar sem ser malvista.
15 DE AGOSTO_Hoje começa mais uma edição do Festival Buenos Aires Tango. O evento é promovido pela prefeitura. Tem de tudo: concertos musicais, bailes populares, campeonato mundial de dança. Os ingressos são gratuitos e disputadíssimos. Consegui assistir ao show do bandoneonista Rodolfo Mederos. Achei divino!
24 DE SETEMRBO_A primavera dá os primeiros ares de sua graça. É quando Buenos Aires adquire uma coloração lilás, trazida pelos inúmeros jacarandás espalhados pela cidade. Fui conhecer a Maldita Milonga, no bairro de San Telmo, que lembra um pouco a região paulistana da Vila Madalena. De início, pensei ter errado de endereço, pois não havia placa alguma. Apenas um cartaz no muro lateral do edifício.
Subi uma escada meio escura e cheguei ao salão. Numa das pontas estava o palco elevado. Na outra, um bar com balcão e mesas com cadeiras nas laterais. O ingresso me custou 25 pesos. Assim como as demais casas de tango da capital, que só abrem em determinados dias da semana, a Maldita só funciona às quartas-feiras. Às segundas, o nome muda para Bendita Milonga.
Ainda do lado de fora, percebi que muitas mulheres traziam, além da bolsa, uma sacola de pano na qual guardam o sapato de tango, que só será calçado no interior do salão. Por terem saltos estilete de 7, 8 ou 9 centímetros, são pouco confortáveis para andar na rua. Além disso, podem estragar e são caros. Um bom par feminino, em média, não sai por menos de 400 pesos, mas pode chegar a preços astronômicos quando feito sob encomenda. A forma do calçado precisa dar firmeza ao metatarso (a parte dianteira do pé, sobre a qual a mulher se apoia no chão quase o tempo todo durante o baile) e ao calcanhar. As solas são de cromo, aptas para deslizar em qualquer tipo de piso.
Às 23 horas subiu ao palco a Orquestra El Afronte, formada por onze músicos: três violinos, um contrabaixo, quatro bandoneones, um piano, um violoncelo e um cantor. Esta vem a ser a formação tradicional de uma orquestra típica de tango. É deslumbrante a sensação de ver, ouvir e acompanhar tão de perto o diálogo de quatro bandoneones.
Para a Maldita Milonga reservei um vestido preto de decote enviesado, bastante incomum. Meu primeiro parceiro na pista foi um inglês expatriado que conheci no balcão do bar. Logo ficou patente que o nível dele era superior ao meu, e essa distância ficou mais óbvia quando o vi de novo na pista, com alguém à sua altura. Depois me aventurei com um chico argentino que bailaba de uma forma diferente, com muita improvisação e criatividade. Lindo, mas difícil de acompanhar. Eu ainda estava longe desses voos mais altos. Aprendi que, para evitar trombadas, todos os pares dançam num mesmo sentido: contrário aos ponteiros do relógio. A regra é fundamental para a harmonia na pista.
Nas casas noturnas, uma sequência de quatro tangos costuma ser seguida de uma cortina, nome dado ao intervalo entre uma tanda e outra, marcado por qualquer música de outro ritmo – rock, salsa ou chacarera (folclore argentino). Em princípio, não se deve dançar durante a cortina. É o momento certo para voltar à mesa, conversar ou comer algo. Muitas vezes, a orquestra ou o DJ aproveita o intervalo para mudar o estilo de tango. Ele pode introduzir uma tanda de milongas – neste caso, a expressão significa outro ritmo tanguero, rápido e jocoso, cujas raízes negras saltam aos olhos. Saber bailar una milonga é outro capítulo.
Tornei-me habituée da Maldita.
29 DE OUTUBRO_Aventurei-me na El Beso, a casa de tangos de maior pedigree que frequentei até agora. O ambiente lembra um cabaré – tudo em tom escarlate, meio escuro. Frequentadores menos jovens, mais elegantes. Aqui, mais do que em qualquer outra casa, funciona o cabeceo, o movimento meio afirmativo, meio interrogativo, que os homens fazem com a cabeça para convidar uma dama à pista, seguido de um sorriso protocolar. O salão tem uma ala de mesas reservada para cavalheiros, outra para damas, uma de frente para a outra com a pista de dança a separá-las. Um espaço menor, em frente ao bar, é reservado a mesas para casais.
Não me senti bem no ambiente. Nunca tinha visto setores separando mulheres de homens, numa versão portenha do clube da Luluzinha e do Bolinha. Como as damas não podem tomar a iniciativa da escolha do par, é como se fossem mercadorias ali expostas para avaliação. Se ao menos o contrário também fosse permitido. Lembrei de ter lido que nos primórdios da história do tango os homens dançavam entre si. Isto acontecia porque a origem prostibular, de subúrbio, do gênero musical não era bem-vista pelas famílias de classe média, que proibiam suas donzelas de dançá-la. Restava então aos homens dançar com as prostitutas. Ou entre si.
6 DE DEZEMBRO_À noite, a avenida de Mayo esteve em festa. Em pleno clima pré-natalino a mais bela das avenidas portenhas abrigou o evento Gran Milonga Nacional. Três grandes palcos foram montados para a apresentação de várias orquestras, trios e sextetos de tango, alguns acompanhados de bailarinos profissionais. Quem quis se esbaldou de dançar na rua. Uma beleza.
11 DE DEZEMBRO_Hoje é o Dia Nacional do Tango e Buenos Aires comemora a data de nascimento de Carlos Gardel e Julio De Caro. Concertos, programas de rádio, artigos na imprensa, tudo acontece nesse dia em que o tango é o grande homenageado. Escolhi assistir ao concerto de um dos melhores conjuntos musicais da Argentina, a Orquestra Color Tango, conhecida por recriar o estilo musical de um dos ícones do gênero, o pianista, compositor e maestro Osvaldo Pugliese.
30 DE ABRIL DE 2009_Aconteceu! Foi no tradicional Salão Canning. Pela primeira vez, sem que eu esperasse ou fizesse esforço, dois homens me convidaram para dançar. Para quem está há quase dez meses tentando não parecer gringa na pista, foi um acontecimento e tanto ser tratada como tanguera.
Eu estava à mesa com dois amigos, uma argentina e um americano residente em Buenos Aires, quando veio o primeiro cabeceo. Levei um tempinho até perceber que era dirigido a mim. Já plenamente inteirada da etiqueta, levantei, caminhei em direção ao cavalheiro cinquentão que estava em pé e me olhara, e expliquei que não dançava bem. Como ele insistisse, lá fomos nós. A tanda já estava na metade e a sensação não foi das melhores. Fiquei inibida.
O segundo parceiro foi simpático. Seu cabeceo foi mais discreto, seguido de uma pequena e óbvia frase: Querés bailar? Desta vez a coisa fluiu. Dançamos uma tanda inteira, ou seja, cerca de doze minutos, da forma como deve ser: deixando que o toque da mão e o tórax do corpo masculino conduzam o par.
10 DE MAIO_Animada com meu desempenho da semana anterior, voltei às pistas. Hoje também fui convidada a dançar duas vezes. Ambas foram um desastre. Cheguei a pedir ao primeiro cavalheiro para que dançasse mais devagar. Em vão. En el tango es el hombre el que comanda, retrucou, severo. Tive de calar a boca e obedecer. O segundo, mais tolerante, me deu algumas dicas e ainda voluntariou o nome de uma professora. Decididamente não era meu dia. Tudo isso aconteceu numa milonga que funciona em um coreto de praça no bairro de Belgrano, a poucos metros do barrio chino.
16 DE MAIO_É sábado à tarde, almocei e estou morrendo de preguiça. Tenho vontade de me esparramar no sofá e mergulhar num livro. Mas acabei rumando para San Telmo, onde Stella Barba, uma professora argentina indicada por uma amiga, dá aulas para grupos com o apoio de um assistente. O ensino de tango ministrado por uma dupla de professores (um homem e uma mulher) costuma ser mais produtivo, é claro. A aula foi em um salão de hotel, com piso de madeira. A parede frontal era espelhada, permitindo que os alunos observassem o que estavam fazendo. Na lateral, uma barra de madeira, daquelas usadas no aprendizado de balé, funcionava como apoio nos exercícios.
Começamos com a tradicional caminhada, vital para entrar no compasso da música. Em seguida, a professora me colocou de frente para a barra e me fez segurá-la com as duas mãos. “Vamos praticar o pivô”, esclareceu. “No tango, a mudança de direção é produzida pela oposição entre os quadris e os ombros, ou seja, enquanto a parte superior do corpo se move para um lado, a inferior vai para outro”, explicou. Este malabarismo só é possível graças ao “pivô”, um elemento do baile que leva tempo para ser incorporado e costuma provocar desequilíbrio. Pratiquei os exercícios de pivô segurando na barra, girando primeiro a parte superior do corpo e, ao mesmo tempo, transferindo o peso de uma perna para a outra, prestando atenção para manter o peso no metatarso, e não em toda a planta dos pés. Já havia feito este tipo de exercício, mas nunca com uma barra. Gostei.
11 DE JULHO_Dia do Bandoneon. A data foi escolhida por ser o dia de nascimento de um dos maiores bandoneonistas de todos os tempos, Aníbal Troilo (1914-75), “El Pichuco”. O instrumento é dotado de uma sonoridade ambígua e escorregadia, que o identifica com a tristeza melódica do gênero musical. É composto de placas de linguetas metálicas ligadas por um fole. Sua execução, dificílima, acontece com o abrir e fechar do fole. Ao contrário do acordeom, não dispõe de um teclado cromático, e sim de um conjunto de botões para cada mão, cada botão produzindo uma nota diferente à medida que o fole é aberto ou fechado.
O bandoneon chegou à Argentina por volta de 1870, trazido por imigrantes alemães. Foi concebido pelo alemão Carl Friedrich Uhlig em torno de 1830, para substituir o órgão nos ofícios religiosos, funerais e procissões, e aperfeiçoado por seu compatriota Heinrich Band, um professor de música e luthier que passou a fabricá-lo para fins comerciais. O nome do instrumento deriva do seu sobrenome e de Band Union, a empresa que comercializou os primeiros exemplares.
29 DE JULHO_Decidi me dar de presente algumas aulas com Edith Paez, a enésima professora que me foi recomendada por amigos. Somos apenas quatro alunos. Sei que o ideal mesmo seria ter aulas particulares de uma hora e meia, mas para o meu bolso ainda não dá.
15 DE AGOSTO_Dessa vez aproveitei mais o festival anual de tango. Foram duas semanas de concertos de música, um campeonato mundial de dança e um baile diário em plena calle Florida, montado na antiga loja de departamentos Harrods, hoje desativada. Fechei com chave de ouro a parte musical, com uma homenagem ao letrista de Piazzolla, o poeta uruguaio Horacio Ferrer, que recitou seus poemas e cantou alguns clássicos. Tudo isso no Teatro Avenida, um pequeno tesouro fundado em 1908 pela comunidade espanhola.
A milonga do festival foi um espetáculo à parte, com os mais variados tipos da fauna humana tanguera. Desde pessoas do povo, até senhores bem-vestidos, ou turistas europeus que tentavam entender alguma coisa. Tudo de graça. Já o concurso mundial de dança foi vencido pela dupla de bailarinos Hiroshi e Yamao, vinda do… Japão. O casal de professores tem uma milonga em Tóquio. A casa faz sucesso por ser uma dança de contato físico intenso, inimaginável na cultura japonesa de dança.
30 DE SETEMBRO DE 2009_A Unesco aceitou hoje a indicação do tango como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Foi às margens do rio da Prata que o gênero nasceu – tanto do lado de cá como de lá, la banda oriental, o Uruguai. Argentinos e uruguaios tinham apresentado conjuntamente a candidatura e a decisão encheu de orgulho os hermanos dos dois lados do Prata.
7 DE OUTUBRO_As aulas com a professora Edith estão dando certo. Já estou craque na caminhada em dupla e acho que aprendi os oito passos básicos do tango.
Também treinamos à exaustão o pivô – base para aprender a fazer el ocho. Como o próprio nome diz, nesse passo as pernas realizam um movimento em forma de oito, que pode ser tanto para frente como para trás. Na aula de hoje me pareceu que consegui fazer direito meu primeiro ocho. Achei que já estava dançando bem.
15 DE OUTUBRO_Um trabalho na sede do Mercosul, em Montevidéu, me fez viajar para aquela cidade tão próxima e ao mesmo tempo tão diferente de Buenos Aires. Parece uma cidade do interior, quando comparada à capital argentina. Encantadora. Aproveitei para conhecer a maior coleção mundial de discos de Carlos Gardel, em mãos de um particular. Os exemplares são em vinil, muitos em 78 rotações. Apesar de fazer parte do acervo “Memória do Mundo”, da Unesco, continua guardada em condições bastante precárias na antiga residência de Horacio Loriente, falecido há três anos. O guardião da coleção é seu filho, Horacio Loriente Redondo. Ele conta que o acervo abrange discos originais produzidos entre 1913 e 1935, nos quais é possível escutar nada menos que 770 canções interpretadas pelo “Zorzal Criollo”, um dos vários apelidos carinhosos de Carlos Gardel. Felizmente a associação TangoVia, de Buenos Aires, que está digitalizando toda a discografia do tango e descobrindo os “tesouros escondidos” que precisam ser salvos com urgência, vai conservar também esse valioso acervo.
4 DE NOVEMBRO_As aulas com a professora Edith Paez prosseguem, com obstáculos. Tenho dificuldade para “encontrar o meu eixo”, outro elemento fundamental do ritmo, que só à primeira vista parece fácil. O exercício consiste em imaginar que uma corda, ou um fio, esteja atravessando o seu corpo, na vertical. Manter os pés bem plantados no chão, sentir o chão plenamente, também contribui para encontrar o tal eixo e manter o equilíbrio.
17 DE NOVEMBRO_Pronto, já posso dizer que consigo fazer el ocho com regularidade. Agora luto para dominar o que se chama “dissociação”. “No tango, o dorso e as pernas nunca se movem juntos, mas de forma independente”, explica a professora. A separação entre a parte superior e inferior do corpo acontece na cintura. Ela funciona como um parafuso; é a articulação que gira e faz girar as duas regiões do corpo. Em síntese, o abraço, a caminhada e a improvisação são as características fundamentais do tango de salão. Não existe um número determinado de passos. No entanto, a fim de partir para essa etapa, o bailarino já deve ter o completo domínio do seu eixo e dos outros elementos básicos.
30 DE NOVEMBRO_Cansei de ficar esperando ser convidada para dançar… Vou contratar um parceiro só para mim! E já sei quem: o cubano Maykael García, radicado em Buenos Aires há quatro anos. Maykael trabalha como professor de dança na milonga La Catedral, uma casa meio alternativa, e esbanja simpatia. Resolvi contratá-lo como meu taxi dancer por uma noite. Quem contrata um taxi dancer – um termo alcunhado pelo business tanguero – são as estrangeiras. Acho difícil que uma portenha legítima contrate um homem para dançar só com ela, por uma noite inteira. A contratação costuma ser em dólares e não sai por menos de 100.
Maykael fez questão de me dar uma aula particular antes, o que assenti de bom grado. Praticamos muito o pivô e o difícil movimento circular que a mulher faz em torno de seu parceiro, o chamado “molinete”. Depois de praticarmos bastante juntos, Maykael me ensinou como exercitá-lo com o auxílio de uma cadeira. Nada como uma aula particular.
29 DE JANEIRO DE 2010_Chegou a minha noite de Cinderela, com Maykael García contratado como meu taxi dancer! A bordo de sua moto vermelha, fomos para a Confitería Ideal, milonga das antigas, fundada em 1912. O salão rodeado de colunas de mármore evoca os tempos de glória da Argentina, quando o país era chamado el granero del mundo. Milongueamos a noite toda.
Coloquei meu vestido vermelho decotado e sem manga, que tem o caimento ideal para dançar confortavelmente. Calcei meus sapatos de tango comprados apesar do preço. Já meu príncipe alugado trajava preto. Senti-me à vontade. O “abraço” do meu cavalheiro era firme, mas sem fazer força e sem deixar que os braços (o meu e o dele) caíssem em nenhum momento. Seiscentos e sessenta e cinco dias depois de aportar em Buenos Aires, me senti como uma pipa nas mãos de um menino: com um simples puxão da linha, ele me trazia para si; com um afrouxamento, dava asas para que eu voasse.
31 DE JANEIRO_Embarco de volta a São Paulo levando na bagagem meu par de sapatos de tango. Preto, salto sete, com tira transversal.
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