Longo Crash, de Carlos Almaraz: A Tensão Superficial do Tempo, de Cristovão Tezza, compõe uma atmosfera de ansiedade; Solução de Dois Estados, de Michel Laub, encontra no jeito sarcástico de suas vozes o tom exato do Zeitgeist. Não há redenção nesses dois livros sobre o desastre brasileiro CREDITO: LONGO CRASH_1982_CARLOS ALMARAZ (1941-89)_ACERVO DE PATTY E MICHAEL GOLD_FOTO ROBERT WEDEMEYER_© MUSEUM ASSOCIATES_LACMA
Nós e eles
Em dois novos romances, a vulgaridade sombria do Brasil sob o governo Bolsonaro
Alejandro Chacoff | Edição 172, Janeiro 2021
Viver o momento bolsonarista e tentar simultaneamente retratá-lo é um pouco como passar ao lado de um acidente fatal na estrada. A vontade de deter o olhar é forte, mas a sensação de obscenidade, igualmente inescapável. Do emaranhado confuso de corpos e ferragens, tenta-se extrair alguma lógica retrospectiva – o passo a passo que levou ao desastre –, geralmente sem muito sucesso. O resultado é uma espécie de resignação agitada, quase sempre traduzida em algum comentário geral sobre as falhas estruturais da estrada onde o choque ocorreu. “A civilização brasileira é uma complexa implosão psicanalítica, banhada em tanatofilia, fixação anal, histeria, ressentimento, má-fé compulsiva e voluntarista e tuítes elétricos psicóticos, sob uma nuvem difusa e disfuncional de desejos erráticos de poder, que estão completamente à solta, como nunca estiveram – pelo menos não deste modo, sob tamanha incultura.”
A frase é de Mattos, um historiador e professor de cursinho pré-vestibular, personagem de A Tensão Superficial do Tempo (Todavia), o romance mais recente de Cristovão Tezza. Termos psicanalíticos como os usados por Mattos têm sido recorrentes em tentativas de decifrar o estado da nação. É um fenômeno compreensível. Falar do governo Bolsonaro é sentir-se constantemente à mercê de eufemismos, já que as expressões usuais da ciência política, do jornalismo e até do coloquialismo cotidiano parecem inadequadas para encapsular tamanho ímpeto destrutivo. “Alguém até mesmo já sugeriu que a linguagem brasileira ainda não dispõe de um vocábulo simples e único capaz de definir com precisão a monstruosidade que nos preside, será preciso inventá-lo”, diz Hildo, outro personagem do livro. Na maior parte das vezes, o vocábulo escolhido é clínico.
Em seu romance, Tezza cria uma intersecção entre a neurose pública e a neurose individual. Cândido, o protagonista, é professor de química e sócio do Usina, um cursinho pré-vestibular em Curitiba. Ele dedica seus dias ao trabalho e sobretudo à atividade de piratear arquivos na internet para abastecer o vício de sua mãe, dona Lurdes, uma viúva pensionista de militar que passa a maior parte do tempo assistindo a todo e qualquer filme que o filho lhe arranja, dos clássicos europeus a obras asiáticas avant-garde. Após se separar de Hélia, sua mulher, Cândido volta a viver na casa da mãe, e as alusões edipianas da mudança não escapam nem ao próprio protagonista, que volta e meia reforça, com certa autoconsciência, o caráter problemático de seu retorno à casa.
No intervalo das aulas, enquanto toma café na sala dos professores, Cândido ouve os colegas discutindo política. O historiador Mattos – apelidado, com alguma ironia, de “nosso Euclides da Cunha” – é possivelmente o mais erudito entre eles, e certamente o mais arrogante. Mas todos têm algo a dizer, e o algo vem quase sempre embalado em monólogos bem articulados, vagamente pré-fabricados. Do sócio fundador do cursinho, o pragmático empreendedor Batista, ao professor de geografia que critica a degradação de valores sociais com “raízes históricas que vão desde o cristianismo primitivo mais distante até a sofisticada social-democracia nórdica de hoje”, até a solitária bolsonarista Juçara (“Tudo muito bonito, professor Álvaro, mas e a roubalheira, como fica?”), cada um dá a sua versão do país.
Cândido ouve, mas fala pouco. Os discursos políticos dos colegas atravessam a sua consciência sem formar qualquer hierarquia interna que o leitor possa discernir. Quando vai à casa de uma aluna para entregar à madrasta dela alguns filmes pirateados, Cândido conhece também o pai, Dario, um procurador de Justiça prestes a embarcar num voo para Brasília. Um pouco bêbado e transtornado pelo prospecto de uma reunião que talvez envolva uma oferta de cargo no governo (uma oferta que ele teme hipocritamente aceitar), o procurador dá uma descrição raivosa do presidente. “Ele está sempre testando seu limite, que não existe; ele sempre pode ir adiante, porque não há nada ali, o seu vazio não tem chão nem parede. Ao mesmo tempo, a projeção do seu mundo mental não ultrapassa a extensão de uma cozinha e um banheiro, mas imagina-se um Trump na América, de boca cheia – é a tragédia do encontro mal-amado da imaginação esquizofrênica com a solidez da burrice, o transtorno brasileiro por excelência.” O tom do discurso é similar ao de Mattos, e não é raro que, em sua cabeça, Cândido confunda as origens dessas e de outras falas, às vezes esquecendo quem exatamente proferiu cada uma delas.
A Tensão Superficial do Tempo não tem uma estrutura linear – a história se desenvolve no fluxo de consciência do protagonista, no qual lembranças, falas e eventos de tempos distintos se misturam em frases longas, cheias de cláusulas subordinadas. O livro começa com Cândido explicando a sua atividade de “pirata da internet” para Líria, uma aluna do cursinho, e essa cena é entrecortada por outras, que por sua vez são entrecortadas por outras, de modo que a impressão geral é de uma circularidade análoga à experiência de navegar na internet, como se estivéssemos abrindo link atrás de link e pulando de artigo em artigo, indo e voltando a cada um e avançando pouco a pouco. Essa sensação é aprofundada por certa ausência de ênfase dramática nas falas e lembranças do protagonista – os discursos políticos dos colegas de Cândido, por exemplo, chegam à sua consciência indiferenciados de outros ruídos (daí a sua dificuldade em lembrar quem falou o quê), mais ou menos da mesma forma que um GIF pornográfico pode ser sucedido por um vídeo comovente sobre direitos do cidadão no WhatsApp. O título do romance alude a uma peculiaridade química da água. “A tensão superficial da água pelas ligações de hidrogênio forma uma película sempre pronta a se romper”, Cândido explica à sua ex-esposa Hélia. A estrutura do livro se presta a evocar essa sensação de iminência, de imersão anestesiada num presente perpétuo.
É uma sensação universal, imediatamente reconhecível, mas a passividade com que Cândido absorve estímulos sem ordená-los ou criar um senso de propósito tem uma intensidade específica para o personagem. Melancólico e solipsista, ele é levado de um lado a outro por conhecidos ou amigos sem oferecer resistência, do cursinho a uma festa, à casa da mãe. Essa relutância do protagonista em se posicionar fortemente sobre qualquer coisa – cujo reflexo mais visível talvez seja a sua despolitização – não parece ser apenas fruto do baque de um relacionamento anterior fracassado, mas também um vício de origem. Embora a chame de “mãe”, logo fica claro que dona Lurdes não é a sua mãe biológica. Quando o marido militar estava no leito de morte, o casal, que não tinha filhos, decidiu adotar um bebê recém-nascido para que dona Lurdes pudesse garantir uma pensão vitalícia. Cândido é, portanto, uma espécie de bilhete premiado para a “mãe”, fato fundacional que ela e o filho tratam com silêncios e certa ironia afetuosa.
Quando Cândido quer investir no Usina, o cursinho do qual se torna sócio, dona Lurdes lhe empresta o dinheiro para a empreitada. Cândido fica grato, e em nenhum momento parece refletir que o valor do empréstimo deve ser ínfimo comparado ao que dona Lurdes acumulou com a sua pensão ao longo da vida. O caráter transacional na origem da relação não dilui a dependência edipiana: pelo contrário, parece aprofundá-la. Entre uma pensão vitalícia e o direito de “existir”, de ter um berço, Cândido se sente do lado devedor da equação, e dona Lurdes certamente não faz muito esforço para convencê-lo do contrário. Tecnicamente, Cândido é filho, mas existencialmente, sua condição é a de um filho que é também um agregado, perpetuamente em dívida – daí a sua servilidade à mãe, a forma autoabnegada com que se dedica a abastecer o vício dela por filmes. “Você precisa se divorciar de sua mãe”, Hélia diz a Cândido, quando ainda estão juntos. Mas, quando ele se apaixona novamente, é por Antônia, madrasta de Líria e esposa do procurador, uma mulher que também ama filmes antigos, os quais Cândido se prontifica a baixar.
Em A Tensão Superficial do Tempo, o dinheiro está na origem da construção familiar: ele intensifica a dependência entre mãe e filho ao mesmo tempo que parece dar a ela um fundo falso. Em Solução de Dois Estados (Companhia das Letras), de Michel Laub – outro romance recente que faz um retrato do momento –, o dinheiro está na origem de um rompimento: uma desavença em relação a uma herança familiar leva dois irmãos, Raquel Tomazzi e Alexandre Tomazzi, a se afastarem um do outro de forma cada vez mais radical, culminando num episódio de violência em 2018.
Embora tenham o mesmo sangue, Raquel e Alexandre são figuras diametralmente opostas. Ela, uma artista performática de 130 kg que usa o desprezo da sociedade pelo seu corpo em sua arte. Ele, um professor de fitness e bem-estar, dono de uma rede de academias na periferia de São Paulo – alguém que no trabalho prega um discurso de transformação individual. No início de 2018, durante um evento sobre arte, política e violência num hotel da Avenida Paulista, Raquel é atacada no palco por um homem chamado Jessé Rodrigues, que usa uma barra de ferro para espancá-la. Após a repercussão do episódio, Brenda Richter, uma cineasta alemã que também sofreu um trauma, convida os dois irmãos para participarem de um documentário sobre ódio. Solução de Dois Estados é o título do filme, e o romance é apresentado como uma espécie de rascunho do documentário – a transcrição dos depoimentos orais de Raquel e Alexandre aparece dividida em seções ao longo do livro, intituladas “Material Bruto”, “Material Pré-Editado”, “Extras/Material a Inserir”.
Dois irmãos que se odeiam participam de um filme sobre ódio dirigido por outra vítima do ódio. À primeira vista, os espelhamentos parecem excessivos, mas a escolha do autor por essa estrutura acaba se mostrando engenhosa. As camadas metaficcionais e a presença implícita da câmera não fragmentam a história, mas a concentram e lhe dão certa verossimilhança. A performance é dada de barato, uma premissa do livro, e a pergunta contida nessa premissa é a seguinte: Ainda existe alguma situação humana em que não haja alguma performance embutida? Quando se fala da fusão entre o privado e o público, a tendência é pensarmos no panóptico das grandes empresas de tecnologia, que tentam invadir a nossa intimidade e captar segredos. Mas uma questão mais trivial – e ao mesmo tempo muito mais perturbadora – é se essa intimidade tão reclusa e instigante ainda existe, ante o impulso de interromper qualquer faísca de pensamento com uma olhada para a tela. Num plano mais prosaico, botar duas pessoas para falar em frente a uma câmera talvez seja a única forma crível hoje de estabilizá-las, por assim dizer – de fazê-las largarem o celular por um período razoável (daí a verossimilhança do cenário criado por Laub). E com a interioridade dos personagens removida, é na oralidade pura dos depoimentos que a história do livro se monta.
“O Plano Collor foi em março de 90, fizeram um bloqueio de todas as contas por dezoito meses, deixaram cada um tirar só um troco de feira, aí botam quem para explicar. O Turco diz regra aplicado. Juros pro rata temporis.” Para Alexandre, a história começa nesse momento, quando seu pai, um empresário e dono de uma metalúrgica com 27 funcionários, tenta jogar a tevê da sala na parede, após ver o anúncio do confisco da poupança no Jornal Nacional (o “Turco” em questão é Ibrahim Eris, presidente do Banco Central na época). O pai tropeça, cai para trás e arrebenta a mesa de vidro da sala (a tevê gigante não quebra). Sua empresa vai à falência, e, com a saúde debilitada e sem conseguir arranjar um emprego e se reerguer, ele morre, em 1992. Alexandre então assume a organização das finanças da casa – um ato que ele descreve, em seu depoimento à cineasta, com heroísmo e autopiedade. “Quando o meu pai morreu eu cuidei de todos os papéis. Eu levei ele para o hospital já morto. Eu dormi num banco de plástico, quando a minha irmã chegou para o enterro já estava tudo preparadinho.”
Raquel na época estava vivendo na Europa, refinando o que Alexandre chama sarcasticamente de sua “expressão interior”, estudando numa “escolinha de artes” enquanto ele lidava com “o Excel”, as contas do lar. “Pergunta se minha irmã tem ideia de como ficou a casa nos anos seguintes”, ele diz, “é fácil falar quando o outro é que enfiou o braço na merda.” Segundo o relato de Alexandre, o estresse psicológico de cuidar da mãe, uma dona de casa deprimida, eliminou as suas chances de conseguir estudar para o vestibular e entrar numa faculdade boa. No depoimento, ele remói constantemente o fato de Raquel não ter retornado ao Brasil após a morte do pai (“Será que a gente tem que mandar o dinheiro da escolinha preparatória, depois da escolinha de arte, e ainda pagar todas as contas?”). É um momento ao qual o personagem volta com frequência, e que para ele no fim define o caráter da irmã – o de alguém que se isenta de responsabilidades e sempre culpa os outros por algo que “está só na cabeça dela”.
O que Alexandre diz estar “só na cabeça” de Raquel é o bullying que ela sofreu na infância e adolescência, a experiência que acaba definindo a vida da irmã e seu trabalho artístico posterior. Bullying é um anglicismo cujo ar remoto não evoca a crueldade pervasiva em colégios brasileiros privados dos anos 1980 e 1990. “Na escola eles me chamavam de Vaca Mocha porque é isso que uma gorda de 12 anos pode ser”, Raquel diz. A imaginação diabólica dos colegas fagocita qualquer referência para revertê-la numa simbologia corporal. Um dia Raquel vai de camiseta amarela, e os colegas a acusam de comer muita polenta; uma tarde ela compra bolo na cantina e eles dizem que ela deu leite a si mesma para fazer a guloseima. Chega a puberdade e seus seios crescem, e as musiquinhas na sala de aula sobre seu corpo invadem a consciência de Raquel de tal forma que até ela murmura os versos para si durante o banho. “Só eu podia ouvir e olhar para os meus peitos e a minha pança, quanta polenta e leite eu consigo guardar aqui dentro, e como você acha que uma história dessas termina?”
O irmão Alexandre – garoto magro e popular no colégio – ou silencia ou se presta a imitar o mugido da vaca. Até que um dia o pai descobre a história da Vaca Mocha, e, sem avisar ninguém, vai ao colégio conversar com a coordenadora. A intervenção é desastrosa. Pior que a imaginação malévola das crianças é a inaptidão pedagógica da direção. Depois de três anos sem saber (ou fingindo não saber) da perseguição à aluna, a escola faz um estardalhaço: palestras sobre o preconceito, peças de teatro conscientizadoras, trabalhos em sala de aula. “Você sabe como funciona a hipocrisia”, Raquel diz, “anos de surdez e em um minuto as pessoas viram exemplo de tolerância. É um transe coletivo, vamos resolver por decreto o que não quisemos resolver de outro jeito.” Ninguém mais a chama de Vaca Mocha, mas ninguém mais fala com ela. O pai, a quem Raquel puxou (“cento e trinta quilos de amor pela filha, a princesinha a caminho dos mesmos cento e trinta quilos logo que ficasse mais velha”), decide trocá-la de colégio, e em sua nova escola – uma escola liberal mais ligada às artes – ela descobre sua vocação de “remoer as leis da genética, ou da cultura, ou da entidade divina que me transformou naquilo. Os meus peitos, a minha pança. A minha identidade, o jeito como eu me expresso e devolvo para o mundo aquilo que o mundo me deu”.
Solução de Dois Estados é essencialmente uma guerra de versões. Mas as inconsistências entre as narrativas estão menos nos eventos em si do que nas ênfases dadas a marcos e passagens do tempo. Raquel ressalta os anos escolares como a parte inicial da história; Alexandre, os anos do Plano Collor, após a morte do pai. O tempo na Europa que Alexandre enxerga como uma irresponsabilidade financeira de sua irmã, Raquel vê como algo natural – uma continuidade da vocação que seu pai, por amor à filha, apreciaria. “Isso era um sonho para meu pai”, ela diz, “eu estudando na Europa enquanto ele tinha sido pobre, só conseguiu ir até o ensino médio.” Para Alexandre, a viagem de cruzeiro que Raquel decide dar à sua mãe, usando o dinheiro da família, é só mais um exemplo do desdém da irmã pela situação familiar. Para Raquel, é uma chance de a mãe relaxar um pouco e se livrar das amarras amarguradas do filho, de sua obsessão por controle de gastos. “Tinha a passagem, a opção do quarto sem vista, com vista no fundo…”, Alexandre reclama, e “a suíte marinheira com vista direta para o mar azul, qual dessas opções você acha que a minha irmã escolheu?”
O incidente do cruzeiro precipita uma cisão maior. Em meio às desavenças financeiras, a família tenta chegar a um acordo em 1998. Em seu cálculo, porém, Alexandre inclui os anos que ele passou cuidando da mãe. Tendo demorado a ingressar na faculdade de educação física, até aquele momento é um mero ajudante na academia de um amigo, mas com uma fatia desproporcional do dinheiro da herança ele monta o próprio negócio. A decisão afasta de vez não só a irmã, mas também a mãe, que fica a cargo de Raquel. O negócio – uma espécie de esquema de pirâmide que mistura pregação religiosa e discurso de transformação individual, cobrando taxas dos membros e dando-lhes incentivos financeiros para que convençam outras pessoas a se inscreverem – cresce rápido.
Enquanto isso, depois de anos de estudos na Inglaterra, a carreira artística de Raquel decola. Sempre tomando o ódio da sociedade e dela mesma pelo próprio corpo como motif de seus trabalhos, ela passa de colagens com referências indiretas à sua infância – envolvendo sobretudo a Vaca Mocha, personagem da adaptação televisiva do Sítio do Picapau Amarelo – a formas cada vez mais explícitas e diretas de performance, culminando em vídeos em que aparece nua, sendo espancada e pisoteada por homens. “No início você acha que ser literal é uma facilidade”, ela explica a Brenda, a cineasta. “Você acha que o mundo não é literal, embora o mundo seja literal, isso é uma coisa que você aprende quando fica mais velha.”
Tanto A Tensão Superficial do Tempo como Solução de Dois Estados seguem o conselho da literalidade sugerido por Raquel. Não há redenção ou muitas elipses nesses livros, e a vulgaridade sombria do Brasil durante o governo Bolsonaro é captada em ambos. Se o livro de Michel Laub gira em torno de uma surra pública, a estrutura circular do romance de Cristovão Tezza permite ao leitor saber logo de cara que o protagonista terá um colapso nervoso envolvendo uma faca. A Tensão Superficial do Tempo é um livro mais centrífugo e sinestésico – do consumo obsessivo de produtos nostálgicos baixados na internet ao redemoinho de retórica política em volta do protagonista, a história é repleta de personagens e itens feitos para compor uma atmosfera difusa de ansiedade. Solução de Dois Estados é mais concentrado e seco, encontrando no jeito sarcástico, autoindulgente e grosseiramente sentimental de suas vozes o tom exato do Zeitgeist.
Há, porém, uma diferença notável entre os livros, um detalhe que no fim os coloca em campos distintos. Com a exceção da professora Juçara e Daurinha – duas figuras marginais que aparecem pouquíssimo – não há bolsonaristas que exerçam qualquer papel de relevância na trama de A Tensão Superficial do Tempo. Do professor Mattos ao empreendedor e fundador do cursinho, Batista, da professora Beatriz ao procurador Dario, todos criticam o governo com veemência. E até dona Lurdes, viúva de um militar, despreza o presidente.
Os discursos políticos que chegam aos ouvidos de Cândido têm quase sempre um ar soberbo, como se fossem proferidos por observadores que estão por cima da carne-seca (ou do próprio país) – uma tendência que encontra seu efeito mais tragicômico na figura histriônica do procurador: um homem prestes a aceitar um cargo em Brasília que ainda assim vocifera como um Robespierre. Talvez haja certa ironia autoconsciente no gesto, como se o autor apontasse para a esterilidade da retórica política em volta do protagonista. Independentemente da ideologia das falas (na maioria das vezes a de uma centro-direita cuja sensibilidade foi ofendida), todas elas possuem um caráter vazio e ornamental, ajudando a compor o ambiente tenso, mas raramente tendo um efeito prático no mundo ao redor, e pouco importando a Cândido, cujo único foco é a sua paixão por Antônia.
“Sabe qual o problema da ironia?”, Raquel diz em seu depoimento a Brenda, no livro de Laub. “É que ela serve para ganhar dinheiro, prestígio, o que você quiser, mas nunca vai servir para falar de ódio.” Cândido é um personagem intrigante, e sua mentalidade de viciado – a dispersão, a busca pela gratificação imediata, a forma como ele tenta transformar um caso de três dias num simulacro de relacionamento passado – é mais universal do que gostaríamos de admitir. Mas é difícil não ver nesse protagonista tão transtornado psicologicamente e despolitizado uma espécie de álibi para o autor (a identificação de Cândido como uma espécie de alter ego é sugerida quando um motorista de Uber lhe pergunta se seu nome é Cristovão). Se Tezza demonstra autoconsciência em relação a discursos políticos cheios de um brio oco – falas que mal nascem e já morrem num ambiente mais ou menos homogêneo –, a sua relutância em incluir um personagem bolsonarista mais central na trama é um gesto evasivo num livro tão disposto a capturar o presente. Pois, não obstante toda a sua potência para captar a atmosfera do momento, A Tensão Superficial do Tempo no fim parece tratar o bolsonarismo mais ou menos como Mattos o faz: como uma patologia distante, um mal clínico insondável, ou no mínimo desinteressante do ponto de vista literário. “Foram cinquenta e sete milhões de brasileiros, eu entre eles, que puseram ele lá”, Juçara diz, em resposta a outro solilóquio de um colega; e logo em seguida desaparece.
Em Solução de Dois Estados, Michel Laub atravessa essa fronteira, trazendo um personagem bolsonarista ao centro da história. Alexandre nunca menciona o nome do presidente nem a eleição de 2018, em parte porque não é necessário. “Eu não quero meu filho aprendendo com drogado, pode ser?”, ele diz, destilando sua visão sobre educação. “Com prostituta. Com o cara que pega Aids porque deu a bunda e depois passou Aids para a esposa.” Sobre o marido da cineasta que o entrevista, um diretor de ONG morto numa tragédia, ele diz: “Sessenta mil assassinatos por ano e quem ganha um dinheirinho em cima disso é o marido da artista alemã Brenda Richter. A artista alemã Brenda Richter. Agora pergunta como vive quem ficou para trás. Os entrevistados dessas duas grandes pessoas que fazem o relatoriozinho, o filmezinho. Quem passa a noite afundado na neurose.” Quando Brenda faz outra pergunta sobre religião, Alexandre retruca: “Eu li o Gênesis duzentas vezes” – cheio de uma empáfia deslocada, numa frase que lembra vagamente a afirmação de Paulo Guedes sobre ter lido “Keynes três vezes no original”.
O exaspero, os diminutivos pejorativos, a leitura caricatural do mundo: o tom é inconfundível. No ressentimento profundo e na argumentação caótica, Alexandre lembra os personagens do escritor André Sant’Anna – aquelas vozes flutuando no éter da precariedade nacional. Mas, enquanto a obra de Sant’Anna foca nas possibilidades poéticas e satíricas de certa oralidade brasileira, Laub finca o seu personagem na história social do país, dando-lhe marcos específicos. Com o confisco da poupança, o pai de Alexandre vai à falência, fica debilitado de saúde e morre. No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, a disparada do dólar força o seu amigo a fechar a academia onde trabalha como ajudante. A paranoia de Alexandre com dinheiro – uma das bases do confuso discurso de resiliência individual que o forma – pode até soar vulgar a ouvidos mais educados, mas ela não é incompreensível.
Para montar o seu negócio, Alexandre acaba se associando a um pastor evangélico. Raquel define o irmão como um “miliciano”, e uma das forças do romance de Laub é nunca dar a certeza dessa definição ao leitor. O método da academia para arrebanhar novos membros é duvidoso, provavelmente ilegal, e a associação com o pastor Duílio é de fato promíscua, mas na guerra de narrativas e contranarrativas da fofoca familiar, é difícil enxergar com precisão se a categoria é aplicável. Seja como for, a acusação serve para deixar ainda mais explícito o contraste político entre os irmãos, que nunca é mencionado explicitamente. Assim como a vulgaridade e o linguajar grotesco de Alexandre remetem ao bolsonarismo, a autoconsciência linguística de Raquel (“Uma fala sobre ódio também é uma fala sobre o objeto de ódio”) e seu foco constante na questão da identidade a coloca firmemente no campo de opositores do futuro governo. As explicações conceituais de Raquel geralmente envolvem os limites que o meio impõe ao indivíduo. Alexandre não tem explicações conceituais, apenas uma mistura caótica entre um individualismo exacerbado e uma crença no que chama de “valores” tradicionais. Em suma, Raquel é de esquerda; Alexandre, de direita.
Ocorre que à medida que os ânimos se acirram, o rigor argumentativo de Raquel vai se perdendo, e as contradições de Alexandre (que já eram gritantes desde o início) se aprofundam ainda mais. Quando Alexandre defende Jessé Rodrigues – o agressor da irmã que também é membro de sua academia, chamada Império –, ele soa quase como um marxista, discorrendo sobre a dificuldade das circunstâncias sociais de Jessé, a sua pobreza e alcoolismo, a vida dura na periferia. O mesmo ocorre quando ele trata de sua própria dificuldade em passar no vestibular. “Estou falando das condições em que o cara estuda, sem o Plano Collor e a morte do meu pai eu teria feito cursinho em noventa e dois, várias provas em várias faculdades. Públicas, privadas. Dez vezes se precisasse.” O crescimento do seu negócio, porém, a partir da primeira década do milênio, é sempre narrado como triunfo absolutamente individual, apesar de coincidir com o maior período de crescimento econômico recente, sob o lulismo.
Ao mesmo tempo, Raquel – uma crítica ferrenha da cumplicidade do establishment artístico com patrocinadores – sentimentaliza a sua relação com o dinheiro a todo momento, alegando um interesse simbólico em itens até quando enfrenta o irmão numa batalha judicial pelas joias da mãe, desdenhando dos custos que gerou no tempo que estudou em Londres (“É tão triste pensar no meu pai, nessa época, não era a despesa de uma estudante de arte que ia fazer alguma diferença”). Aos comentários grosseiros de Alexandre sobre seu corpo, Raquel responde à altura, ressaltando a burrice do irmão, a sua incapacidade de passar num vestibular decente, acusando-o de criminoso, dizendo que seus filhos também serão milicianos. “Tão burrinho, coitadinho”, Raquel, a artista de sucesso, diz a Brenda, com desprezo. Na bruma das ofensas pessoais cada vez mais agressivas, os aparatos ideológicos dos irmãos se tornam menos visíveis, e a linguagem dos dois, mais similar.
Solução de Dois Estados não é, porém, uma ode ao centrismo. Raquel é definitivamente uma pessoa melhor que Alexandre, por assim dizer – e Brenda Richter, a cineasta que entrevista os irmãos, é menos uma fiel da balança do que mais uma narradora inconfiável num mundo cheio de narradores inconfiáveis. Em nenhum momento os irmãos soam mais como parentes do que quando a atacam. “A sensibilidade da expressão interior aprova que eles sejam citados na versão final que vão vender para a tevê brasileira?”, Alexandre pergunta, referindo-se aos patrocinadores do filme da cineasta alemã. “A poesia tolerante da cineasta Brenda Richter a favor do diálogo na Síria, na Hungria, na Venezuela”, Raquel provoca. “Você vai falar em sonhos para pregar o diálogo entre os extremos no Brasil. Vai usar uma metáfora, Brenda, que bonitinho.” E de fato, descontando uma ou outra resposta mais cortante, Brenda Richter é distante, melancólica demais para um conflito tão intratável. Quando se posiciona, partindo da experiência de perder o marido, é com frases solenes que nunca chegam ao coração do impasse (“O ódio ajuda você, mas não é seu amigo. Ele faz você ficar viciada”). Como o centrismo brasileiro – que não se confunde com o Centrão, essencialmente de direita, ou com políticos de direita que posam de centristas –, Brenda é às vezes piegas e sobretudo desinteressante, sem a força dos outros personagens. Seus comentários são análogos aos de movimentos que pregam união e diálogo sem mencionar tópicos difíceis, como as políticas específicas que provocaram a corrosão dos direitos trabalhistas nos últimos anos.
Não é papel de um romance prover uma solução para um impasse político. O que a forma literária pode se prestar a fazer é criar alguns curtos-circuitos existenciais. Ao apontar as ressonâncias entre a linguagem dos irmãos e dar solidez a um personagem como Alexandre, situando-o num contexto histórico e social, Solução de Dois Estados desmistifica um pouco o momento bolsonarista, o que é bem diferente de justificá-lo (o personagem de Alexandre continua sendo grotesco). É uma operação delicada que Laub maneja com destreza, dadas as pressões por vezes contraditórias que a literatura atual enfrenta: a de se engajar politicamente e ao mesmo tempo não dar corda a “ideias perigosas”, como se o ato de explorar certos tipos de consciências – até há pouco uma prerrogativa inquestionável da arte – fosse sinônimo de aquiescência à onda neofascista que assola o mundo.
“Qual o mundo que eu queria que existisse quando minha mãe ficasse velha?”, Alexandre pergunta. “Eu ia depender do que para ela ter uma vida tranquila? Dos governantes? Da boa vontade do Ibrahim Eris?” A energia antipolítica dessas frases, no fim das contas, não é tão distinta da que atravessa os monólogos do procurador Dario ou os diagnósticos do estado da nação do professor Mattos em A Tensão Superficial do Tempo, embora os discursos deles sejam mais eruditos e engraçados (“no patriótico país das reservas de mercado de senhores de muito engenho” é uma boa expressão). Se o bolsonarismo é um transtorno psicanalítico ou uma patologia, como Mattos sugere, ele é uma patologia socialmente construída. O mais difícil não é fitar o desastre, mas entender que estamos no meio das ferragens.
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