O anestésico, aplicado com o auxílio de dardo, transforma a fera de 100 quilos num gato de almofada; a não ser quando não dá certo FOTO: KEVIN SCHAFER_CORBIS_LATINSTOCK
O amigo da onça
Como um ex-caçador agora trabalha pela preservação da espécie
Marcos Sá Corrêa | Edição 15, Dezembro 2007
Como touros na arena, os gatos escolhidos pela valentia nas ruas de Anaurilândia chegam à Fazenda São Manoel para morrer. Passam dois ou três dias soltos no mato, fora das cercas, até marcarem seu rastro no terreno. E, assim que a trilha está feita, o fazendeiro Carlos Roberto Platero solta os cachorros. São cachorros onceiros, treinados para encarar um bicho que pode passar de 2 metros e pesar mais de 100 quilos, capaz de estripá-los com uma unhada. Um Felis catus comum, por menos domesticus que pareça, não é páreo para a matilha. Ele dispara no labirinto da floresta, escala os troncos que aparecem no caminho, arreganha os caninos, faz o melhor possível seu papel de onça. E, ao primeiro mau passo, acaba nos dentes dos onceiros, sem um tiro.
Carlos Roberto Platero recruta gatos em Anaurilândia cada vez que seus cachorros perdem a forma. Ele se converteu à causa das onças depois de matar, em doze anos de caçadas, 53 pintadas, pretas e pardas. E também porque está convencido de que há muita conversa fiada de caçador nas histórias de onça que se contam por aí. Se ela fosse tudo o que se diz dela, Platero talvez nem estivesse vivo para abrir, na mesa do churrasco, a caixa de isopor, de onde vai sacando sua impressionante coleção de troféus fotográficos.
Toda onça que ele caçou está ali, posando para a posteridade como se não tivesse ossos embaixo da musculatura elástica. Ou como um corpo tão rígido, depois de longas viagens em caçamba de picape, que se sustentava de pé no terreiro, como animal empalhado. Há onças penduradas pelas patas traseiras, prontas para o esfolamento; onças sem o couro; e onças resumidas a uma pele esticada ao sol.
No caderno espiral, em que registra suas caçadas desde a primeira suçuarana, em 1986, Platero secou essas histórias a um mínimo de palavras, até extrair a última gota de exagero. Os fracassos cabem em linhas telegráficas: “Soltei cachorros. Cortou Maiada e Guaíra. Não pegamos. Pintada”. Os sucessos, em tabelas de locais e números: “Fazenda Brasília, três”, “Fazenda São Carlos, cinco”, “Fazenda Lourdinha, cinco”.
A lista pára de repente, no fim dos anos 90, quando Platero abriu o inventário das onças capturadas e começa a figurar nas fotografias com o revólver no coldre e enormes cabeças adormecidas no colo. Como o zagaieiro de Guimarães Rosa, no conto “Meu tio, o Iauaretê”, depois de tanto tempo a serviço de pecuaristas, trabalhando para “desonçar esse mundo todo”, ele passou a se sentir “do povo delas”. Sem falar que surgiu em Anaurilândia “um novo mercado” para caçadores tarimbados como ele.
Caçador igual a Platero todo mundo diz que não existe em Anaurilândia. Não só pelo currículo, como pela alergia a contar vantagem. Ele é o primeiro a dizer que fuzilar o bicho é fácil demais. Pegá-lo vivo não deixa de ser um modo de dar à caçada “uma adrenalina extra”. Platero vivia cercado de criadores de gado. Pecuaristas não gostam de onças porque elas não resistem ao banquete de carne mansa, que é o boi preso no pasto. Ele agora é visitado por biólogos e outros amigos da onça, como o gaúcho Dênis Sana, da ONG Pró-Carnívoros que, de tanto ir a campo com Platero, acabou namorando sua filha Juliana.
Sana e Platero pegaram, juntos, 51 onças, desde que a maré virou em Anaurilândia com a represa de Porto Primavera. A hidrelétrica formou naquele trecho do Rio Paraná, entre o Mato Grosso do Sul e São Paulo, um reservatório com 2,5 mil quilômetros quadrados. Um lago artificial 60% mais extenso que o de Itaipu, para gerar um décimo de sua eletricidade. Quando a barragem encheu, Platero via, na beira de suas cercas, onças sem-terra, zanzando nas margens da enchente como se esperassem a inundação baixar.
Que a cheia viera para ficar dá para ver até hoje nas terras de Platero. As árvores foram parar, desfolhadas, mas de pé, no meio da água. “Morreu onça de tudo quanto é jeito naquela época”, ele recorda. Surgiram no rastro da represa as equipes incumbidas de salvá-las. De lá para cá, ele caçou mais do que nunca. Capturou 61 onças em onze anos. Jogou fora, afundando-os com pedras no fundo do rio, os couros que colecionava. Sobraram duas peles de pintadas nas paredes da sua sala. Uma, pelo tamanho excepcional. Vai quase do chão ao teto. Outra, pelo raro desenho das manchas, “que parecem pintas de jaguatirica”.
Anaurilândia também não é mais o mesmo lugar que ele encontrou, ao se mudar para lá, em 1968. Vinha de Araçatuba, no interior de São Paulo, e se criara caçando preás e capivaras. O Mato Grosso do Sul apresentou-o a um estoque aparentemente inexaurível de caititus, queixadas, cervos e antas. Daí às onças era um pulo. Mas ele custou a tomar impulso para dar o salto. “De tanto ouvir história, eu tinha medo delas”, ele admite.
Passara a melhor fase da matança, a da legalidade risonha e franca. Em janeiro de 1967, pela lei número 5197, a fauna nativa virara “propriedade do Estado”. O artigo 27 ameaçava com até cinco anos de cadeia quem se metesse com a exportação de couros. A caça profissional acabara, mas a proibição entrou em vigor com tanta preguiça que, dois anos depois, o Brasil mandaria oficialmente, só para os Estados Unidos, 6 389 peles de onça e 81 226 de jaguatirica.
Não se muda uma tradição do dia para a noite. No Dicionário dos Animais do Brasil, de 1940 e reeditado em 1968 pela Universidade de Brasília, “onça” ainda era praticamente sinônimo de “caça” para o zoólogo Rodolpho Von Ihering. O seu verbete cita, extensamente, “casos autênticos de caçadores que, sem maiores acidentes, mataram elevado número de onças só a facão ou com lança”. A caça clandestina, mas ostensiva, de animais silvestres treinou caçadores e matilhas de onceiros, que vieram a trabalhar para os pesquisadores saídos das universidades, sabendo tudo sobre onças, menos como apanhá-las. Quem lida com elas acaba, mais cedo ou mais tarde, precisando de um Platero. Pode-se capturá-las em laços ou armadilhas. Mas elas, em princípio, não colaboram com seus protetores. Aprendem depressa a se livrar das esparrelas e a roubar iscas sem cair nas trampas. Botar os cães em seu encalço é mais rápido e eficaz. Sem eles, os pesquisadores passam longas temporadas decalcando pegadas e analisando fezes, sem ver a fera propriamente dita.
Foi com a experiência que Platero colheu sua melhor história de onça no Ivinhema, um parque estadual de 73 mil hectares, doado ao governo do Mato Grosso do Sul pela Companhia Energética de São Paulo, como compensação pelas terras que alagou em Porto Primavera. O ex-caçador se juntou, na ocasião, ao biólogo Dênis Sana e ao engenheiro florestal Laury Cullen Junior, do Instituto de Pesquisas Ecológicas, ou Ipê. Logo no primeiro dia de trabalho, os seus seis cachorros, magros e paraguaios, mas de nobre sangue inglês, não negaram a raça. Em minutos, farejaram o rastro de uma pintada. Ela correu sem maiores rodeios para cima de uma primeira árvore. Tudo no melhor figurino desse tipo de caçada. “O animal mais bonito que existe é onça pintada”, diz Platero. “E, quando sobe, então, parece pintura.”
A vegetação do cerrado ajuda a formar esse quadro. Na floresta, nem sempre é fácil seguir os onceiros. E, em campo aberto, eles acabam acuando a fera no chão. Nesse caso, haja cachorro. Jaguar, o apelido mais cosmopolita da Panthera onca, é uma corrutela de yaguara. Vem do tupi “o que luta”. Mas, justiça seja feita, podendo, o jaguar foge do ataque suicida que lhe movem os cachorros. Só reage no aperto. E aí “faz um estrago feio na cachorrada”, como explica Platero. Até onça morta já lhe desfalcou a matilha. Tratava-se de um macharrão de 125 quilos, “preto pintado de preto”, o maior que já derrubou. Devorava os bois da Fazenda Santa Clara. Quando Platero disparou, ele caiu tão pesado que despencou sobre o Corumbá e “esmagou na hora meu melhor cachorro”. Diga-se que, nesses relatos, nomes como Corumbá, Baleia, Faísca ou Balança ressuscitam depois de desfechos trágicos. Os cães duram pouco. E seus nomes reencarnam em novas gerações da matilha.
Com a onça na árvore, pode-se mirar com toda a calma. Foi nesse hiato da correria desenfreada que, em 1912, o ex-presidente Theodore Roosevelt e o sertanista Cândido Rondon trocaram gentilezas diplomáticas, discutindo a quem caberia a prerrogativa de atirar na primeira onça de sua expedição ao Rio da Dúvida. Roosevelt queria dar a vez ao sertanista brasileiro. O anfitrião fez questão de ceder a honra ao norte-americano. A onça, no galho, aguardou educadamente o resultado das negociações e o tiro de Roosevelt. Por essas e outras, Platero costuma afirmar que o bicho não é aquilo tudo que dizem dele.
Numa captura, a espera da onça é mais demorada. Os anestésicos têm que ser preparados na hora, porque o pó é mais estável do que a fórmula pronta. Os dardos variam conforme a distância. Há o marrom, para disparos a menos de 10 metros. O verde alcança 20 metros. Usando de perto o dardo vermelho, para 70 metros, o estrago pode matar, ali mesmo, o objeto de pesquisa. Mesmo com o projétil correto, não é qualquer lugar do corpo que agüenta uma agulhada como essa sem seqüelas. Convém endereçá-la ao quarto traseiro ou à paleta, onde as camadas de músculo são mais espessas. Tudo isso com aqueles dois olhos amarelos pregados em sua pistola.
Antes de apertar o gatilho, o sedativo deve ser diluído na dose adequada ao volume corporal da fera. Platero se considera perito em avaliar, no olho, o peso de uma onça. Usa-se Zoletil, mistura de tiletamine e zolazepam, que anestesia e apaga. Duzentos e cinqüenta miligramas de Zoletil dissolvidos em 50 mililitros de água destilada põem no chão, em cinco minutos, mansa como um gato na almofada, uma onça de 100 quilos. E garantem mais ou menos meia hora de manipulação segura do corpanzil inerte. Platero, apesar de sua aversão à eloqüência, afirma que “ter um bichão desses rendido em suas mãos é uma experiência indescritível”.
Mesmo quando tudo dá certo, a operação é complicada. Mas faz parte do ofício as coisas darem errado. Como no dia em que Laury e Platero emendaram três capturas, uma atrás da outra, no Parque Estadual do Morro do Diabo, no lado paulista do Rio Paraná. Depois do macho e do filhote, ficou para o fim a fêmea. O primeiro dardo só fez assustá-la. Ela desceu de onde estava e se escondeu numa árvore maior, de copa cerrada. Só a cabeça emergia das folhas. E na cabeça não se atira. “Tentamos tudo para ver se ela descia ou mudava de árvore, e nada”, lembra Platero. Foi preciso puxá-la para baixo, a laço, para aplicar a segunda dose. Começaram a caçada de manhã. Ia anoitecendo quando conseguiram devolvê-la à mata.
O macho capturado no Ivinhema não criou problemas. No prazo regulamentar de efeito do Zoletil, já estava medido, pesado e fotografado. Doara uma amostra de sangue para controle sanitário e genético. Ganhara um nome – Cheiro, homenagem ao mateiro que acompanhava a equipe. E passaria a levar no pescoço uma cinta de aço, com radiotransmissor e GPS. Vida selvagem, agora, é assim: on-line, monitorada por satélite. Os colares evoluíram a tal ponto que o Televilt, feito na Suécia, custa quase 2 mil dólares, tem bateria que dura até cinco anos e se desprende, automaticamente, no fim do prazo, passando a emitir do chão as coordenadas geográficas que permitem recuperá-lo.
Só quando Cheiro estava pronto, Platero passou a estranhar o comportamento de Baleia, a mestra da matilha. Ela não parava de latir. “Essa aí não late à toa”, ele comentou. Foi ver o que havia com a cachorra. E deu de cara com outra onça. Eles haviam, sem saber, encurralado um casal. A fêmea estava a 10 metros de suas cabeças, “assistindo a todos os procedimentos”, resume Laury. Como prêmio pela paciência, entrou no dardo também. E agora se chama Tina. Toda onça monitorada por Laury tem nome de gente conhecida – Kate, Alessandra, Suzana, Cássio ou Gigi, por exemplo.
Da última vez em que mandou notícias pelo rádio, seis meses atrás, Tina bordejava, no Rio Paraná, o Parque Nacional de Ilha Grande, 32 quilômetros ao sul do Ivinhema. Passara, no caminho, por duas fazendas, a Vaca Branca e a Touro Branco. Por sorte, invadira as terras dos irmãos Fábio e Álvaro Jacinto. Fábio fez o mestrado em engenharia agronômica da Universidade da Flórida. Gosta de ouvir histórias de onça. Não cria caso se, em trânsito, uma onça lhe rouba um boi. Mas, em geral, furar cerca de pecuarista costuma ser um desvio fatal na carreira da fera.
Tina e Cheiro ficaram juntos mais tempo do que se espera desses animais solitários. Cheiro sobreviveu a seu onomástico. O mateiro que lhe servira de padrinho morreu afogado no Paraná, uma semana depois da caçada. O casal de onças caiu por duas vezes, meses depois, em armadilhas com Cam Tracker – câmeras fotográficas acionadas por sensores de raios infravermelhos que, como os radiotransmissores, devassam a intimidade de existências naturalmente furtivas. O primeiro macho a levar coleira no Pontal do Paranapanema chamou-se Sherlock. Ele inaugurou, em 1997, o projeto Detetives Ecológicos da Paisagem, da equipe de Laury. Andando por um pedaço do Brasil onde, a rigor, não há mais caminhos para o futuro das onças, eles estão redesenhando o mapa no Pontal do Paranapanema e na fronteira oeste de São Paulo. Ensinaram Laury a ver a região com outros olhos. “Os olhos da onça”, como ele diz.
Do ponto de vista das autoridades que decretaram os refúgios da fauna, elas deveriam estar confinadas nos catorze redutos naturais de São Paulo, do Paraná e do Mato Grosso do Sul, separadas por fazendas, assentamentos da reforma agrária, rodovias e cidades. É difícil imaginá-las circulando entre essas reservas, com tantos obstáculos no meio. Mas os colares provam que é isso o que elas fazem. E que, fora de seus territórios legais, podem morrer de quase tudo. Mas escapam da morte certa a que foram condenadas, em poucas décadas, pelo empobrecimento genético e a escolha inadequada do lugar para conservá-las.
Quatro anos atrás, um macho saiu do Morro do Diabo e percorreu, em dez dias, 110 quilômetros de canaviais, pastos, campos de soja, várzeas e capoeiras. Voltou ileso. Ele detém o recorde regional de corrida de fundo para sua espécie. Mas são comuns os casos de fêmeas que, às vezes levando filhotes, atravessam a nado 1,8 mil metros do Rio Paranapanema, que foi inchado naquele ponto pela usina de Rosana. Conhecendo seus trajetos, Laury projeta no Pontal os “corredores de fauna”, cujo traçado é o primeiro passo para recobrir seus percursos com biombos de florestas.
Como as onças, em suas andanças, não tomam partido em conflitos fundiários, fazendeiros e assentados compõem os mosaicos que suas pegadas vão ligando através das cercas. Os assentados de Ribeirão Bonito, por exemplo, produzem 200 mil mudas por ano para reflorestamento e vendem árvores para fazendeiros. No ano passado, eles compraram uma ambulância e puseram computadores na escola comunitária com a renda do viveiro. Do outro lado, o pecuarista Vicente Felício de Carvalho, dono de 16 mil hectares de terras e de 8 mil reses, reservou 720 hectares em seus pastos para reconstituir a mata nativa no roteiro dos bichos. Duzentos e cinqüenta hectares já estão replantados. O resto avança ao ritmo de 100 hectares por ano.
Laury aposta tudo no plano de conectar as reservas, porque, no Pontal, o Morro do Diabo está se enchendo de onças. Ao contrário do que se pensa, isso não é só bom sinal. Eram treze pintadas, no primeiro censo de fauna que se fez lá dentro, em 2003. Devem passar a vinte, no censo do ano que vem. Elas são vistas agora com mais freqüência por pescadores nos barrancos do Paranapanema. Estão fazendo uma verdadeira limpa nas varas de caititus do parque estadual. Sua densidade já se tornou anormal para os 340 quilômetros quadrados do parque, um resto de floresta onde os ipês, as canafístulas e as canelas da mata úmida se embaralham com os mandacarus da caatinga. Mas, por enquanto, segundo os testes do biólogo Eduardo Eiswick, elas incorporaram a seu estoque genético o sangue novo que veio do Mato Grosso do Sul, desde que a barragem de Porto Primavera fechou as comportas.
“Nosso desafio agora é entender se aqui as onças têm futuro”, explica Laury. Ao todo, do Alto Paraná a Foz do Iguaçu, deve haver 200 onças, espalhadas pelos três estados que costeiam os rios. O número sobe para 250, contando com as que vivem de lá para cá, entre a fronteira do Paraguai e da Argentina. Confinadas nos fragmentos florestais e nos resíduos de cerrado que lhes restaram, suas chances de desaparecer, até 2057, estão orçadas em 68%. Com uns dez anos mais, serão extintas também nas várzeas bem conservadas do Ivinhema. Ou dez anos menos, no capinzal da Ilha Grande. Todas essas populações estão ameaçadas de degeneração, por excesso de cruzamentos consangüíneos. “Mas, se uma onça do Morro do Diabo puder chegar sã e salva ao Parque Nacional do Iguaçu, uns 200 quilômetros ao sul, seu fim deixa de ser só uma questão de tempo”, diz Laury.
O problema é abrir-lhes o caminho. E disso ninguém entende melhor do que elas. Fora do Pantanal e da Amazônia, não é de hoje que as onças se esquivam da presença humana sobre o território que elas antes controlavam na América. Perderam quase 40% dessa área. Desapareceram nos Estados Unidos, em El Salvador e no Uruguai. Só no Brasil, na década de 60, matavam-se em média 15 mil onças pintadas por ano. Sobraram 50 mil, do México à Argentina, pela estimativa da União Internacional para a Conservação da Natureza, que nesta década as tirou da companhia das espécies criticamente vulneráveis. Elas continuam na lista brasileiras dos animais sob risco de extinção.
Todas essas estatísticas soam abstratas quando as onças começam a falar no gabinete de Laury. À sua frente, está aberto um grande mapa da bacia do Rio Paraná, desenhado pelo RAMAS GIS, um programa de software que combina no computador as informações dos radiotransmissores com os dados geográficos da região. Há 2,5% de florestas primárias nos pontos que elas freqüentam. Mas 12% dos sinais emitidos pelos colares se amontoam nessas pequenas manchas. Os pastos se esparramam por 51% do território. E só têm 7% das marcas de presença do bicho.
Fugindo do desterro, as onças do Rio Paraná parecem estar atualmente em toda parte. Laury já foi chamado em véspera de Carnaval para buscar uma onça extraviada em Diamante do Norte. Lá, só havia uma testemunha de sua existência. Estava bêbado. E sua história era inverossímil. Ali, o mato mais próximo é o do Caiuá, uma estação ecológica com 1 430 hectares, que, embora exígua, se declara “o maior remanescente florestal contínuo do Noroeste do Paraná”. O homem apontava para um pé de café na beira da estrada, como esconderijo da fera. Cercado de mulheres e crianças, Laury marchou para o cafeeiro. Ergueu um ramo, para mostrar que o rebate era falso. Deu de cara com uma onça preta, “das grandes”. Ela sumiu, de um salto, no canavial.
Laury está há vinte anos, “a metade da vida”, em Teodoro Sampaio. Na cidade, a rua principal é um pedaço de rodovia, onde trafegam dia e noite caminhões carregando soja para o Porto de Paranaguá ou bois para os matadouros. O município tem o nome do engenheiro que desbravou o Pontal do Paranapanema, no fim do século XIX, quando tudo ali era sertão designado no mapa de São Paulo como “terra desconhecida, habitada por índios”. Desde 1905, ele figurava em documentos oficiais como reserva do Estado. Em 1941, tinha 3,4 mil quilômetros quadrados de florestas. Nos anos 50, o governador Adhemar de Barros entregou-o a posseiros e colônias de imigrantes. Sobrou, da grilagem geral, o Morro do Diabo.
Quando Laury foi estudar o mico-leão-preto na última trincheira do Pontal, como assistente de campo do biólogo Cláudio Valladares Pádua, o parque estava espremido entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST, e os fazendeiros. Eles fundaram há quinze anos o Instituto de Pesquisas Ecológicas porque acharam que não adiantava investigar o Leontopithecus chrysopygus se o parque parecia ainda mais frágil que o mico. Laury foi ficando por lá. Mora numa casa pré-fabricada às margens do Paranapanema, onde Izidro, seu vira-latas, atazana as capivaras na beira do rio. Tem um veleiro de 23 pés chamado Pasárgada. Joga aos sábados no Veteranos Esporte Clube. Ganha 4 mil reais por mês. Recusou um convite para ser diretor do Wildlife Conservation Fund porque não quer sair de Teodoro Sampaio.
No escritório, ele enquadrou três retratos na mesma moldura. São fotografias de pescadores, empunhando caniços. À esquerda, está seu avô Lawren, que ainda grafava o nome tal como a família o trouxera dos Estados Unidos, ao migrar para São Paulo no fim da Guerra de Secessão. No meio, vê-se o dentista Laury Cullen, com o prenome abrasileirado pelos cartórios do interior. O filho, à direita, pesca no bote de alumínio que herdou do pai. Os dois caçavam em Piracicaba. Na década de 90, trataram juntos de uma onça com dente quebrado, no Morro do Diabo.
Ambos, e a onça, devem essa oportunidade ao biólogo George Schaller, que ensinou o resto do mundo a invadir a intimidade de leões, tigres, leopardos, pandas e gorilas, sem dar um tiro. “Ele é uma máquina de coletar dados”, diz o paulista Peter Crawshaw, que aprendeu com Schaller, em 1978, a conviver com onças no Pantanal. Seu professor, aos 74 anos, anda neste momento pelos altos platôs tibetanos, quase sempre com uma mochila de 50 quilos nas costas, estudando carneiros e cabras selvagens do Himalaia.
Schaller agüentou pouco tempo o Pantanal. As onças em que ele punha colares morriam antes das outras, caçadas por ordem dos capatazes, que não queriam saber de conservação no Acurizal. Mas fez escola, inclusive pela “tranqüila sensação de alegria” que lhe dava seguir de perto a fera noite adentro, sozinho, por mais de um mês, “a poucas centenas de passos”, as andanças de uma fêmea adulta, enquanto ouvia o bip-bip do rastreador “no silêncio da floresta sem lua”. Depois de Schaller, as aventuras com onças nunca mais seriam as mesmas.
No seu livro mais recente, que acaba de sair nos Estados Unidos como A Naturalist and Other Beasts, ele se confessa um misantropo, que prefere uma boa solidão às más equipes. Mas elogia Craw-shaw, que acabava de se formar em biologia pela Unisinos, no Rio Grande do Sul, quando se ofereceu como assistente de Schaller, sem convite nem carta de recomendação. Duas décadas depois, Crawshaw tem discípulos da Amazônia à Serra Gaúcha.
Ele é de São Vicente. Como Laury, é Júnior. Seu pai o levava para caçar marrecas e biguás na Represa Billings, em São Paulo. Menino, lia “de enfiada” os livros de Francisco de Barros Júnior, da série Caçando e Pescando por Todo o Brasil. Queria ser caçador. Virou doutor em felinos pela Universidade de Gainesville, na Flórida. Cresceu esperando a hora de matar a primeira onça. Aos 55 anos, quase morreu duas vezes para conservá-las. Puxa da perna direita por conta de uma queda de ultraleve, quando testava o aparelho de segunda mão para um programa de monitoramento do Centro Nacional de Predadores, que fundou em Atibaia. Com uma vértebra esmagada no acidente, voltar a andar, mesmo mancando, custou-lhe dois anos e meio de fisioterapia.
Com o queixo marcado por garra de onça e incisivos superiores que esboçam um sorriso permanente no rosto vermelho de olhos azuis, ele parece estrangeiro, até abrir a boca. Quando começa a narrar em voz baixa suas histórias, surge na conversa um Brasil que teve de mudar muito, para continuar a ser mais ou menos como era antes. No hotel de Foz do Iguaçu, onde contou o caso da onça de Comboios, sua mesa acabou cercada de gente, que veio se aproximando à medida que os primeiros curiosos a chegar iam atraindo os outros com gargalhadas.
Para capturá-la, ele despencou anos atrás de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, numa picape do Ibama, até o litoral do Espírito Santo. Passou no caminho por Coxim, pegou os cachorros e “o Tonho”, guia pantaneiro de confiança do fazendeiro João Carlos Marinho Lutz. Cortou quatro estados. Chegou a Comboios num sábado à noite. Domingo, de manhã cedo, foi ao local só ver o que teria pela frente. E não gostou do circo que encontrou armado. Dezoito pessoas o aguardavam. Entre eles, soldados da polícia florestal, montando guarda com escopetas calibre doze, jornalistas e um biólogo, de filmadora armada. Tudo ali começava errado, inclusive “o Tonho, que nunca tinha caçado comigo, e estava acostumado a matar”. Sem saber o que fazer, soltou a matilha, para os cães “esticarem as pernas depois da viagem”. E, antes que lhe ocorresse qualquer outra idéia, a onça estava enganchada, a 2 metros e meio de altura, com sete cachorros ganindo a seus pés, num galho de embaúba, que não é árvore para servir de poleiro a um animal desse porte.
O que havia de mato em Comboios era uma capoeira esquálida. Ele se ajoelhou para preparar o dardo. E a embaúba quebrou antes que armasse a pistola de anestésico. A onça desabou em cima dos cachorros. Quando Crawshaw levantou os olhos, era tarde. “Todo mundo corria para tudo quanto é lado e a bicha estava na minha frente, a 2 ou 3 metros de distância, só que de costas, enfrentando a cachorrada.” O ângulo não lhe permitia acertar o Zelotil no quarto traseiro. E Tonho puxara o revólver.
Foi só gritar “não atira!” para a onça encará-lo, “levantando a beiçarra”. Tonho deu quatro tiros no chão, a poucos palmos da fera. Ela correu, passando rente ao documentarista que, de olho no visor, tropeçara na trilha e estava estatelado na rota de fuga. Para encurtar a comédia, a manhã terminou com três cachorros feridos, mas sem vítimas humanas. Crawshaw liqüidaria a parada cinco dias depois, a 6 quilômetros dali, sem tanta platéia em volta. Tratava-se de um macho já velho, cego de um olho, provavelmente expulso da floresta de Sooretama por sucessores. Não havia outra vaga no Espírito Santo inteiro para ele. Para que não terminasse seus dias num zoológico, Crawshaw “aposentou-o” na fazenda do próprio Lutz, “que tem 15 mil reses e não iria se importar se perdesse um boi ou outro”.
Crawshaw, sem fazer muita conta, acha que lidou com “umas cinqüenta onças”. Vinte e tantas no Pantanal. Nove em Carajás. Treze nas bordas de Porto Primavera. No Iguaçu capturou nove. E seis morreram logo depois, caçadas clandestinamente dentro do parque nacional. No início da década passada, havia provavelmente 150 onças em Foz do Iguaçu. Os caçadores da vizinhança davam cabo de dez por ano. Durante a pesquisa de Crawshaw, um macho caiu oito vezes em armadilhas porque se viciara em comer as galinhas usadas como iscas. Outro virou freguês das lixeiras de um hotel. E uma fêmea deu-lhe muito o que fazer, até ser apanhada, prenhe. Talvez pela gravidez, pareceu-lhe brava. E resistiu demais ao anestésico. Pesava 75 quilos. “E tinha o maior canino que eu já medi: 5 centímetros.” Só dormiu com o dobro da dosagem normal de Zoletil. Desacordada, recebeu o colar diante de uma comitiva, que incluía o pai de Crawshaw, três irmãos, um cunhado e um sobrinho de 5 anos, além de sua assistente de campo, a bióloga Sandra Cavalcanti.
Posto o colar, a onça custou a acordar. Ele ficou de plantão, com o pai, esperando o bicho despertar. “Você é responsável pelo animal até que ele possa se defender sozinho de novo”, Crawshaw esclarece. Com a demora, entrou em cena um casal de escoceses, pastoreado por um ornitólogo americano. Eram observadores de aves. Os três acabaram ficando por ali, contra todas as normas de segurança. “A onça estava deitada, nos olhando com as pupilas dilatadas. Não dava mais para chegar perto dela”, diz Crawshaw. Mas a turista escocesa acocorou-se em sua frente para tirar uma fotografia.
Com o disparo do flash, a onça se levantou, instantaneamente. Assustada, a mulher caiu no barro vermelho da estrada encharcada. A onça, meio grogue, também derrapou na lama. Crawshaw teve tempo de saltar entre as duas, antes que o animal retomasse o ataque. “A bicha ficou de pé, agarrou com as unhas a minha cabeça e me puxou para a boca”, ele lembra. Empurrou-lhe a mandíbula com a mão. O polegar resvalou para o meio dos maxilares. E ele ouviu seu osso estalando, quando os maxilares bateram.
Escorregando na lama, os dois caíram, “por sorte, cada um para um lado”. Graças ao Zoletil, o que sobrava à onça em força faltava-lhe em coordenação motora. Se estivesse sóbria, Crawshaw acredita que ela provavelmente iria embora. Mas, “tonta como estava, avançava em qualquer movimento”. E por isso lá vinha ela de novo, quando seu pai agarrou-a pelo rabo.
“Isso mesmo: meu pai, aos 69 anos, agarrou o rabo da onça e começou a puxar”, diz Crawhaw. “Ela desistiu de mim, virou para trás e lhe abocanhou a canela. Ficou assim, deitada, com a perna dele entre os dentes.” Crawshaw gritou para que o pai não se mexesse, “senão rasga tudo”, correu até o carro e apanhou no porta-malas um taco de bilhar com seringa na ponta. Sem anestésico, servia só para chuchar a barriga da onça. Funcionou, em termos: “Ela largou meu pai e voltou para o meu lado. Pegou um ombro, arranhou-o umas quatro vezes”. Aos tapas com a onça, Crawshaw chegou a recuar até o carro, uma veterana Rural Willys. Só tinha duas portas. E o banco da frente estava, a essa altura, ocupado por quatro pessoas. Crawshaw se atirou no colo dos turistas. Bateu a porta. A onça se chocou contra a lataria. Ficou algum tempo por ali, encarando-o. E só quando ela foi embora ele se lembrou de que as tampas traseiras do porta-malas continuavam escancaradas.
Crawshaw saiu do incidente com escoriações “em tudo quanto é lugar do corpo”, um polegar fraturado e “o beiço pendurado, assim até aqui, ó” – e diz, fazendo com a mão um gesto abaixo do queixo. Depois desse encontro, ele acompanharia a vida da onça, via colar, por catorze meses. Ela ficou, nesse tempo, cada vez mais perigosa. Por três vezes, rondou sua casa de funcionário do Ibama, no começo da Estrada do Poço Preto. Matou-lhe três cachorros, um por visita. A novela terminou quando a onça caiu novamente numa armadilha. Examinando-a, Crawshaw descobriu que ela perdera um canino e sua gengiva infeccionara. Estava reduzida a predar animais domésticos. Despachou-a para o zoológico de Piracicaba, onde a reencontrou quatro anos mais tarde.
Por histórias como essa, o convívio com pesquisadores levou Carlos Platero a desdenhar caçadores. Ele faz questão de deixar claro que matou sua primeira onça sem querer. Pusera a matilha na pegada de caititus e um dos cães levantou a pista de uma suçuarana. Foi tiro e queda. Daí para a frente, “perdeu o susto”. Isso aconteceu em 1986, na Fazenda Brasília. De lá para cá, o que mais o impressionou, nesses 21 anos de prática, foi aprender que, em caçada de onça, “não acontece nada de mais”. E ressalva: “A não ser com os cachorros”. Assim mesmo, “se for onça pintada”. As suçuaranas nunca lhe deram sequer esse prejuízo. Criou um filhote no quintal que corria atrás das galinhas e, “quando elas paravam, ele parava”. Já adulto, “e gordo”, foi embora no dia em que levou uma corrida dos cães.
No tempo em que “detonava”, Platero derrubava suçuarana “que nem preá”. Servia a seus cães um angu de milho com carne de onça. Hoje, cada vez que captura uma delas, ele se sente mexendo “com gato”. Não está tão longe assim da opinião científica. O sistema do sueco Carlos Lineu pôs a onça parda, como Felis concolor, entre os felinos domésticos e selvagens. É o mesmo puma, do norte dos Estados Unidos ao sul da Patagônia argentina. Na Serra Gaúcha, Peter Crawshaw constatou que a suçuarana se adaptou às florestas homogêneas de pínus, mantém-se com dietas à base de tatus e perdeu o hábito de marcar território. A onça pintada é uma Panthera, como os leões, os leopardos e os tigres. As panteras rugem. A suçuarana mia.
Platero não leva a sério os relatos de caçadas com zagaia, a lança curta que era atestado de valentia do caboclo mato-grossense: “Nessas histórias, sempre tem uma hora em que a onça fica em pé, diante do zagaieiro. É aquela conversa de que a bicha se levanta de lá, você escora de cá, ela encosta o peito na lâmina, você empurra, ela puxa o cabo. Eu nunca vi onça ficar em pé. Todo caçador conta que viu. Comigo não aconteceu”.
Seis anos atrás, a Fazenda São Manoel foi reduzida pela cheia de Porto Primavera a 210 hectares. Os pastos que sobraram, Platero arrenda a um vizinho. O aluguel lhe rende 3 mil reais por mês. É uma espécie de aposentadoria. Com a indenização paga pela usina, ajudou o filho a comprar um ônibus. Tiago ganha a vida fazendo transporte escolar em Anaurilândia. Sua filha acaba de se formar em letras. Diplomada, ganhou uma bolsa em Londres, para seis meses de curso de inglês intensivo.
A fazenda de Platero é o sertão e não é. Ele discute com a filha a conveniência de instalar no terreiro uma antena de internet sem fio, via telefone celular. Em seu quintal, mal se enxerga a casa, sob as árvores que plantou ou deixou ficar. Um bando de bugios dorme nas jaqueiras. O cocho que ele abastece de manhã à noite atrai tanto canário, juriti, tucano e amargosa, que o alarido dos pássaros abafa a conversa. Catorze caititus saem do mato à tardinha, atraídos pela ceva de milho que ele os acostumou a fuçar na borda da capoeira.
Na saída, acompanhando a visita até o carro, Platero mostra a seringueira asiática, que já estava ali quando ele se mudou para os arredores de Anaurilândia. A copa cobre, sozinha, todo o caminho da casa até o carro. Suas raízes ameaçam rachar o chão da varanda. “Vou ter que derrubar”, ele anuncia. Por falta do que dizer, comenta-se que deve ser difícil derrubar uma árvore tão grande. “Não”, ele responde. “Eu não falei em derrubar a árvore. O que estou pensando em derrubar é a casa. A casa posso levantar de novo em outro lugar. A árvore me dá pena.”