Gabriel Araújo, nos Jogos de Tóquio, comemorando sua vitória nos 200 metros livre na natação CREDITO: LISI NIESNER_2021_REUTERS
“Nunca deixe de se divertir, cara!”
Uma carta para o nadador Gabriel Araújo, que ganhou três medalhas em sua primeira paralimpíada, a de Tóquio
Daniel Dias | Edição 181, Outubro 2021
Gabrielzinho,
Como vai? Embora não sejamos muito próximos, me sinto à vontade para chamá-lo assim, pelo diminutivo carinhoso que o acompanha desde criança. Espero que você não se importe. Logo que nos conhecemos, há dois anos, em Lima, durante os Jogos Parapan-Americanos, notei certa semelhança entre nós. Não me refiro apenas às nossas deficiências motoras. Você sofre de focomelia, doença congênita que impede o desenvolvimento normal dos membros superiores e inferiores. Eu tenho má-formação nos braços, na perna direita e no pé esquerdo. Também não estou falando propriamente de nosso apego à natação, o esporte que já nos deu tantas alegrias e nos possibilita rodar o mundo. Penso, acima de tudo, nas características menos notórias que nos unem. Por exemplo: você reparou que nossos pais nos batizaram com nomes de anjo e de profeta? Gabriel e Daniel, uma rima celestial que serviria perfeitamente para qualquer dupla sertaneja! Você é mineiro até a medula – nasceu em Santa Luzia, cresceu em Corinto e se radicou em Juiz de Fora. Eu sou paulista de Campinas, mas me criei numa cidadezinha de Minas, Camanducaia. Por isso, me considero um pouco mineiro também. Você parece tocar a vida com leveza. Esbanja carisma e dança de um jeito engraçado quando vence provas importantes. Eu me julgo igualmente extrovertido e procuro manter o alto-astral mesmo diante dos piores desafios.
Similaridades à parte, o fato é que nos encontramos em momentos bem diferentes de nossas carreiras. Você festejou 19 aninhos há sete meses e acabou de brilhar nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, os primeiros de que participou. Foi incrível, cara! Dois ouros e uma prata! Três medalhas justíssimas, que se somaram às cinco conquistadas em Lima. Aliás, me emociono quando lembro que mais catorze nadadores brasileiros alcançaram o pódio no Japão: a Maria Carolina Santiago, o Wendell Belarmino, a Mariana Gesteira, o Talisson Glock, a Joana Neves, o Gabriel Bandeira… Uma turma de craques! Eu, por outro lado, completei 33 anos e estou me despedindo das piscinas, pelo menos em termos profissionais. Não posso reclamar de absolutamente nada. A natação me transformou num superatleta. Em quatro parapans, seis mundiais e quatro paralimpíadas, incluindo a de Tóquio, acumulei cem medalhas. Um absurdo, né? Nunca cogitei que chegaria tão longe.
Recentemente, você afirmou que se inspira em minhas vitórias toda vez que cai na água. Fico honrado, claro, mas não pretendo discorrer aqui sobre os meus triunfos. Imagino que você já saiba o suficiente deles. Quero, na verdade, contar algumas passagens menos conhecidas de minha biografia. Há muito tempo, adotei um lema: “Desejo trazer à memória o que me dará esperança.” Ou melhor: desejo sempre evocar os episódios que, por me fazerem recordar de onde vim, acabam me fortalecendo. Tomara que minhas reminiscências o inspirem tanto quanto meus êxitos. Oxalá transmitam o ânimo necessário para que você renove continuamente o amor pela natação e siga adiante.
Na infância e na puberdade, em Camanducaia, jamais me senti desconfortável com meu corpo. Às vezes, alguém me lançava um olhar de assombro, mas aquilo não me incomodava. Hoje compreendo a razão. Meus pais – um engenheiro civil e uma pedagoga – sempre tiveram o bom senso de não me enxergar nem como uma aberração nem como um bibelô que pudesse quebrar facilmente. Eles me deixavam livre para interagir e aprender com outros garotos. Estavam frequentemente de antenas ligadas, só que não interferiam à toa em minhas experimentações. Permitiam que o filho único descobrisse por conta própria a maneira mais cômoda e eficaz de realizar tarefas improváveis. A postura tranquila e generosa dos dois norteou o resto da família, que me tratava de modo idêntico. Se ninguém puxava o meu tapete dentro de casa, não seriam os olhares perplexos de estranhos que me abalariam.
Por sorte, cresci rodeado de primos. Uns dez ou onze, se não erro no cálculo. Graças àquela tropa de meninos e meninas, nunca lamentei a ausência de irmãos. Com meus primos, andei de bicicleta e skate, pulei muro, brinquei de pega-pega, joguei queimada e chupei laranja em cima das árvores. Me comportava realmente como qualquer moleque e quase esquecia que usava uma prótese na perna direita ou que me faltavam as mãos. Houve um período em que até toquei bateria. Minha mãe me arranjou um par adaptado de munhequeiras. Eu as prendia em volta dos braços e fixava as baquetas nelas.
Corintiano roxo, idolatrava o Marcelinho Carioca, meio-campista que ganhou da torcida um apelido espirituoso: Pé de Anjo. O sujeito batia falta com tamanha destreza que se converteu em lenda no Timão. De tanto admirá-lo, sonhei me profissionalizar como jogador. Eu praticava futebol no colégio público onde cursei o ensino fundamental e o médio. Vivia arrebentando a prótese por causa das minhas peripécias de boleiro. Na escola, também me aventurei pelo basquete, vôlei e handebol. Era o único aluno com deficiência física e talvez o mais competitivo. Odiava perder. Por me sair relativamente bem nos campos e nas quadras, consegui driblar o bullying inicial de uma parcela dos estudantes e conquistei o respeito de todos.
Mal atingi a adolescência, porém, os ventos mudaram. As inseguranças juvenis me atropelaram e despertaram questionamentos até então adormecidos. As perguntas enfurecidas que despejei sobre meus pais giravam em torno do mesmo tema: por que, afinal, nasci assim? Nem Deus escapou da minha zanga. Sou presbiteriano e, na época, ousei colocar a fé em xeque. Entre outras coisas, me revoltava constatar que o sonho de virar jogador não passara de um devaneio infantil. Nenhuma equipe de futebol contrataria um atleta com as minhas peculiaridades.
Em setembro de 2004, tomei conhecimento das paralimpíadas. Atenas sediava aquela edição dos jogos, que consagrou o nadador potiguar Clodoaldo Silva. Ele abocanhou nada menos do que sete medalhas. Eu tinha 16 anos e jamais ouvira falar de competições desportivas específicas para pessoas com deficiência. Ver o Clodoaldo se notabilizar como o Tubarão das Piscinas me abriu novos e imensos horizontes. Mesmo sem saber nadar direito, resolvi me dedicar à modalidade. De zoeira, costumo dizer que, no princípio, dominava apenas um estilo: o “crawlpira”. Os demais – peito, costas, borboleta e o crawl de verdade – assimilei em pouquíssimos meses. Foi uma surpresa. Percebi que, nadando, poderia me expandir infinitamente. Eu recebera um dom precioso de Deus. Não havia mais motivo para indignação.
Você, Gabrielzinho, também ganhou um presente magnífico. Desfrute o máximo dele e o lapide com abnegação, mas não se esqueça do óbvio: os prêmios, a fama e os elogios são fugazes. Um dia, certamente desaparecerão. O que restará? Você e a piscina – dois amigos que já se curtiam antes das façanhas em Lima, Tóquio e outras inúmeras cidades que ainda irão acolhê-lo. Nunca pare de se divertir dentro d’água, esteja competindo ou não. Acredite, cara: o divertimento vale mais do que um zilhão de medalhas.
Daniel de Faria Dias
Leia Mais