Apoiadores de Trump, carregando seu busto e escalando as paredes do Capitólio, em Washington, no dia 6 de janeiro: o pré-fascismo do ex-presidente fica aquém do fascismo porque sua visão de mundo jamais vai além do próprio espelho CRÉDITO: CRAIG RUTTLE_2021_REDUX PICTURES
O abismo americano
O pré-fascismo de Trump e o futuro da democracia nos Estados Unidos
Timothy Snyder | Edição 173, Fevereiro 2021
Tradução de Berilo Vargas
Quando incentivou seus seguidores a marcharem para o Capitólio, a sede do Congresso dos Estados Unidos, em 6 de janeiro, Donald Trump estava fazendo o que sempre fez. Ele nunca levou a sério a democracia representativa, nem aceitou a legitimidade da versão norte-americana.
Mesmo tendo vencido em 2016, Trump alegou que a eleição foi fraudulenta, que milhões de votos falsos foram desviados para sua adversária, Hillary Clinton. Em 2020, sabendo que estava atrás de Joe Biden nas pesquisas, passou meses alegando que a eleição presidencial seria roubada e indicando que não aceitaria os resultados, se estes não lhe fossem favoráveis. No dia do pleito, alegou, incorretamente, que tinha vencido e adotou uma retórica mais agressiva: com o tempo, sua vitória passou a ser, para ele mesmo, incontestável. E as conspirações destinadas a garantir que triunfara nas urnas foram ficando cada vez mais sofisticadas e mais implausíveis.
Muitos acreditaram em Trump, o que não chega a surpreender. É preciso um trabalho gigantesco para ensinar as pessoas a resistir à tendência de acreditar naquilo em que já acreditam ou outras pessoas à sua volta acreditam, ou naquilo que dá sentido às próprias escolhas anteriores. Platão chamou a atenção sobre um risco especial que afeta os tiranos: acabarem cercados por puxa-sacos e apoiadores interesseiros. Aristóteles temia que, numa democracia, algum demagogo rico e talentoso pudesse dominar com facilidade a mente da população. Cientes desses e de outros riscos, os autores da Constituição dos Estados Unidos criaram um sistema de freios e contrapesos. A ideia era não só garantir que nenhum braço do poder dominasse os outros, mas inculcar nas instituições diferentes pontos de vista.
Nesse sentido, a responsabilidade pelo esforço de Trump para reverter uma eleição deve ser atribuída também a muitos congressistas do Partido Republicano. Em vez de desmentir Trump logo no início, eles permitiram que a ficção eleitoral criada por ele florescesse. Tinham diferentes motivos para fazer isso. Um grupo de republicanos está interessado, acima de tudo, em manipular o sistema para preservar seu poder, tirando a maior vantagem possível de aspectos pouco claros da Constituição, da redefinição geográfica dos distritos eleitorais, e do dark money – a contribuição financeira a uma campanha cuja origem não é revelada – para ganhar eleições com uma minoria de eleitores mais motivados. Não lhes interessa nem um pouco o colapso dessa forma peculiar de representação política que permite a seu grupo minoritário exercer um controle desproporcional no governo. O mais importante deles, Mitch McConnell, líder do Partido Republicano no Senado, aceitou a mentira de Trump sem fazer qualquer comentário sobre suas consequências.
Outros republicanos, no entanto, tinham uma visão diferente: achavam que podiam destruir o sistema de representação política e exercer o poder sem democracia. O racha entre esses dois grupos, o dos manipuladores e o dos destruidores, tornou-se óbvio em 30 de dezembro passado, quando o senador Josh Hawley anunciou que apoiaria Trump na contestação à validade dos votos no dia em que o Congresso certificaria a vitória de Joe Biden, em 6 de janeiro. Ted Cruz também se comprometeu a dar seu apoio, junto com cerca de dez outros senadores. Mais de cem deputados republicanos adotaram a mesma posição. Para muitos deles, tudo não passava de um show: a contestação dos votos eleitorais dos estados provocaria atrasos e votações no plenário, porém não afetaria o resultado final.
Mas, para o Congresso, corroer suas funções básicas tinha um custo. Uma instituição eleita que se opõe a eleições incentiva a própria destruição. Os membros do Congresso que apoiaram a mentira do presidente, apesar das inequívocas provas em contrário, traíram sua missão constitucional. Tomar as ficções de Trump como base da ação do Congresso deu a elas substância. Agora, Trump podia exigir que senadores e deputados fizessem a sua vontade. Podia atribuir ao vice-presidente Mike Pence, encarregado dos procedimentos formais para oficializar o resultado da eleição, a responsabilidade de pervertê-lo. E em 6 de janeiro instruiu seus seguidores a pressionar os parlamentares eleitos, invadindo o prédio do Capitólio, perseguindo pessoas e saqueando o local.
Obviamente, isso tinha algum sentido: se a eleição foi roubada, como os próprios senadores e deputados sugeriam, por que permitir que o Congresso seguisse em frente? Para alguns republicanos, a invasão do Capitólio deve ter sido um choque, ou até uma lição. Para os destruidores, porém, pode ter sido uma amostra do futuro. Mesmo depois da invasão, oito senadores e mais de cem deputados votaram a favor da mentira que os obrigou a fugir de seus gabinetes.
Pós-verdade é pré-fascismo, e Trump foi nosso presidente pós-verdade. Quando desistimos da verdade, concedemos poder aos que têm riqueza e carisma para substituir a verdade pelo espetáculo. Sem consenso sobre fatos básicos, os cidadãos não conseguem formar uma sociedade civil que lhes dê proteção. Se perdemos as instituições que produzem fatos importantes para nós, nossa tendência é chafurdar em abstrações e ficções sedutoras. A verdade se defende particularmente mal quando não há muita verdade no ambiente, e a era Trump – como a era Vladimir Putin na Rússia – é a do declínio do noticiário local. As redes sociais não servem como substitutos: elas intensificam os hábitos mentais com que buscamos estímulo e conforto emocional, e isso significa deixar de perceber a diferença entre o que parece verdadeiro e o que é realmente verdadeiro.
A pós-verdade corrói o estado de direito e incentiva um regime de mito. Nos últimos quatro anos, estudiosos vêm discutindo a legitimidade e a importância de evocar o fascismo em relação à propaganda trumpista. Uma atitude confortável consiste em rotular de simplista essa comparação e, depois, passar a tratá-la como um tabu. Com resultados melhores, o professor de filosofia Jason Stanley, da Universidade Yale, aborda o fascismo como um fenômeno, como uma série de práticas observáveis não apenas na Europa do entreguerras, mas além desse período.
Minha opinião é que um conhecimento maior do passado, seja ele fascista ou não, nos permite perceber certos elementos do presente que, de outro modo, correríamos o risco de ignorar, e também nos permite pensar mais amplamente em possibilidades futuras. Para mim, ficou claro em outubro, o mês anterior à eleição presidencial, que o comportamento de Trump prenunciava um golpe. Eu escrevi sobre isso na imprensa. E não porque o presente repete o passado, mas porque o passado elucida o presente.
A exemplo de líderes fascistas históricos, Trump se apresentava como a única fonte da verdade. Seu uso do termo fake news lembra a difamatória expressão Lügenpresse (“imprensa mentirosa”) da Alemanha nazista. Como os nazistas, Trump chamava repórteres de “inimigos do povo”. Como Adolf Hitler, ele chegou ao poder num momento em que a imprensa convencional tinha levado uma surra. A crise financeira de 2008 fez com os jornais norte-americanos o mesmo que a Grande Depressão de 1929 tinha feito com os jornais alemães. Os nazistas achavam que podiam usar o rádio para substituir o velho pluralismo dos jornais. Trump tentou fazer o mesmo com o Twitter.
Graças à capacidade tecnológica e ao talento pessoal, Trump mentia num ritmo talvez jamais igualado por qualquer outro líder na história. Quase sempre eram mentirinhas, e seu principal efeito era cumulativo. Acreditar em todas as mentiras significava aceitar a autoridade de um único homem, porque acreditar em todas elas era descrer de tudo o mais. Uma vez estabelecida essa autoridade pessoal, o presidente podia tratar todos os outros como mentirosos. Tinha até o poder de fazer com que um auxiliar confiável se transformasse, por meio de um único tuíte, num canalha desonesto. Apesar disso, por ter sido incapaz de impor uma mentira verdadeiramente grande, de produzir uma fantasia capaz de criar toda uma realidade alternativa na qual as pessoas vivessem e morressem, o pré-fascismo de Trump acabou ficando aquém do verdadeiro.
Algumas mentiras eram, reconhecidamente, medianas: que ele era um empresário bem-sucedido, que a Rússia não o apoiou em 2016, que Barack Obama nasceu no Quênia. As mentiras medianas são o feijão com arroz dos aspirantes a líder autoritário no século XXI. Na Polônia, o partido de direita Lei e Justiça construiu um culto do martírio ao atribuir a rivais políticos a culpa pelo desastre aéreo que matou o presidente Lech Kaczy´nski, em 2010. O primeiro-ministro Viktor Orbán, da Hungria, responsabiliza pelos problemas do país um número de refugiados muçulmanos que é cada vez menor. Mas a rigor essas alegações não eram grandes mentiras. Esgarçam, mas não chegam a despedaçar aquilo que Hannah Arendt chamou de “tecido da factualidade”.[1]
Uma grande mentira histórica discutida por Arendt é a explicação de Josef Stálin para a fome de 1932-33 na Ucrânia soviética. O Estado havia coletivizado a agricultura, adotando contra a Ucrânia medidas punitivas que tornavam inevitável a morte de milhões. Mas a explicação oficial informava que os famintos eram provocadores, agentes de potências ocidentais que odiavam a tal ponto o socialismo que estavam se suicidando. Uma ficção ainda mais colossal, no relato de Arendt, são as razões que Hitler invocava para justificar seu antissemitismo: as alegações de que os judeus mandavam no mundo, de que os judeus eram responsáveis por ideias que envenenavam a cabeça dos alemães, que os judeus apunhalaram a Alemanha pelas costas na Primeira Guerra Mundial. Curiosamente, Arendt achava que as grandes mentiras só funcionam nas mentes solitárias, nas quais substituem a experiência e o companheirismo.
Em novembro de 2020, alcançando milhões de mentes solitárias pelas redes sociais, Trump contou uma mentira perigosamente ambiciosa: a de que ele ganhara uma eleição que, na verdade, perdera. Era uma grande mentira, relevante em todos os sentidos: não tão grande quanto a de que “judeus mandam no mundo”, mas grande o suficiente. Era enorme o significado do que estava em pauta: o direito de governar o país mais poderoso do mundo e a eficácia e a confiabilidade dos seus procedimentos sucessórios. O nível de falsidade era profundo. A alegação era não apenas infundada, mas também mal-intencionada, feita com base em fontes não confiáveis. Contrariava não só as provas, mas também a lógica: como, e por que, uma eleição teria sido fraudada em prejuízo de um presidente republicano, mas não de senadores e deputados republicanos? Então, de modo absurdo, Trump teve que falar de uma “eleição [presidencial] fraudada”.
A força de uma grande mentira está em exigir que se acredite ou se deixe de acreditar em muitas outras coisas. Para acreditar num mundo em que a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2020 foi roubada, é preciso desconfiar não apenas de repórteres e especialistas, mas de instituições locais, estaduais e federais, dos funcionários das seções eleitorais, das autoridades eleitas, do Departamento de Segurança Interna e até da Suprema Corte, cujos ministros são em sua maioria conservadores. A grande mentira traz junto, forçosamente, uma teoria da conspiração: imagine quantas pessoas teriam que participar da trama, e quantas teriam de trabalhar para encobri-la.
A ficção eleitoral de Trump paira acima de qualquer realidade verificável. É defendida não tanto com fatos, mas com alegações de que outra pessoa fez algumas alegações. A percepção é que alguma coisa deve estar errada porque eu sinto que está errada, e sei que outros sentem a mesma coisa. Quando líderes políticos como o senador Ted Cruz ou o deputado Jim Jordan falavam assim, o que queriam dizer era o seguinte: Vocês acreditam em minhas mentiras, o que me obriga a repeti-las. As redes sociais oferecem uma infinidade de supostas provas para embasar qualquer convicção – sobretudo se essa convicção também é compartilhada pelo próprio presidente.
À primeira vista, uma teoria da conspiração faz a vítima parecer forte: para ela, Trump está resistindo aos democratas, aos republicanos, ao Estado profundo,[2] aos pedófilos, aos satanistas. Na verdade, porém, ela inverte a posição do forte e do fraco. A ênfase de Trump em supostas “irregularidades” e em “estados contestados” remete a cidades norte-americanas com forte presença de eleitorado negro. No fundo, a fantasia de fraude é a de um crime cometido por negros contra brancos.
Não só nunca houve fraude eleitoral de afro-americanos contra Donald Trump como o que aconteceu em 2020 e em toda eleição norte-americana foi justamente o contrário. Os negros enfrentaram filas mais demoradas para votar e seus votos tiveram maior probabilidade de serem impugnados. Além disso, estiveram mais propensos a adoecer ou morrer de Covid-19, e ainda enfrentaram mais dificuldades para tirar folga do trabalho no dia da eleição, que caiu numa terça-feira. A proteção histórica ao direito de voto dos negros – que obrigava os estados a pedir aprovação federal antes de fazer mudanças na regulação do pleito – acabou sendo revogada em 2013 por decisão da Suprema Corte. Com isso, estados correram para aprovar medidas que historicamente reduzem a votação entre o eleitorado pobre e as comunidades de cor.
No século XIX, os republicanos, ou muitos deles, é que apoiavam a igualdade racial. Os democratas, o partido do Sul, é que queriam o apartheid. Naquela época, os democratas consideravam fraudulentos os votos de afro-americanos, e os republicanos queriam que fossem levados em conta. Agora a situação se inverteu. No último meio século, desde a Lei dos Direitos Civis, os republicanos se tornaram predominantemente um partido de brancos, interessado – como Trump declarou abertamente – em reduzir tanto quanto possível o número de eleitores, particularmente o número de eleitores negros. Mas o fio da meada continua. Diante da presença de partidários da supremacia branca entre os invasores do Capitólio, desfilando suas bandeiras confederadas, era fácil ceder à sensação de que algo de puro havia sido violado. Talvez seja melhor entender o episódio como parte de um longo debate norte-americano sobre quem merece ter representação.
Os democratas hoje se tornaram uma coalizão que faz mais sucesso do que os republicanos no eleitorado feminino e não branco e recebe votos tanto de sindicatos de trabalhadores como de pessoas com escolaridade superior. Apesar disso, não é correto contrastar essa coalizão com um Partido Republicano monolítico. Neste momento, o Partido Republicano é uma coalizão de dois tipos de gente: os que manipulariam o sistema (a maioria dos políticos, alguns eleitores) e os que sonham em destruí-lo (uns poucos políticos, muitos eleitores). No mês de janeiro passado, isso ficou visível no contraste entre os republicanos que defenderam o sistema atual, alegando que ele os favorece, e os republicanos que tentaram derrubá-lo.
Durante quatro décadas, desde a eleição de Ronald Reagan, os republicanos administraram a tensão entre os manipuladores e os destruidores governando em oposição ao governo, ou chamando as eleições de “revolução”, ou se dizendo contra as elites. Os destruidores, nesse arranjo, dão cobertura aos manipuladores ao apresentar uma ideologia que oculta a realidade básica segundo a qual o governo sob os republicanos não fica menor, é simplesmente desviado para atender um punhado de interesses.
De início, Trump parecia ameaçar esse equilíbrio. Sua falta de experiência na política e seu racismo ostensivo faziam dele uma figura muito incômoda para o partido. O hábito de mentir constantemente parecia grosseiro para republicanos importantes. Mas, depois que Trump conquistou a Presidência, suas habilidades especiais de destruidor pareciam oferecer uma extraordinária oportunidade aos manipuladores. Comandados pelo manipulador-chefe, o líder republicano Mitch McConnell, eles nomearam centenas de juízes federais e conseguiram reduzir os impostos dos ricos.
Trump era diferente de outros destruidores porque parecia não ter ideologia. Sua objeção às instituições devia-se ao fato de que elas podiam limitá-lo pessoalmente. Queria destruir o sistema para beneficiar a si mesmo – e foi em parte por isso que fracassou. Trump é um político carismático, que inspira devoção não apenas entre eleitores, mas também num número surpreendente de parlamentares. Apesar disso, não tem uma visão que seja maior do que ele mesmo, nem mesmo a visão que seus admiradores projetam nele. Nesse sentido, seu pré-fascismo fica aquém do fascismo: sua visão jamais vai além do espelho. Ele chegou a uma mentira realmente grande não a partir de qualquer visão do mundo, mas da constatação realista de que pode perder alguma coisa.
No entanto, Trump jamais preparou um golpe decisivo. Faltava-lhe o apoio das Forças Armadas, tendo ele hostilizado alguns dos seus líderes. (Nenhum fascista de verdade teria cometido o erro que ele cometeu nesse ponto: demonstrar abertamente sua admiração por ditadores estrangeiros; talvez os seus seguidores que acreditavam que o inimigo estava dentro do próprio país não ligassem para isso, mas aqueles que juraram proteger os Estados Unidos contra inimigos estrangeiros se importavam.) A força policial secreta de Trump, os homens que realizaram operações de captura em Portland, era violenta, mas pequena e risível.[3] As redes sociais revelaram-se uma arma robusta: Trump pôde anunciar suas intenções no Twitter, e defensores da supremacia branca puderam planejar a invasão do Capitólio no Facebook, no Twitter ou no Gab. Mas o presidente, apesar das ações judiciais, dos apelos e das ameaças a funcionários públicos, não conseguiu arquitetar uma situação que levasse as pessoas certas a fazerem a coisa errada. Trump induziu parte dos eleitores a acreditarem que ele ganhou a eleição de 2020, mas foi incapaz de convencer as instituições a endossarem sua grande mentira. E pôde levar seguidores a Washington e enviá-los ao Capitólio para provocar tumulto, mas ninguém parecia ter uma ideia clara do que fazer, ou do que sua presença ali conseguiria. É difícil pensar num momento de insurreição comparável àquele, quando um prédio de grande importância foi invadido por tanta gente andando às tontas.
A mentira sobrevive ao mentiroso. A ideia de que a Alemanha perdeu a Primeira Guerra Mundial em 1918 por causa de uma “punhalada judaica nas costas” tinha quinze anos de idade quando Hitler chegou ao poder. Como funcionará na vida norte-americana, daqui a quinze anos, o mito do vitimismo de Trump? E funcionará em benefício de quem?
Em 7 de janeiro, Trump pediu uma transição pacífica de poder, admitindo, implicitamente, que seu putsch tinha fracassado. Ainda assim, repetiu, e até reforçou, sua ficção eleitoral: agora, a coisa se transformara numa causa sagrada pela qual as pessoas haviam se sacrificado. A punhalada imaginária nas costas de Trump persistirá, basicamente, porque membros do Congresso a endossaram. Em novembro e dezembro de 2020, republicanos a repetiram, dando-lhe uma vida que, de outra forma, ela jamais teria. Analisando em retrospecto, agora parece que o último e frágil acordo entre manipuladores e destruidores era a ideia de que Trump deveria ter ampla oportunidade para provar que fora vítima de uma fraude. Essa atitude endossava implicitamente a grande mentira para os seus apoiadores propensos a acreditarem nela. E não conseguiu conter Trump, cuja grande mentira, na verdade, cresceu ainda mais.
Os destruidores e os manipuladores então viram descortinar um mundo diferente, no qual a grande mentira era um tesouro a ser guardado ou um perigo a ser evitado. Os destruidores não tiveram escolha e correram para afirmar que acreditavam nela. Como os destruidores Josh Hawley e Ted Cruz, ambos senadores republicanos, tinham que disputar o enxofre e a bile, os manipuladores foram obrigados a mostrar as cartas que tinham na mão. E, assim, o racha dentro da coalizão republicana tornou-se evidente em 6 de janeiro. A bem da verdade, alguns senadores retiraram suas objeções, mas Cruz e Hawley seguiram em frente, junto com outros seis senadores. Mais de cem deputados dobraram suas apostas na grande mentira. Alguns, como Matt Gaetz, até adicionaram um toque pessoal, como a alegação de que a multidão enfurecida no Capitólio foi encabeçada não por apoiadores de Trump, mas por seus adversários.
Até que fosse despojado dos deveres da Presidência, Trump era o mártir em chefe, o sumo sacerdote da grande mentira. Era o líder dos destruidores, pelo menos na cabeça dos que o apoiam. Os manipuladores não queriam saber de Trump. Desacreditado em suas últimas semanas, ele já não tinha serventia. Agora, fora do poder, voltou a ser um constrangimento, como o foi em 2015. Incapaz de dar cobertura a suas artimanhas, ficou irrelevante para os objetivos diários dos manipuladores. Mas os destruidores têm um motivo ainda mais forte para querer que Trump desapareça: é impossível receber a herança de alguém que ainda está por aí. Aproveitar-se da grande mentira de Trump pode parecer um gesto de apoio, mas, na verdade, expressa o desejo de sua morte política. Transformar o mito sobre Trump em mito sobre o país será mais fácil quando ele sair do caminho.
Como Cruz e Hawley talvez aprendam, divulgar a grande mentira é ser possuído por ela. Quem vende a alma não recebe, necessariamente, boa coisa em troca. Hawley não recua diante de nenhum tipo de hipocrisia. Filho de banqueiro, formado na Universidade Stanford e na Faculdade de Direito de Yale, ele denuncia as elites. Se Cruz tinha algum princípio, imaginava-se que fosse o dos direitos dos estados, coisa que Trump violou descaradamente com seu apelo à ação. Uma declaração conjunta que Cruz divulgou sobre a contestação da contagem dos votos pelos senadores apreendeu muito bem o aspecto pós-verdade do todo: o documento não dizia que houve fraude, apenas que houve alegações de fraude. Alegações de alegações, alegações de ponta a ponta.
A grande mentira exige comprometimento. Quando os manipuladores republicanos não mostram comprometimento suficiente, os destruidores republicanos os chamam de “Rinos”: a sigla em inglês para “republicanos só no nome”. Em outros tempos, o termo sugeria falta de comprometimento ideológico. Agora significa relutância em desistir de uma eleição. Os manipuladores reagem cerrando fileiras em torno da Constituição e falando em princípios e tradições. Os destruidores devem saber que participam todos de uma impostura, diante de uma plateia de dezenas de milhões de pessoas que não sabem disso.
A tentativa de golpe de Trump em 2020-21, como outros golpes fracassados, é uma advertência para quem dá valor ao estado de direito e uma lição para quem não dá. Seu pré-fascismo revelou uma possibilidade na política norte-americana. Para que um golpe dê certo em 2024, os destruidores vão precisar de uma coisa que Trump a rigor nunca teve: uma minoria furiosa, organizada para a violência em escala nacional, pronta para agregar intimidação à eleição. Depois de quatro anos amplificando uma grande mentira – se continuar presente na vida política, Trump certamente repetirá para sempre essa grande mentira –, talvez consigam. Alegar que o outro lado roubou uma eleição é prometer roubar também. E afirmar que o outro lado merece punição.
Observadores esclarecidos dentro e fora do governo concordam que o supremacismo branco de direita é a maior ameaça terrorista aos Estados Unidos. As vendas de armas em 2020 atingiram níveis espantosos. A história mostra que a violência política ocorre quando líderes importantes de grandes partidos políticos abraçam abertamente a paranoia.
Nossa grande mentira é tipicamente norte-americana, envolta em nosso bizarro sistema eleitoral, sujeita a nossas tradições particulares de racismo. Mas nossa grande mentira é também estruturalmente fascista, com sua extrema falsidade, seu pensamento conspiratório, sua inversão de réus e vítimas e sua insinuação de que o mundo está dividido entre nós e eles. Sustentá-la por quatro anos é encorajar o terrorismo e o assassinato.
Quando essa violência vier, os destruidores terão que reagir. Se a aceitarem, tornam-se a facção fascista. O Partido Republicano ficará dividido, pelo menos por um tempo. Pode-se, é claro, imaginar uma sinistra reunificação: um candidato destruidor perde por pouco uma eleição presidencial em novembro de 2024 e alega fraude, os republicanos conquistam maioria nas duas casas do Congresso, e os manifestantes nas ruas, persuadidos por quatro anos da grande mentira, exigem o que acham que é justo. Será que os manipuladores respeitarão as regras, se essa for a situação em 6 de janeiro de 2025?
Sem dúvida, este momento é também uma oportunidade. É possível que um Partido Republicano dividido sirva melhor à democracia norte-americana e que os manipuladores, separados dos destruidores, comecem a pensar na política como uma forma de ganhar eleições. É muito provável que os primeiros meses do governo Joe Biden e Kamala Harris venham a ser mais fáceis do que se esperava. Talvez o obstrucionismo dê lugar a um exame de consciência, pelo menos entre alguns republicanos e por pouco tempo. Os políticos que querem o fim do trumpismo têm uma saída simples: dizer a verdade sobre a eleição.
Os Estados Unidos não sobreviverão à grande mentira só porque um mentiroso está fora do poder. O país precisará de uma nova e inteligente pluralização da mídia e de um compromisso com os fatos visto como um bem público. O racismo que estruturou todos os aspectos da tentativa de golpe é um alerta para prestarmos atenção à nossa própria história. Levar a sério o passado ajuda a enxergar riscos, é verdade, mas também sugere possibilidades futuras. Não seremos uma república democrática se contarmos mentiras sobre raça, sejam elas grandes ou pequenas. Democracia não significa menosprezar o voto ou ignorá-lo, nem manipular ou destruir um sistema: significa aceitar a igualdade dos outros, ouvir suas vozes e contar seus votos.
[1] Em Verdade e Política, texto publicado originalmente na revista New Yorker, na edição de 25 de fevereiro de 1967, a filósofa alemã Hannah Arendt escreve: “Como os fatos se produzem sempre num contexto, uma mentira determinada – isto é, uma falsificação que não se esforça por alterar todo o contexto – faz por assim dizer um buraco no tecido da factualidade.”
[2] Deep State, em inglês: na visão das teorias conspiratórias, é uma rede de poder formada por políticos de alto escalão, empresários e financistas que de fato governariam os Estados Unidos, secretamente, sem o consentimento dos governados e sem recorrer aos procedimentos políticos formais.
[3] Em julho do ano passado, agentes federais circularam em veículos descaracterizados pelo centro de Portland, a principal cidade do estado do Oregon, detendo manifestantes do movimento Black Lives Matter, sem explicar qual infração haviam cometido. A força policial nunca foi devidamente identificada, mas a imprensa norte-americana publicou que alguns homens pertenciam a um grupo especializado da Patrulha de Fronteira (CBP, na sigla em inglês), que tem certos poderes extraordinários na aplicação da lei e é normalmente empregada no combate ao narcotráfico.