As mulheres eram sozinhas, carentes e tinham ótima situação financeira. Uma delas ganhava 13 mil reais, a outra, 20 mil e a mais nova era filha de um fazendeiro de Minas Gerais ILUSTRAÇÃO FOTOGRÁFICA_EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃ FOTOGALERIA
O amante do Mossad
Começou na internet a secreta ciranda brasiliense entre Cida e o agente Youssef, Sônia e o misterioso Kleber, Franciana e o major Kalev
Daniela Pinheiro | Edição 24, Setembro 2008
Maria Aparecida Lima da Silva, chamada por todos de Cida, estava tão concentrada na tela do computador, numa tarde de agosto de 2005, que nem se dava conta do burburinho na sala que dividia com outros dezenove funcionários do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Vestindo um tailleur elegante e sapatos de salto alto, ela teclava com rapidez e um sorriso estampado na face. Por volta das quatro da tarde, as colegas da seção de multimídia a chamaram para o lanche. No caminho para a copa, ela puxou para um canto a amiga Diani Lima, com quem trabalhava havia dezessete anos, e fez uma confidência: “Conheci um judeu na internet. Ele é tão inteligente, tão educado, que nem quero falar muito para não dar azar.”
Meses antes, Cida se inscrevera numa agência de namoros e também começara a freqüentar salas de bate-papo da internet. Chegou a se encontrar com dois rapazes com quem trocara mensagens, mas não houve empatia. Ao contrário de boa parte dos usuários desse serviço on-line, ela se apresentava como era de fato: morena, 35 anos, 1,61 metro de altura, 60 quilos, funcionária pública, independente, em busca de relacionamento sério.
Cida morava com os pais, mas mantinha uma quitinete num prédio com academia e piscina, que usava esporadicamente. Saía nos fins de semana com as amigas, nunca perdia um aniversário e, segundo elas, levava sempre o presente mais caro. Pagava as prestações do apartamento, dirigia um carro novo e conseguia economizar parte do salário de 13 mil reais. Os amigos e a família a descrevem como sensata, organizada, metódica e séria.
Mas Cida tinha um problema. Desde que a irmã mais nova anunciara o noivado, ela havia se atribuído a missão de encontrar, ela também, um marido. Seu último romance terminara cinco anos antes – e terminara mal. O rapaz, colega de repartição, nunca assumira o namoro em público, e justificou a ruptura dizendo a Cida que ela era “velha demais”. A moça emagreceu 10 quilos, consultou-se com um psiquiatra e passou a tomar remédios de tarja preta. Às amigas, dizia que o que lhe faltava na vida era “um grande amor”.
Muito atenta à aparência, Cida compensava a ausência de beleza investindo no guarda-roupa e na malhação. Comprava sapatos e bolsas de grife, preferia tons escuros e gastava com jóias discretas. Três vezes por semana, os cabelos encaracolados e tingidos de castanho eram domados por escovas e alisamentos. Seus olhos escuros, emoldurados por sobrancelhas bem finas, definidas à pinça, eram sempre circundados a lápis. Fissurada em dietas, procurava manter o peso com aulas de Jump Fit, nas quais se repete uma coreografia dando pulos sobre uma cama elástica.
O judeu da internet de quem Cida falou à amiga se chamava Youssef. Havia algo de misterioso nele. Com 34 anos, media 1,82 metro, tinha porte atlético, boca carnuda e sobrancelhas grossas, permanentemente franzidas – o que configurava um semblante másculo, preocupado e, talvez, atormentado. Era polido e não falava de familiares, de amigos nem de colegas. Nas mensagens, queixava-se de tristeza e solidão.
Youssef contou um dia a Cida que era agente de carreira do Mossad (Instituto de Informação e Operações Especiais), o temido serviço secreto israelense. Sua função, disse, envolvia espionagem e ações antiterroristas. Estava lotado como funcionário burocrático na Embaixada de Israel e viajava com freqüência para Tel-Aviv, onde fica a sede da organização. Para uma mulher na faixa dos 35 anos e sem namorado, que ainda dormia no quarto de adolescência e era a única solteira entre as amigas, Youssef era o protótipo do príncipe encantado.
Cida deixou escapar detalhes sobre a correspondência virtual com Youssef, sem jamais mencionar o seu nome. Ele lhe escrevia sobre seus hobbies – mergulho e futebol –, filmes recentes, lugares visitados, a solidão imposta pela profissão, o judaísmo e o conflito palestino-israelense. Cida disse a colegas que pretendia se matricular num curso de hebraico: estava fascinada pela religião do “novo amigo”.
Num dos bate-papos, Cida, que já sabia que Youssef dirigia um carro importado vermelho, quis saber mais. “Onde você mora?”, perguntou. “Numa 200 da Asa Sul”, respondeu o agente. Era uma informação tão etérea quanto saber que alguém vive em Uberaba: em Brasília, há dezesseis quadras 200, cada uma com pelo menos dez edifícios, e esses com, no mínimo, 48 apartamentos. “Ela percorreu quadra por quadra para descobrir onde ele morava”, contou-me Inácia Lino, comadre e amiga de trabalho de Cida, na sua sala no Superior Tribunal de Justiça.
Como é de praxe em contatos pela internet, depois de várias conversas Cida e Youssef marcaram um encontro. Gostaram um do outro. A imprudência interferiu: logo na primeira noite juntos, ela engravidou. Cida não contou a ninguém. Só um ano depois falou sobre o assunto com a amiga Diani Lima. Aos três meses de gestação, a pedido de Youssef, fez um aborto. “Quando Cida contou, ele perguntou se ela queria criar o filho sem pai, já que o trabalho dele era perigosíssimo, que iria morrer, era perseguido”, disse Diani. O casal comprou um remédio abortivo e foi para a quitinete dela. Cida passou mal e teve de ser internada em um hospital, durante uma noite, para fazer curetagem. À mãe, ela disse que dormira na casa de uma amiga.
Fora o segundo baque de Cida. Quando percorrera obstinadamente as quadras 200 da Asa Sul, ela conseguira achar o apartamento de Youssef. Ao assuntar com um vizinho, descobriu que ele era casado e tinha dois filhos. Confrontado, o espião contou sua história: chamava-se Kleber Ferraz, estava casado há treze anos com uma namorada da juventude, a professora Ana Paula Ottoni, e tinha filhos de 10 e 8 anos. Não tinham vida conjugal há bastante tempo, disse ele: aturava a mulher pelo bem-estar das crianças. Para se proteger, seria prudente Cida não saber de mais detalhes da vida dele. Com a pressão e os riscos da profissão de agente secreto, ela logo seria investigada. A moça compreendeu as razões do agente do Mossad.
Familiares e amigos notaram mudanças em seu comportamento. Ela deixara de ir ao cabeleireiro, vestia-se com jeans e camisa desleixada, e pedia atestados médicos para justificar as faltas no trabalho, o que era inédito na sua carreira. O celular, que quase não tocava, agora soava a cada dez minutos. No horário do expediente, Cida passava longos períodos plugada na internet. Quando a chamavam para sair, dizia que já tinha programa com um amigo. Nas férias, contou que viajaria a Fernando de Noronha com “uma pessoa”. Na volta, Inácia Lino estranhou quando Cida reclamou que, na ilha, uma Coca-Cola custava “absurdos” 5 reais. “Ela, que jamais pão-durava nada, me deixou muito surpresa”, contou a comadre.
Tempos depois, um vendedor de uma concessionária de carros importados telefonou para o tribunal, atrás de Cida. Os colegas comemoraram a compra do modelo de luxo, um Chrysler preto avaliado em 60 mil reais. “Não, eu tirei no meu nome, mas é para um amigo”, ela comentou.
Em casa, Cida se mostrava cada vez mais triste. Sua mãe, Maria do Socorro, imaginou que ela estivesse com dificuldades para quitar as prestações da quitinete. Sabia que a filha vendera seu Fiesta novo e havia financiado a compra de um Gol, bem mais barato, sem qualquer opcional de fábrica. Disse à filha que venderia seu carro e lhe daria 30 mil reais para acertar o negócio da quitinete. Surgiu então uma explicação. “Ela disse que estava comprando um apartamento maior, de dois quartos, e por isso minha mãe nem pensou duas vezes em lhe dar o dinheiro”, contou-me o irmão de Cida, Marcelo Lima da Silva, sentado na área de alimentação da faculdade em que ele cursa direito, em Brasília.
Espantosamente, Cida passou a freqüentar a casa de Youssef-Kleber. Foi a própria mulher dele, Ana Paula, quem explicou o motivo, nos autos de um processo que corre na Justiça brasiliense: “Ele me perguntou se podia levar uma amiga do trabalho que era muito depressiva e não tinha amigos.” Cida passou a ir aos aniversários, almoços dominicais e a levar os filhos do amante e de Ana Paula para passear.
Na mesma época em que Cida relaxou nos cuidados com a aparência e se endividou, a estudante Franciana Xavier, a filha de um fazendeiro de Minas Gerais, entrou no bate-papo Namoro Sério, do portal Terra. Estava à procura de Youssef. Sua massagista lhe contara ter passado a noite conversando com um judeu interessante que usava esse nick, esse apelido internético. Franciana, de 24 anos, logo o encontrou on-line, puxou papo e ele respondeu. No mesmo dia, Youssef sugeriu que fossem a um bar e ela aceitou.
Buscou-a em casa bem vestido e perfumado, dirigindo um Chrysler escuro. Contou que era agente do Mossad e falou das missões, dos riscos, das aventuras por que passara. Começaram a namorar. Iam a restaurantes, cinemas e teatros, mas só durante a semana. Da tarde de sexta-feira até a noite de sábado, Youssef desaparecia, explicando que respeitava o Shabat, o dia sagrado judaico. “Ele nunca me deixou pagar nada”, contou Franciana.
Depois de três meses de romance, o agente israelense (que havia dito a Franciana que “Kleber” era o equivalente português de Youssef) pediu a jovem em casamento. “Minha família ficou louca, alucinada por ele”, ela disse. Kleber a enternecia por ser, como afirmou, “melancólico, muito triste, sempre chorar muito”. Ela tinha a impressão de que o namorado sofria por “ter passado por tantas missões, visto tanta gente morrer, que havia ficado muito deprimido”. Ele falava freqüentemente em se matar.
Um fim de tarde, depois do expediente, Cida procurou a amiga Diani Lima para conversar. Pela primeira vez, abriu a intimidade. Disse-lhe que estava preocupada com as dívidas enormes que fizera em função de seu caso amoroso. Contou que o namorado trabalhava com pessoas perigosas em Israel, que estava tentando deixar o serviço e ela o ajudava, mas ele era perseguido. “Cida falou que tinha comprado o carro importado para que ele o desse de entrada no pagamento de uma dívida, mas que ele estava era usando o carro”, disse-me Diani. Também revelou à amiga que ele era casado, tinha filhos, mas que, por causa da religião, era obrigado a viver com a mulher.
Os extratos bancários de Cida mostram um incremento da movimentação financeira entre 2005 e 2007. Há saques em dinheiro de 12 mil reais, compensação de cheques de 27 mil e pagamentos de 29 mil reais. Ela havia feito outros dois empréstimos, descontados em folha, que abocanhavam 40% de seu salário. Também comprara uma televisão de plasma, no valor de 8 mil reais, que foi entregue na casa do amante. Sua família encontrou um recibo, no valor de 11 mil reais, do pagamento de mensalidades atrasadas da escola dos filhos de Kleber e Ana Paula. À amiga Diani, Cida contou que pagava até as compras de mês do casal. “Era uma situação tão surreal que só alguém que estivesse muito abalada emocionalmente, praticamente fora de si, toparia se sujeitar”, disse-me o irmão dela, Marcelo.
Certa vez, sem ninguém por perto, Cida mostrou a Diani uma mensagem de celular mandada pelo espião israelense: “Por que você não me atende? Não vê que está me magoando? Eu te amo”, escreveu o amante. “Está vendo como é difícil terminar com ele?”, perguntou Cida à amiga.
Dias depois, Cida contou-lhe que havia vendido a quitinete em segredo, para pagar dívidas. E pior: havia descoberto que Kleber estava saindo com uma menina mais nova. Diani ouviu o relato, estupefata. “Eu disse a ela que o sujeito estava dando um golpe, que ela tinha que ir à polícia, que não era possível essa história de agente secreto”, lembrou a amiga, em sua sala no Superior Tribunal de Justiça. A partir do alerta, Cida passou a evitá-la. “Ela tinha medo de falar o nome dele, achava que estava sendo monitorada, que ia colocar todo mundo em risco”, disse-me. “Repetia que ele falava o tempo inteiro em se matar porque corria risco de vida. Parecia aterrorizada.”
Uma mulher ligou para Franciana e, sem se identificar, contou que o namorado dela era casado e tinha dois filhos. Pressionado a dar uma explicação, Kleber disse à noiva que se tratava de uma investigação de seu trabalho, que a estavam testando para ver se ela estava “apta” a namorá-lo. Depois, admitiu a verdade, com o mesmo argumento que usara com Cida: o casamento era de conveniência. Kleber chegou a levar sua mãe à casa de Franciana para corroborar a história. A voz anônima do outro lado da linha era a de Cida.
Franciana terminou o namoro. Um mês depois voltou atrás: Kleber prometera que se divorciaria. “Divórcio de judeu é mais complicado”, ele explicou, ao longo de meses. Recém-desligada de um emprego, Franciana recebeu uma indenização. O noivo sugeriu que depositasse o dinheiro na conta dele, para dar como entrada em um apartamento para o casal. “Os israelenses estão demorando para mandar o dinheiro das missões passadas”, justificou Kleber. A noiva preferiu esperar o “dinheiro de Israel”, conforme deixou registrado em seu depoimento à Justiça.
Dias depois do telefonema anônimo, Kleber, Franciana e a irmã estavam dentro do carro, no estacionamento do prédio dela. Uma mulher bateu no vidro do motorista, encarou Kleber nos olhos e se afastou sem falar nada. Franciana perguntou de quem se tratava. Ele respondeu que não tinha idéia. Era Cida.
Ela emagrecera 15 quilos. “A gente ia abraçá-la e dava para contar todas as costelas”, disse-me a comadre Inácia. Não comia, tomava soporíferos, mas não conseguia dormir, faltava ao trabalho e se afastara totalmente dos amigos. Alugou uma suíte no hotel Kubitschek Plaza. Ali, ingeriu 180 compridos de ácido fólico e oito do ansiolítico Frontal. No dia seguinte, amanheceu coberta de vômito, com uma dor de cabeça alucinante, arrasada.
Sem mencionar a tentativa de suicídio, ela disse aos pais que estava deprimida e se internaria numa clínica. Cida disse à médica que a atendeu, Maria Mercedes Barbosa, que tomara os comprimidos depois de uma discussão com o namorado. Para a médica, ela era “uma paciente que se desestabilizava frente a estresses emocionais”. Foi enquadrada na sigla CID-10 F33, que significa Transtorno Depressivo Recorrente.
A primeira vez que a família de Cida viu Kleber Ferraz, ela ainda estava internada. Ele foi buscar uma muda de roupa para ela e “ficou olhando para baixo, não quis entrar em casa, achamos que se tratava de um amigo”, lembrou o irmão Marcelo. Quinze dias depois, Cida abandonou o tratamento. Na saída da clínica, foi Kleber quem assinou o termo de responsabilidade sobre a paciente.
Dois anos antes de conhecer Cida, Youssef já freqüentava as salas de encontros da internet. Sônia de Fátima Ferreira, então com 43 anos, divorciada, sem filhos, ficou encantada com o “judeu” com quem trocava mensagens on-line. Rapidamente viraram namorados. O agente do Mossad dormia na casa de Sônia três vezes por semana, mas nunca aos sábados e domingos, quando se recolhia “por ser judeu”. Funcionária graduada da Câmara dos Deputados, Sônia tinha um salário de 20 mil reais.
Com tempo de sobra entre uma missão secreta e outra, ele convenceu a namorada a investir em postos de gasolina, que ficariam sob sua gerência. Sônia fez empréstimos e vendeu a casa no valor de 350 mil reais para arrendar três postos. O irmão de Sônia, o arquiteto Dagoberto Justiniano Ferreira, entrou na sociedade. Kleber empregou o padrasto em um dos postos. Sonia comprou quatro carros: um Xsara, uma Saveiro, um Honda Civic e um jipe. Todos eram usados pelo namorado.
Sônia descobriu então ter câncer. A metástase alcançou com rapidez a coluna, o fígado e os pulmões. Pelos cálculos do irmão, mesmo debilitada, Sônia se endividou em quase 600 mil reais ao longo de um ano e meio – para dar presentes e satisfazer os desejos do namorado. Kleber apresentou Sônia à mãe dele, que imediatamente lhe pediu uma geladeira nova. E foi atendida.
Kleber e Sônia, no entanto, se separaram com estrondo. Em uma ocorrência policial, registrada na 20ª Delegacia de Polícia de Brasília, ela deu queixa de apropriação indébita contra ele. Segundo o depoimento dela, Kleber tirou de sua casa, sem autorização, uma televisão de 29 polegadas, um home theater, uma estação de musculação e uma bicicleta ergométrica. Ela também disse na delegacia que havia financiado dois veículos em seu nome e Kleber se recusava a devolvê-los. Registrou também que, ao saber que ela prestaria queixa na polícia, Kleber a ameaçou. “Ele disse que se soubesse que teria que devolver o carro, iria fundir o motor, e estava pensando em mandar uns policiais da pesada atrás do meu irmão”, afirmou ela à polícia. Sônia morreu em dezembro de 2005.
Em uma tarde de fevereiro do ano passado, Kleber e Cida foram a uma loja de produtos militares. Explicando à amante que se tratava de um disfarce, necessário em certas missões, ele vestia, como ocorreu em outras vezes, uniforme da Polícia Militar: calça escura, coturno, camisa azul e distintivos. Na plaquinha colada no bolso direito, lia-se “Major Kalev”. O atendente da loja pediu seu registro e ele disse ter esquecido. Quando o vendedor digitou o nome do major no computador, o resultado foi “inexistente”. Cumprindo as normas da loja, o balconista avisou a PM, que chegou pouco depois.
Os policiais revistaram o carro dele e encontraram uma arma de brinquedo, algemas, gás paralisante, uma bandeira do Distrito Federal, luvas e um aparelho de dar choque. Ao ser indagado pelo policial se fazia parte da PM, Ferraz disse que não. Cida assistiu a tudo sem dar uma palavra. Foram levados à delegacia, onde ela disse que apenas o acompanhava e sequer havia descido do veículo. Os policiais telefonaram para o Superior Tribunal de Justiça para checar se ela era funcionária, o que foi confirmado pelo chefe de Cida, Guilherme Mendonça.
Na mesma noite, Mendonça telefonou para a casa dela para saber se tudo estava bem. Foi quando a família soube do ocorrido. Cida disse que ela e um “amigo” tinham sido vítimas de um seqüestro-relâmpago. Ao se dar conta de que o seu príncipe encantado era uma fraude, estava afundada em dívidas, tomava remédios fortes que não faziam efeitos e mentia seguidamente a familiares e amigos. Cida começou a levar a sério a proposta da qual Kleber falava freqüentemente: que se suicidassem juntos.
Ela alugou uma suíte para o casal no hotel Bay Park, por um mês, pela qual pagou 2 mil reais. A ficha foi assinada por ela e por Kleber, que se identificou como empresário, mas forneceu telefone e endereço da casa em que vivia com a mulher. O casal quis o “kit garagem”, uma credencial que os permitia entrar e sair sem ter que passar pela recepção, onde um sistema de câmeras monitorava o movimento.
Num domingo, Kleber ligou para o celular de Cida dizendo que estava na casa da namorada Franciana. Cida resolveu tirar satisfações. Dirigiu até o prédio da moça, pediu para subir e Franciana permitiu. Estava trêmula e suada quando entrou no apartamento. Sem preâmbulo, disse que amava Kleber, faria de tudo para ficar com ele, que sabia que ele era casado e o aceitava mesmo assim. “Você sustenta ele?”, quis saber Franciana, interrompendo a torrente de frases. “Pergunta para ele!”, gritou Cida em resposta. Kleber ficou o tempo todo calado.
Cida disse que ia se matar, que sua vida não fazia mais sentido, e saiu. Kleber a acompanhou e, segundo afirmou, passaram o resto do dia conversando. À noite, ele voltou à casa de Franciana. Ela relatou assim a cena: “Ele chegou chorando demais, falando que queria morrer, que ia se matar. Teve que tomar remédio para dormir.”
No dia seguinte, 5 de março, Cida ligou para o trabalho e pediu folga. De casa, saiu para se encontrar com Kleber em um parque. Segundo ele, tiveram uma briga por ciúmes, quando Cida lhe disse que “não era justo” ele manter outros dois relacionamentos “depois de tudo o que eu fiz”. Ao deixar o local, ela teria telefonado para o celular dele e dito: “Hoje vou dar cabo da minha vida.”
Não se sabe quanto tempo depois, Kleber Ferraz ligou aos prantos para sua mulher, Ana Paula, dizendo que ela tinha que localizar Cida com urgência porque “ela ia fazer uma besteira”. A mulher telefonou direto para o tribunal, onde deixou um recado para que Cida ligasse “imediatamente”. Enquanto isso, ele se dirigiu ao hotel Bay Park, onde mantinham a suíte. “A mulher do 3425 vai se matar! Abram a porta!”, ele disse, chorando, ao entrar. A recepcionista o acompanhou. Não havia ninguém no quarto.
De lá, ele foi para a delegacia onde havia sido detido, uma semana antes, por uso indevido de uniforme. “Eu sou o da ocorrência do major da PM”, ele disse assim que viu a agente Poliana Freitas. Segundo ela, Kleber afirmou que Cida estava com um frasco de veneno que haviam comprado juntos, e que ela o tomaria para impedir que ele se matasse.
A policial pediu o número do celular de Cida e ligou para ela, que atendeu prontamente, com um fio de voz. “Venha aqui à delegacia para conversarmos”, pediu-lhe Poliana. “Agora é tarde demais, já tomei o remédio”, respondeu Cida. Uma equipe do Corpo de Bombeiros foi enviada ao hotel. A mulher e o padrasto de Kleber Ferraz já estavam na recepção. Ana Paula confirmou ter falado com Cida, que havia lhe contado sobre o plano de suicídio. Às 13h37, ela também recebera um torpedo em seu celular: “Se quiser, me denuncie. Sinta-se à vontade, pois estou tirando minha vida hoje. Meu sangue está em suas mãos e nas do Kleber.”
Quando o bombeiro entrou no quarto, Cida estava na cama de casal, de bruços, descalça e inconsciente. Na mesa-de-cabeceira, havia duas garrafas de água mineral e um frasco escrito “Veneno Rato Estricnina”, ilustrado pela figura de uma caveira. Também havia uma cartela de calmante com oito comprimidos faltando. O bombeiro tentou aplicar os primeiros socorros, mas ela não reagiu. Cida foi levada ao hospital.
Na delegacia, Kleber Ferraz chorava pelos corredores. Aos policiais de plantão, disse que ele e Cida haviam feito um pacto suicida: alugaram um flat para ser cenário da morte e compraram o veneno juntos. Disse também que haviam cogitado se afogarem no Lago Paranoá. Com as evidências de que Kleber tinha participado, de alguma maneira, do suicídio de Cida, um policial lhe deu voz de prisão. Depois de uma semana em coma, Cida morreu. Por envenenamento.
Assim que soube da tragédia, Inácia fez uma revista no armário da comadre no trabalho. Encontrou uma apólice de seguro de vida, em nome de Kleber Ferraz, no valor de 210 mil reais, feita quando estava com dois meses de gravidez. Na casa de Kleber, a polícia apreendeu remédios controlados, apetrechos judaicos, bonés e camisetas com os dizeres Israel Defence Forces, as forças armadas israelenses.
Kleber Ferraz, ou Youssef, ou major Kalev, nunca foi policial ou agente do Mossad. Era funcionário de pista da Infraero no aeroporto de Brasília, de onde se demitiu quando começou a ser sustentado pelos três postos de gasolina que ganhou da funcionária pública Sônia Ferreira. Não tem curso superior e nunca saiu do Brasil. Não tinha renda, profissão definida ou talão de cheques quando foi preso. Filho único, de família católica, nasceu em Belo Horizonte, trabalhou como ourives, chegou a Brasília para se casar com Ana Paula e serviu o Exército, de onde foi afastado. Cinco meses antes de ser preso, começara a ir ao consultório de um psiquiatra.
Depois de preso, Kleber foi submetido a um exame mental. O laudo atesta que ele é “manipulador, assume uma postura de vítima, tem humor ciclotímico e chora todo tempo. Tem um discurso reticente e contraditório, mas o juízo crítico e o raciocínio lógico estão preservados”. Ao mesmo especialista, a mulher dele, Ana Paula, declarou: “O que eu desejo é que ele morra. Estou altamente revoltada. Quando vi meu nome envolvido nessa situação, o meu pensamento foi de matar a mim e aos meus filhos.”
Durante meses, a polícia e o Ministério Público investigaram a possível participação de Ana Paula na farsa do marido. Não acharam uma prova contundente, a não ser um depósito de 22 mil reais em sua conta. O dinheiro foi bloqueado. À polícia, ela disse que considerara Cida apenas uma amiga, e não tinha ciúmes do marido. Mais: sempre acreditou que ele era agente secreto.
“A única pergunta que me faço é como ela pôde acreditar em tudo isso”, disse-me o irmão de Cida. “Contando a história, as pessoas vão achar que ela era uma boba, uma ingênua, uma desestabilizada, mas isso não é verdade. Ela me dava conselhos sobre investimentos, finanças. Era séria e controlada.” Marcelo calcula que a irmã tenha feito 400 mil reais em dívidas. Até hoje cobranças desconhecidas e insuspeitadas chegam à casa de seus pais.
Em seu depoimento à Justiça, Franciana se mostrou perplexa. Perguntaram-lhe como uma moça bonita e inteligente nunca havia desconfiado de nada e ela respondeu: “Ele sempre tinha uma explicação para tudo. E eu estava totalmente apaixonada. Ele sempre me pareceu sensato, inteligente.”
O delegado Antonio Romeiro, que cuidou do caso, disse que o perfil das mulheres que se apaixonaram por Kleber Ferraz era semelhante. “Não é que ele tivesse uma lábia fenomenal, que fosse um grande conquistador”, disse. “Ele conseguiu enganá-las porque elas eram bem de vida, sozinhas, carentes e com alto instinto protetor. Ele se fazia de coitadinho e as envolvia dizendo que queria morrer. Elas ficavam desesperadas.”
Um mês depois de sua prisão, já sob a orientação de um advogado, Kleber deu um segundo depoimento em juízo. Mudou sua versão e disse que nunca recebeu presentes de Cida, jamais havia combinado o suicídio e, na verdade, era ela quem lhe devia dinheiro. Atribuiu seu primeiro depoimento ao fato de ter sido torturado na delegacia. Nem o exame de corpo de delito e nem qualquer queixa à época comprovaram que tivesse apanhado da polícia. Pretextou desconhecer o seguro de vida em seu nome e disse que tudo o que tinha era fruto de seu trabalho como investigador particular.
Kleber foi pronunciado por homicídio duplamente qualificado: matar por motivo torpe, usando método cruel. Ele teria se aproveitado “da debilidade” de Cida, que “a tornava facilmente manipulável”. Segundo o promotor Maurício Miranda, que entrevistei em seu gabinete, “depois de usufruir dos recursos financeiros da vítima, o réu começou a sugerir o suicídio, fazendo-a crer que ele o faria também”. O estopim, deliberado, teria sido o telefonema que Kleber fez da casa da namorada Franciana. “Naquele momento, ela estava mentalmente incapaz de ter qualquer gesto de defesa ou de recusa à idéia, o que caracteriza o homicídio. Kleber fez aquele teatro todo achando que, se estivesse na delegacia, não teria culpa, e que ficaria claro que ele estaria se esforçando para impedir a morte dela”, ele me disse em uma tarde, em Brasília.
A estratégia da defesa é provar que Cida tinha plena consciência de seus atos quando se matou. “Você acha que alguém que está completamente incapaz na sua razão vai à casa da namorada do cara e arma um barraco?”, perguntou-me o advogado Carlos Gélio de Souza, no bar de um hotel de Brasília. Ele assumiu o caso no fim do ano passado, depois que uma dupla de advogados se afastou por não ter chegado a um acordo sobre os honorários.
“Está claro que Cida se mataria com Kleber, sem Kleber, com fulano ou com sicrano na história”, argumentou Gélio de Souza, se servindo fartamente de amendoins em um pote. Para ilustrar a tese, falou da cantora Elba Ramalho. “Veja o caso da Elba e do marido, você acha que aquilo é amor?”, disse. “Aquilo é um acordo, claro. Eu te sustento e você me dá seu corpo. Isso é muito comum hoje em dia.” Disse-lhe que não havia entendido o exemplo com Elba Ramalho. “É mais ou menos o que aconteceu entre a Aparecida e o Kleber”, ele explicou. Mais alguns amendoins e o advogado retomou o raciocínio: “Ele não é uma vítima. Explorou a moça? Explorou. Inventou a história maluca de agente secreto? Inventou. Agora, assassino ele não é. E é isso que está sendo julgado.” Ainda não há data definida, mas o julgamento deverá ocorrer no final do ano.
Preso há um ano e seis meses, Kleber Ferraz, segundo seu advogado, está sem dinheiro. Gélio de Souza afirma ter recebido só 8 mil dos 50 mil reais que cobrou para defendê-lo. O advogado contou que o casamento de seu cliente chegou ao fim, mas que ele se recusou a assinar os papéis do divórcio. Kleber passa o dia ajudando os outros presos, disse-me: “Ele fica fazendo habeas corpus para os colegas, já soltou uns quatro.” “Então agora ele é um advogado?”, perguntei. “Não, mas ele aprendeu e ajuda os outros detentos”, respondeu Souza. “Ele aprende tudo rápido, é muito inteligente.”
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