Moro: nas redes sociais, ele tenta antagonizar com Lula e Bolsonaro, mas, nos bastidores, diz que seu principal adversário é outro – o tucano João Doria, que patina nas pesquisas CREDITO: PEDRO LADEIRA_FOLHAPRESS_2019
O antifenômeno
A jornada presidencial de Sergio Moro
Ana Clara Costa | Edição 186, Março 2022
A missa de domingo na Catedral da Sé na cidade do Crato começa pontualmente às 19 horas. Na noite de 6 de fevereiro, cerca de 250 fiéis ocupavam os bancos enquanto aguardavam o padre Raimundo Pedro, que acabou se atrasando. Quando finalmente chegou ao altar, às 19h11, o pároco não precisou se explicar. Pouco antes do começo da missa, um ajudante paroquial deu os primeiros recados da noite e uma pista do motivo da demora: “Temos hoje aqui a presença do juiz Sergio Moro e do senador Eduardo Girão”, disse. O público recebeu o aviso com indiferença. Quase ninguém olhou ao redor tentando localizar os visitantes ilustres.
O padre rezou a missa normalmente, mas, antes da bênção final, achou que devia justificar a presença de Moro e sua comitiva, que se acomodaram nos bancos intermediários, nem na frente nem nos fundos da igreja. Disse que, minutos antes da missa, fora procurado na sacristia pelo filho de um “nobre cidadão cratense”, que estava acompanhado do ex-juiz e de outras autoridades. Houve silêncio. “Nosso costume, como brasileiro, como nordestino, como cearense, é de acolher bem a todos. Sejam bem-vindos”, disse o pároco, convocando os fiéis a bater palmas para os visitantes. O aplauso durou sete segundos.
A visita ao sertão do Cariri cearense foi a primeira investida de Moro em redutos petistas desde que se filiou ao Podemos e lançou-se como candidato presidencial. No Crato, em 2018, o petista Fernando Haddad teve 84,6% dos votos válidos no segundo turno. O petista Camilo Santana concorreu ao governo do Ceará e venceu em primeiro turno, com 93,29%. O prefeito do Crato, outro que foi eleito com folga, é Zé Ailton, também do PT. A comitiva de Moro não tinha nem mesmo um aliado na cidade para organizar a visita. Precisou recorrer ao tucano Raimundo Bezerra Filho, rebento do tal “nobre cidadão cratense” a que se referiu o padre, para fazer as vezes de anfitrião na cidade.
Apesar do domínio petista, Moro considerava o Crato uma visita indispensável porque a cidade é berço de Padre Cícero. Como tem se apresentado como defensor dos “valores cristãos”, acenando a um só tempo para evangélicos e católicos, Moro contava ainda com mais um bônus. Três dias antes, o presidente Jair Bolsonaro, durante uma live, dissera que Padre Cícero era “de Pernambuco” e, na dúvida sobre sua cidade natal, pediu ajuda a assessores nordestinos presentes, usando uma expressão pejorativa: “Cheio de pau de arara aqui e não sabem em que cidade fica Padre Cícero, pô?”
Moro é um dos brasileiros mais conhecidos do eleitor. Segundo o Datafolha, 94% da população brasileira sabe quem é o ex-juiz da Lava Jato. No entanto, sua intenção de voto, de acordo com a mais recente pesquisa do Ipespe, encomendada pela XP Investimentos, não passa de 8% no país, patamar que se mantém desde janeiro. Pouco depois da visita de Moro ao Ceará, o Ipespe fez sua última sondagem no Nordeste, mas a coincidência não o beneficiou: o ex-juiz cravou 6% de preferência na região, oscilando apenas 1 ponto para cima, dentro da margem de erro.
Com a popularidade de Moro patinando, não é surpreendente que o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), um de seus cabos eleitorais no Nordeste, esteja vendo seu próprio eleitorado minguar. O senador aderiu à campanha do ex-juiz e, desde então, tem observado em suas redes sociais que vem perdendo parte de seus apoiadores, cuja maioria é formada por bolsonaristas. Girão ingressou na política defendendo pautas caras à extrema direita, como o combate ao que os conservadores chamam de “ideologia de gênero”. Em sua primeira tentativa, alcançou o Senado, depois de declarar voto em Bolsonaro. Ele se diz “independente”, sem compromisso com o governo, embora tenha obtido certa notoriedade entre apoiadores do presidente ao insistir diariamente, durante a CPI da Pandemia, que se investigasse também o consórcio do Nordeste (criado por governos de oposição para fazer frente à Covid), e não apenas as suspeitas sobre Bolsonaro. Agradou ainda mais quando se revelou um defensor da cloroquina.
Como todos os apóstolos da terceira via, Girão acha que o eleitor está insatisfeito com as opções de Lula e de Bolsonaro, e que Moro poderá deslanchar. Argumenta que, quando se candidatou ao Senado, seus números também eram desanimadores, mas ele continuou firme e conseguiu a vaga que, no início, todos diziam que estava destinada a Eunício Oliveira (MDB-CE), então presidente do Senado. A comparação ignora as diferenças brutais entre uma eleição para senador e uma para presidente, mas, acima de tudo, não toca na raiz de um fenômeno negativo: o juiz Sergio Moro chegou a ter 64% de aprovação, no auge da Lava Jato, em 2016. Como ministro da Justiça de Bolsonaro, bateu em 59%. Hoje, como presidenciável, sua intenção de voto não chega a dois dígitos.
Detestado à esquerda, em boa medida pelo seu empenho em denunciar petistas e prender Lula, e hostilizado pelos extremistas de direita, por ter rompido com Bolsonaro, Moro se apresentou como um candidato natural da “terceira via”, o apelido que se dá a tudo que não é Lula nem Bolsonaro. Mas sua candidatura é um paradoxo na origem. Bolsonarista de primeira hora, Moro aderiu ao governo antes da vitória eleitoral, ficou dezesseis meses como ministro e saiu atirando: denunciou que o presidente interferia nos rumos da Polícia Federal para beneficiar sua família e seus amigos. Desde então, virou um ex-bolsonarista, mas nunca chegou a ser um antibolsonarista – como mostra sua campanha, seus aliados e seus eleitores.
Durante os três meses de apuração desta reportagem, Moro não quis dar entrevista à piauí. Não foi por falta de tempo. Nesse período, chegou a dar três entrevistas à Rádio Jovem Pan, cuja linha editorial é favorável ao governo Bolsonaro. Foi o veículo com o qual falou com mais frequência. Em compensação, permitiu que a revista acompanhasse toda a sua agenda pública em cinco cidades – duas do Nordeste, três do Sudeste –, com uma única exceção. Em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, durante uma visita à Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), uma entidade do terceiro setor, Moro pediu que eu deixasse a sala para que conversasse um “assunto sigiloso” com a diretora do local.
Os eleitores de Moro estão em duas categorias. Uma pequena parcela é composta por quem votou branco ou nulo em 2018 porque não queria nem Bolsonaro nem o PT. E uma enorme maioria é formada por quem votou em Bolsonaro e se arrependeu. A campanha do ex-juiz trabalha com dados segundo os quais 90% do seu eleitorado, hoje, é composto de ex-eleitores de Bolsonaro.
No Nordeste, os apoiadores engajados de Moro são pouco numerosos, mas não menos estridentes que os de Bolsonaro. Quando o ex-juiz desembarcou em Juazeiro do Norte usando seu uniforme de campanha – camisa branca, calça jeans azul-marinho da Hugo Boss e um tênis da Lacoste –, não havia militância à sua espera, exceto pelos irmãos gêmeos Cosmo e Damião Silva Lemos, dois senhores aposentados de 68 anos, ex-tucanos, ex-bolsonaristas e hoje filiados ao Podemos. Cosmo e Damião gritavam “Sergio Moro presidente” no aeroporto, quase ininterruptamente, e acompanharam a comitiva até a primeira parada, no Horto do Padre Cícero, onde há uma estátua em homenagem ao religioso. Diante do monumento, quando um jornalista local gravou um áudio dizendo que a visita estava “vazia”, Cosmo e Damião se enfureceram. “Petista! Comunista!”, gritaram, fazendo com que o profissional tivesse de sair do local para poder trabalhar. Ninguém os repreendeu.
No Sudeste, em especial no interior de São Paulo, prevalece a identificação dos eleitores de Moro com as ideias de Bolsonaro. Por isso, o candidato obteve recepção mais calorosa do que no Nordeste, embora tenha trocado a agenda de rua pela agenda de gabinete. Em vez do povo, foi ao empresariado. Moro se sente mais confortável em ambientes controlados. Anda sempre com dois seguranças ao lado. Em São José do Rio Preto, no noroeste paulista, em que Bolsonaro teve 78% dos votos no segundo turno, foi bem recebido. Ao desembarcar na cidade, havia um pequeno grupo de apoiadores no aeroporto. Os empresários do agronegócio, embora ligados ao bolsonarismo, não se negaram a conhecê-lo.
No mesmo dia de sua chegada a Rio Preto, Moro esticou até Catanduva, a 60 km dali, para se encontrar com empresários do setor sucroalcooleiro. Foi recebido para um almoço com cerca de trinta usineiros, em encontro organizado por intermédio de Xico Graziano, consultor de sua campanha, que já integrou governos tucanos e apoiou Bolsonaro. Em sinal de deferência ao convidado, Evandro Gussi, presidente da Única, que faz o lobby do etanol no país e no exterior, viajou da capital paulista a Catanduva – mas teve a cautela de não exagerar na simpatia e se indispor com o governo Bolsonaro.
Moro falou por cerca de uma hora respondendo a perguntas dos usineiros. Disse que, se eleito, fará as reformas econômicas que ninguém fez, elogiou o governo de Michel Temer, “que teve lá seus problemas, mas fez reformas positivas”, e afirmou que a liberdade de Lula é “mau exemplo” e abre espaço para que leis sejam transgredidas, como “invadir propriedade”, um argumento que atinge na veia o agronegócio. Rogério Luchini, da Usina São Domingos, que assistiu à apresentação e fez uma pergunta à qual Moro respondeu com evasivas, diz que não quis pressionar muito o convidado e promete votar nele. Se Moro não for para o segundo turno, escolherá Bolsonaro. “Se ele não estiver, vamos contra o molusco (sic). Não tem outra opção”, avisa.
O pecuarista e ex-ministro de Fernando Collor, Antonio Cabrera, um dos homens mais ricos da região, foi procurado por seu sobrinho, Ben Hur Cabrera, um entusiasta de Moro. Queria que o tio organizasse um encontro de Moro com os pecuaristas de Rio Preto. Cabrera deixou claro que apoia Bolsonaro, mas ajudaria a preparar tudo, desde que não fosse em sua casa, e sim na de sua mãe, Dora, para evitar “desgaste”. Ele também avisou que não poderia ir ao encontro. Os cerca de quinze pecuaristas que compareceram queriam saber o que Moro achava sobre pautas caras ao agronegócio, como a liberação do uso de arma de fogo em propriedades rurais, autorizada por um decreto presidencial em 2019. Moro disse que concordava com a medida, desde que restrita aos donos de terras.
O prefeito da cidade de Rio Preto, o emedebista Edinho Araújo, tampouco se esquivou de uma conversa com o ex-juiz. Compareceu a um evento em sua homenagem organizado pelo Lide, grupo que foi fundado por João Doria, hoje fora da entidade, e que reúne líderes empresariais em torno da defesa da iniciativa privada. Segundo Marcos Scaldelai, presidente da seção local do Lide, o ex-juiz foi convidado a visitar a cidade tão logo sua filiação ao Podemos foi anunciada. Scaldelai explica que os empresários querem escutar o que pessoas “de destaque” na política estão pensando. Temer esteve lá em dezembro passado. Em fevereiro, foi a vez o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, o candidato de Bolsonaro para disputar o governo de São Paulo.
As pessoas “de destaque” de Scaldelai não incluem Lula. “É o perfil do nosso estado, é o perfil do interior de São Paulo. Esquerda o empresário não quer escutar.” A piauí não esteve no jantar, mas o dirigente conta que os presentes, umas duzentas pessoas, ficaram satisfeitos com o ex-juiz. “Acharam que ele deu um salto qualitativo. Evidente que ainda falta massa crítica detalhada. Mas ele mesmo explicou que sua proposta ainda está em construção.” O momento feérico da noite aconteceu quando Moro pediu que levantasse a mão quem apoiava a Lava Jato. Todos de mãos levantadas. Em seguida, pediu que fizesse o mesmo quem achava que Lula era culpado. Todos de mãos levantadas.
Rogerio Gabriel, presidente de uma rede de franquias de educação, é entusiasta de Moro e compareceu ao jantar. Diz que ele moralizou a política e que, embora não tenha muita familiaridade com assuntos econômicos, parece ser inteligente e saberá montar um bom time caso passe para o segundo turno. Gabriel votou em Bolsonaro em 2018, a contragosto, diz ele, pois sua primeira opção era João Amoêdo, candidato do Novo. Mas se animou quando viu sua equipe. “Ele montou um time com [Paulo] Guedes, Moro, Salim Mattar, tinha um projeto claro de privatização”, diz. E relembrou a passagem que lhe pareceu mais relevante do currículo do ministro da Economia: “Além disso, tinha a experiência do Guedes no Chile.” A experiência no Chile foi dar aulas numa universidade que estava sob intervenção militar decretada pela ditadura de Augusto Pinochet. “Aí eu pensei: isso pode funcionar”, conta o empresário, hoje frustrado com a gestão atual. Gabriel diz que Moro e o tucano João Doria são as melhores opções. Mas, caso nenhum deles chegue ao segundo turno, o jeito será votar em Bolsonaro outra vez. “No Lula não voto de jeito nenhum. Vai ter que ser Bolsonaro. E depois ir tomar um chope para esfriar a cabeça…”
“No Sudeste, onde o agronegócio é mais industrializado e os produtores vivem em cidades maiores, é possível que o Moro consiga algum espaço porque Bolsonaro errou demais na condução da pandemia”, diz um aliado do presidente, que conhece bem o agronegócio, e pediu anonimato para não se indispor com o governo. “Mas o produtor rural de botina e chapéu, que é a maior parte do setor no país, esse cara está com Bolsonaro.” Segundo esse aliado, a liberação do uso de arma no campo, o fim da pressão dos movimentos sem-terra, o desmonte da legislação ambiental e o fim das demarcações de terras indígenas são “conquistas” que o setor não está disposto a abandonar. “Há 80% do setor com Bolsonaro não importa o que ele faça. Se ele disser que água não molha, eles vão concordar e acabou.”
Os 423 lugares do Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, estavam quase lotados em 9 de dezembro para receber Sergio Moro, que lançava seu livro Contra o Sistema da Corrupção, de 288 páginas, pelo selo Primeira Pessoa, da editora Sextante. Não se tratava de uma noite de autógrafos comum. Por 95 reais, o apoiador do ex-juiz podia comprar o livro autografado e um ingresso para assistir a um bate-papo entre ele e o jornalista Carlos Nascimento, ex-apresentador do SBT e produtor rural em São Paulo. O lançamento, realizado num reduto histórico da classe artística, provocou protestos. A atriz Ana Beatriz Nogueira cancelou um espetáculo no local. Os atuais gestores do teatro tiveram de vir a público afirmar que, depois de dois anos de pandemia, precisavam sobreviver, não tinham patrocínio e haviam alugado o espaço para a editora.
Na hora marcada, cerca de sessenta pessoas surgiram na entrada do teatro, que fica dentro de um shopping center. Chamaram o pessoal na fila de “fascistas”. “Eles não sabem quem é Sérgio Britto, não sabem nada”, bradava uma manifestante, referindo-se ao consagrado ator e diretor que ajudou a fundar o teatro. Moro entrou pelos fundos. Exemplares do seu livro estavam à venda no teatro, dispostos em frente a um painel de fotografias de peças clássicas encenadas no local. A maioria das imagens era da adaptação de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder, lançada em 1982, em que Fernanda Montenegro interpretava uma estilista que vivia um romance tórrido com uma mulher de classe social inferior, interpretada por Renata Sorrah e, mais tarde, por Christiane Torloni. Na maior fotografia, que servia como pano de fundo para os livros, Torloni estava deitada sobre o palco, com uma perna estendida e outra levemente aberta, enquanto Montenegro se inclinava sobre ela, prenunciando um ato sexual.
O painel destoava do ambiente controlado do evento. Naquela noite, os presentes eram em sua maioria homens brancos, adultos e de meia-idade. Alguns portavam a bandeira do Brasil. Outros, cartazes em homenagem à Lava Jato. Moro iniciou o bate-papo explicando por que decidira escrever a obra. Sugeriu que o lançamento simultâneo do livro e da candidatura presidencial fora uma coincidência. Disse que fazia apenas sessenta dias que decidira voltar ao país – e por dois motivos. “Um é para contar essa história [que está no livro] e o outro é por causa de vocês”, disse, estendendo as mãos para a plateia. Recebeu aplausos. Depois, mencionou que os protestos fora do teatro eram plantados, não espontâneos, mas não indicou quem seriam os plantadores. Tentando explicar por que ingressou no governo Bolsonaro, disse: “Muita gente tinha esperança. Muita gente tinha o sentimento de que havia uma chance de dar certo.”
Moro repetiu seguidas vezes que Lula era culpado e que as condenações estavam sendo derrubadas, não porque ele tenha agido com parcialidade, como decidiu o STF, mas porque o sistema político se beneficiava da corrupção. Arrematou com William Shakespeare. “Corrupção existe em qualquer lugar do mundo. Até mesmo nos países mais íntegros. Até mesmo na Dinamarca. Tem até aquela frase famosa, né? Tem algo de podre no reino da Dinamarca”, disse, referindo-se ao clássico diálogo de Hamlet. O exemplo não foi dos mais precisos, considerando que a corrupção do tipo a que Moro se refere não aparece nem perto do topo da longa lista dos males do Castelo de Elsinore, mas cumpriu o objetivo de reforçar sua imagem de xerife cujo trabalho foi sufocado por interesses inconfessáveis.
Terminado o evento, o público deixou o auditório e postou-se à entrada na esperança de vê-lo partir, mas Moro ficou por cerca de uma hora dentro do teatro recebendo convidados, como o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, e o ator Carlos Vereza, também ele um bolsonarista arrependido. Depois, saiu com alguns membros do Podemos para jantar no hotel Emiliano, em Copacabana. Parecia cansado. Chegara naquela manhã ao Rio, dera uma entrevista para a rádio Tupi, tomara um café na sede do jornal O Globo e encontrara-se com a ex-juíza Denise Frossard e com empresários do setor de combustíveis. Considerou que o dia terminara de forma positiva, com muitas novas filiações à sigla no Rio de Janeiro. “Nosso site caiu. Nosso banco de registros online de filiados está completamente congestionado”, me disse Renata Abreu, a presidente do Podemos, naquela noite.
Sergio Moro decidiu que iria para o governo Bolsonaro durante um churrasco em Curitiba, no dia 23 de outubro de 2018, cinco dias antes do segundo turno. Paulo Guedes voara naquele dia até a capital paranaense para tentar convencê-lo a aceitar o convite. O evento para recepcionar o economista foi no apartamento de um amigo de Moro, Carlos Zucolotto Júnior, considerado um ótimo churrasqueiro. O cardápio da noite foi carneiro. Em seu livro Contra o Sistema da Corrupção, Moro conta que, naquela noite, sinalizou a Guedes que, se Bolsonaro ganhasse, ele aceitaria assumir a pasta da Justiça. Escreveu que sentiu “um misto de entusiasmo pela oportunidade” com “receio” de que sua decisão fosse “mal compreendida” e prejudicasse o trabalho que fizera na Lava Jato. Embora afirme que sempre foi contra as falas misóginas, racistas e homofóbicas, bem como a defesa da ditadura militar e da tortura, amplamente proferidas por Bolsonaro na campanha, Moro não mencionou nada disso como ponto de atenção naquela hora. Disse que consultou as pessoas mais próximas e a maioria recomendou que aceitasse, inclusive sua mulher Rosangela e o amigo Zucolotto Júnior.
Conversei com duas pessoas com quem o ex-juiz se aconselhou nesse período, que falaram sob a condição de manter suas identidades no anonimato. Ambas foram consultadas quando a decisão já estava tomada, embora Moro ainda não tivesse ido ao Rio de Janeiro para dar a resposta afirmativa a Bolsonaro, já então eleito. Ambas o alertaram dos riscos. Uma delas foi procurada por Moro por mensagem de WhatsApp e respondeu que “de maneira alguma” ele deveria aceitar o convite, em razão do perfil autoritário e do histórico do candidato. Moro retrucou que, no ministério, teria mais condições de combater a corrupção sistêmica. O conhecido, que vive nos Estados Unidos, rebateu que essa decisão afetaria de forma definitiva a sua imagem. Não foi ouvido. Desde então, não mais se falaram. “Evitei contato e não quero ter. Ele parecia ser alguém que refletia esse anseio da população de buscar por justiça contra atos de corrupção. Foi um grande desapontamento”, diz o apoiador arrependido.
O outro conhecido ouvido pelo ex-juiz conta que ele acreditava que as falas racistas e misóginas, assim como as ameaças antidemocráticas, não passavam de retórica de campanha. Como réplica, Moro ouviu do interlocutor que o autoritarismo estava crescendo no mundo e líderes autoritários vinham cumprindo suas promessas de restringir a liberdade e minar a estabilidade das instituições democráticas. O ex-juiz respondeu que, enquanto ele estivesse no governo, não haveria cerceamentos. “Ele se achava, de certa forma, um guardião. E acho até que ele foi. Seu desgaste com o Bolsonaro se deu justamente por isso, por tentar blindar o que estava ao seu alcance”, diz o conhecido, que reconhece os excessos da Lava Jato, mas avalia que o resultado foi positivo.
Depois de aceitar o convite de Bolsonaro, Moro convocou uma coletiva de imprensa para o dia 6 de novembro. Pediu que a assessoria de imprensa da Justiça Federal anunciasse a entrevista e usou o auditório da vara. Os servidores estranharam. Avaliavam que Moro estava misturando as coisas ao usar os funcionários e o prédio público para uma agenda pessoal. Na coletiva, começou com um elogio inesquecível a Bolsonaro. “Me pareceu uma pessoa bastante ponderada”, falou. “Eu disse a ele que para integrar governo tem de ter certa convergência. Ainda que não haja concordância absoluta de ideias entre nós, há a possibilidade de um meio-termo.” Na mesma ocasião, disse que sua decisão não tinha qualquer relação com Lula, que ele havia sido preso antes de Bolsonaro despontar nas pesquisas, e que não havia interferido no pleito eleitoral com segundas intenções, ao divulgar a delação do ex-ministro Antonio Palocci, que citava Lula, poucos dias antes do primeiro turno. “Quando se divulga notícia falsa em eleição, é fake news. Quando é verdade, é direito à informação”, rebateu o ex-juiz.
Moro também classifica como “direito à informação” outro episódio cercado de controvérsias, quando, às vésperas da votação da admissão do processo de impeachment de Dilma Rousseff, ele divulgou as interceptações telefônicas do ex-presidente Lula, que seria nomeado ministro da Casa Civil. Os áudios, que o ex-juiz então classificou como prova de crime de obstrução de Justiça, foram coletados ilegalmente e tornados públicos poucas horas depois da interceptação, em 16 de março de 2016. O episódio, que mais tarde o STF considerou uma evidência de parcialidade, ainda revelou que Moro agiu em conluio com o Ministério Público Federal. No seu livro, ele diz que não errou. E que “o importante é querer acertar”.
Até hoje, Moro diz que não se arrepende da adesão ao governo, mas, no livro, faz um mea-culpa ao recordar o ímpeto autoritário de Bolsonaro. “Admito que participar do governo cujo presidente era responsável por declarações desse tipo era controverso. Mas, durante a campanha eleitoral, minha avaliação era de que ele havia moderado o tom”, escreveu. Em plena campanha, o “moderado” Bolsonaro defendeu que policial que mata “com dez ou trinta tiros, cada um, tem que ser condecorado, e não processado”, afirmou que “a polícia brasileira tinha que matar é mais”, falou em “fuzilar a petralhada aqui do Acre”, referiu-se à esquerda dizendo que “essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós”de, no mesmo discurso em que prometeu que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, conclamou: “Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia”e– uma referência ao local em que, sob a ditadura, os presos políticos eram assassinados.
Se defesa da democracia e dos direitos humanos não eram preocupações do ex-juiz, o apoio popular – daqueles que ele considera “o povo” – estava no topo de suas prioridades. No livro, ele diz que notou o entusiasmo na feição das pessoas já no voo de volta do Rio de Janeiro para Curitiba, depois de aceitar a vaga de ministro. “Havia muitas pessoas em êxtase.” Justificou-se dizendo que uma pesquisa de um instituto do Paraná apontara que 82,6% dos entrevistados apoiavam sua ida ao governo, que a Bolsa de Valores havia subido e que o dólar havia caído após sua resposta tornar-se pública.
Em entrevista ao Fantástico, da Globo, depois de aceitar o cargo, Moro disse que percebia “nas pessoas comuns um entusiasmo” e “desejo” de que ele aceitasse o convite. “As pessoas me procuram, me cumprimentam. Para mim, é um sinal de que há uma grande expectativa”, afirmou. Na mesma entrevista, disse que estava assumindo no governo um cargo técnico, não político. “Eu não me vejo num palanque, eu, candidato a qualquer espécie de cargo em eleições, isso não é a minha natureza”, afirmou. Ele dera pelo menos seis declarações públicas, desde 2015, afirmando não ter qualquer interesse em se candidatar. No Rio, no lançamento do livro, ao ser questionado por Carlos Nascimento sobre essas promessas, voltou a recorrer ao “povo”. “Eu estava lá, nos Estados Unidos, no setor privado, e as pessoas me pediam para voltar”, disse.
Uma das pessoas que ficou deliciada com a volta de Moro é a designer de joias paulistana Lydia Sayeg, amiga do ex-juiz e entusiasta de sua candidatura. “O que ele fez foi por amor ao Brasil. Ele é um idealista”, me disse a designer, em uma conversa por telefone, em janeiro. Na entrevista, Sayeg relembrou sua felicidade ao ver que o amigo ingressaria no governo. (Ela diz ser amiga do casal, mas que a amizade é mais íntima com Rosangela do que com o ex-juiz.) “Quando ele virou ministro, eu fiquei tão animada! Torcia muito para que essa união dele com o Bolsonaro desse certo. Acho que o Brasil todo torcia para isso. Todo brasileiro patriota torcia. Essa roubalheira do PT foi muito triste”, diz. A designer argumenta que se não houvesse a “roubalheira do PT”, 600 mil pessoas não teriam morrido vítimas da Covid. Perguntei como havia chegado a essa conclusão. Ela respondeu: “É muito triste você ver um presidente roubar o Brasil do jeito que ele [Lula] fez. Tirar todo o dinheiro da saúde e colocar em países lá fora, levando todo o nosso dinheiro para construir metrô na Venezuela, portos em Angola. Tirou bilhões daqui, onde poderiam ter sido feitos hospitais, que teriam salvado as 600 mil vidas que morreram agora de Covid.” Para a designer, que apoiou a candidatura de Bolsonaro, a corrupção é “assassina”.
No dia 6 de dezembro de 2018, a corrupção “assassina” apareceu nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo. Uma reportagem sobre o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontava a prática da “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Fazia pouco mais de um mês da vitória de Bolsonaro. Em seu livro, Moro reconhece que a situação de ingressar no governo em meio àquele escândalo foi “embaraçosa”, mas disse que ficou satisfeito com a resposta que o presidente deu na época, dizendo que quem estivesse errado, neste caso, pagaria pelo erro. Achou “coerente”.
Semanas depois, no dia 22 de janeiro de 2019, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, Sergio Moro se preparava para entrar em um dos painéis dos quais participaria. Toda a cúpula do Executivo estava lá, inclusive Bolsonaro. Naquele dia, o jornal O Globo publicara uma reportagem mostrando que, entre os servidores do gabinete de Flávio Bolsonaro que sacaram dinheiro para repassá-lo ao então chefe de gabinete Fabrício Queiroz, estavam a mãe e a ex-mulher do ex-policial militar Adriano da Nóbrega, um bandido então foragido, hoje morto, acusado de chefiar um grupo de matadores no Rio. A reportagem unia pela primeira vez os temas peculato e crime organizado ao nome da família Bolsonaro. Em Davos, onde me encontrava para cobrir o evento, abordei Moro, junto com outro colega jornalista, para questioná-lo sobre a descoberta. Ele ficou desconcertado e gaguejou. “Não me cabe comentar sobre isso. Mas o que acontece é que… o que acontece é que as… as instituições estão funcionando… normalmente”, disse.
No Ministério da Justiça, o início de sua gestão trouxe entusiasmo aos servidores, que notaram o empenho do novo ministro. Moro passava mais horas trabalhando do que os antecessores, participava de reuniões técnicas às quais outros ministros da Justiça jamais compareciam e pegava cedo no batente: às oito da manhã já estava despachando. Levou para os cargos de maior confiança servidores com quem já havia trabalhado na 13ª Vara Federal de Curitiba. O clima de trabalho era agradável, embora estafante, em razão de Moro exigir um nível de comprometimento acima do normal, enviando mensagens muito tarde da noite ou durante a madrugada.
Mas então começaram as primeiras desavenças com o governo – sobre o Coaf, sobre o decreto do porte de arma, sobre o seu pacote anticrime – até culminar nas crises com a Polícia Federal, nas quais Bolsonaro, atropelando o ministro, escolheu o superintendente do Rio de Janeiro e, depois, o próprio diretor da instituição. Moro apanhava publicamente de Bolsonaro, mas permanecia no cargo. “Optei pelo silêncio, até porque meu foco era o de preservar a autonomia da Polícia Federal, também desejável para a preservação do estado de direito”, escreveu o ex-juiz no livro. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, em que o presidente, na frente de todos os chefes da Esplanada, disse que trocaria o comando da PF e que, se não pudesse, trocaria o ministro, Moro também permaneceu no cargo. Era cético quanto a contornar a situação, mas havia ainda uma ponta de esperança de que Bolsonaro cederia.
Um técnico diretamente subordinado ao ex-ministro relembra que, embora a situação estivesse tensa, houve, na véspera da saída de Moro, a impressão de que as coisas haviam se resolvido e que talvez ele conseguisse emplacar um nome técnico na direção da PF, e não o escolhido do presidente. “Parecia que ele havia conseguido contornar. Moro disse que, na semana seguinte, reavaliaríamos o cenário”, me contou o servidor. Se isso tivesse acontecido, ele avalia que o ex-ministro não teria deixado a pasta. Naquela noite, porém, Moro e equipe foram surpreendidos por informações de que o Diário Oficial da União traria a exoneração do então diretor da PF, Maurício Valeixo. A mudança feria em cheio a autoridade e a vaidade de Moro. Ele então enviou mensagem à equipe avisando que faria um pronunciamento às onze da manhã do dia seguinte, sexta-feira, 24 de abril de 2020, no auditório do Ministério da Justiça. Terminava ali sua jornada no governo Bolsonaro.
Municiado por informações conspiratórias, Bolsonaro acreditava que a postura de Moro na questão da PF tinha o objetivo de minar o governo para que ele próprio, Moro, colhesse os benefícios políticos. Em janeiro de 2020, a revista Época revelara que Moro vinha analisando pesquisas eleitorais com seu nome. As pesquisas não eram custeadas por ele, e sim por uma gestora de investimentos. Mas ele pedia recortes específicos para analisar seu potencial. As sondagens o apontavam com 15% de intenções de voto. A saída ruidosa de Moro, com acusações ao chefe, só reforçou a percepção dos bolsonaristas de que o ex-ministro era um traidor infiltrado no governo.
Com a demissão, o ex-juiz ficou sem rumo. A amigos, confidenciou que não esperava aquele desfecho e que, quando aceitou o convite de Bolsonaro, planejara ficar oito anos no governo. Depois disso, o STF seria seu caminho natural. Nesse período, surgiu o primeiro convite para ingressar no Podemos. O senador paranaense Alvaro Dias relembra que começou a ser pressionado por correligionários para convidá-lo a se filiar, antes que outros o fizessem. “Eu então mandei uma mensagem para ele dizendo que respeitava o momento, que era de reflexão. Mas que, no dia que achasse adequado discutir uma participação política, nós estaríamos abertos”, diz. Moro agradeceu, mas achava que não era o momento de tamanha exposição.
Por lei, Moro precisava cumprir seis meses de quarentena da advocacia, mas, depois de cinco anos sob os holofotes, não queria voltar ao anonimato. Enquanto elaborava pareceres para escritórios de advocacia e participava de lives, respondia ao inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que, além de investigar as acusações, achou que deveria investigar o acusador. Ele também sabia que, se quisesse trabalhar no setor privado, enfrentaria resistências em empresas com boa relação com o governo. O escritório de advocacia Warde, do advogado Walfrido Jorge Warde Júnior, sondou-o para integrar a banca. O ex-juiz foi desaconselhado a seguir em frente com a conversa por avaliar que sua imagem poderia ser prejudicada, já que o escritório é conhecido por contratar pessoas com bom trânsito no meio político. Moro pensou que poderia ser criticado por conflito de interesses, embora não tenha feito a mesma reflexão ao entrar no governo Bolsonaro. No Warde trabalham nomes como Roberta Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do STF, e Valdir Simão, ex-ministro da Controladoria-Geral da União, ambos sócios, e Leandro Daiello, ex-diretor-geral da Polícia Federal.
Morar no exterior sempre foi um desejo da advogada Rosangela Wolff Moro, mulher de Sergio Moro e mãe de seus dois filhos. Com a pandemia no auge em 2020, encontrar um trabalho fora do Brasil era uma missão difícil, sobretudo para um ex-magistrado que nem sabia como pedir um emprego. O ex-ministro pensou que os Estados Unidos seriam a melhor opção pela familiaridade que tinha com o país e o avanço da vacinação. Com a ajuda de conhecidos, preparou seu currículo e despachou-o para consultorias, como a McKinsey, a PricewaterhouseCoopers e a Ernst & Young, que têm setor de compliance, no qual ele pretendia trabalhar.
Depois de conversas com quatro empresas, recebeu duas propostas: da Alvarez & Marsal, uma consultoria de negócios, e da K2 Integrity, uma firma de investigação empresarial dos fundadores da Kroll, que deixaram a antiga empresa em 2009. A proposta financeira da Alvarez & Marsal era mais vantajosa. Moro topou. Nos dez meses de trabalho, recebeu o equivalente a 3,7 milhões de reais brutos, segundo ele próprio divulgou para provar que não enriquecera nem recebera dinheiro de empresas que condenou como juiz da Lava Jato. A todos os empregadores norte-americanos com quem conversou, Moro afirmou que seu objetivo era fazer uma carreira internacional no setor privado. Foi taxativo ao dizer que não almejava ingressar na política.
Quando entrou na Alvarez & Marsal, no final de novembro de 2020, Moro trabalhou no escritório brasileiro por um mês, em razão das restrições da pandemia, antes de conseguir a liberação para mudar-se. Nesse período, recebeu o convite oficial de filiação ao Podemos. “No final de 2020, voltei a ser cobrado para convidá-lo”, conta Alvaro Dias. “Aí fizemos algo mais formal. Marcamos um encontro e conversamos. Falamos que aquele era um convite para uma participação partidária que poderia evoluir para uma candidatura. Ele respondeu que ainda não tinha uma decisão e precisaria amadurecer a ideia. Também disse que tinha compromissos que o impediam de se manifestar politicamente e pediu um prazo de dez meses. Naquele momento, ele conversava com bastante gente. João Amoêdo, João Doria, Henrique Mandetta, empresários…”, relembra o senador.
Em Washington, aonde chegou em janeiro de 2021, a família Moro alugou uma casa em Bethesda, um distrito de classe média já no estado de Maryland, a cerca de trinta minutos de carro do Centro da capital norte-americana. É um local em que vivem muitos funcionários de organismos multilaterais com escritório em Washington, como o Banco Mundial e o FMI. Moro comprou uma picape Jeep Cherokee de segunda mão e mobiliou a nova casa: um sobrado de três quartos, sala com dois ambientes, sala de jantar, cozinha e porão com lavanderia. O imóvel era confortável. Um incômodo era a falta de lavabo no térreo. Qualquer convidado que precisasse ir ao banheiro tinha que subir à área íntima, ou descer até a lavanderia.
A vida em Washington era pacata em razão da pandemia. O trabalho era remoto a maior parte do tempo, assim como a escola do filho mais novo do ex-juiz. A mais velha ficara em Curitiba, onde cursa o quarto ano de direito. Mesmo morando fora, Moro resistia em sair do debate público no Brasil, posicionando-se constantemente nas redes sociais sobre assuntos relacionados à Lava Jato. Um amigo pondera que, embora o ex-ministro seja introspectivo, ele gostou dos holofotes da Lava Jato e do governo – uma projeção que terminou esfriando com sua ida para os Estados Unidos. “Ele gostou de ser figura pública, se sentiu bem”, relata o amigo, com quem ele se aconselhava nessa época. Outro conhecido, também muito presente no período de Washington, diz que “não é vaidade”, e sim um “compromisso de ser brasileiro”. E afirma: “Ele não estava infeliz nos Estados Unidos, mas também não estava feliz.”
Enquanto suas sentenças na Lava Jato vinham sendo derrubadas, Moro assistia, de longe, à ascensão de Lula nas pesquisas. Em junho do ano passado, quando o STF decidiu, por 7 votos a 4, que o ex-juiz atuara com parcialidade nas condenações ao ex-presidente, Moro aparecia em terceiro lugar na corrida presidencial. Segundo o Ipespe, tinha 7% de intenções de voto, mesmo morando fora do Brasil e longe da política. Moro sentia o golpe das derrotas no Supremo, mas andava envaidecido com as pesquisas que o colocavam à frente de candidatos que vinham se movimentando há mais tempo, como Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB). Contudo, ele havia encolhido bastante. Quando saiu do governo de Bolsonaro, o Ipespe lhe atribuía 18% de intenções de voto.
No segundo semestre do ano passado, Moro abandonou de vez a promessa de não se candidatar e começou a articular sua entrada na política para voltar ao Brasil. Tinha reuniões com Amoêdo, Mandetta, o general Santos Cruz e o tucano João Doria, nas quais se discutia, principalmente, a viabilidade de uma “terceira via”. Em agosto, foi convidado pela Casa das Garças, celeiro de economistas tucanos no Rio, para um seminário político. Quem assistiu ao evento notou uma diferença na forma com que Moro se comunicava. “Ele estava fazendo um esforço visível para deixar de ser monotemático. Quis falar de economia, história, política, Estados Unidos. Veio com elaboração”, reparou um dos organizadores do encontro online.
No final de setembro, Moro avisou o deputado federal paulista Kim Kataguiri, então no DEM, que pretendia filiar-se ao Podemos. “Fizemos uma videoconferência”, diz o deputado, outro bolsonarista arrependido e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL). “Ele ainda estava nos Estados Unidos. Falou que queria se lançar e queria saber se teria o apoio dos movimentos. Dissemos a ele que iríamos avaliar.” Kataguiri então convidou Moro a participar de um congresso anual do MBL, em novembro. O ex-juiz compareceu, já filiado ao Podemos, e “foi quem mais empolgou a plateia”, diz Kataguiri. Em troca do apoio do MBL, Moro topou apoiar a candidatura ao governo paulista do deputado estadual Arthur do Val, também conhecido como Mamãe Falei e também ex-bolsonarista. Com o aval do ex-juiz, Kataguiri, Do Val e outros membros do MBL aceitaram se filiar ao Podemos.
Em busca de aliados, ainda antes de voltar para o Brasil, Moro procurou os deputados federais Junior Bozzella e Julian Lemos, ambos ex-bolsonaristas e, então, filiados ao PSL. Bozzella, defensor da Lava Jato, relembra: “Ele falou que vinha acompanhando os meus posicionamentos públicos, me agradeceu e disse que iria voltar ao Brasil e se filiar.” Para Bozzella, a presença de Moro é saudável numa corrida presidencial “entre quem é o menos pior”. Na opinião de Julian Lemos, que brigou com Bolsonaro no primeiro ano de governo, Moro tem “estatura moral” para disputar as eleições. Segundo ele, o ex-juiz e ex-ministro disse que estava voltando ao país para evitar a “tragédia de o brasileiro ter de escolher entre Bolsonaro e Lula”.
Nesse período, Moro recorreu a Maria Cristina Pinotti, doutora em economia pela Universidade de São Paulo (USP), que conhecera nos idos de 2016, durante a Lava Jato. De lá para cá, se encontraram “meia dúzia de vezes”, me disse a economista, quando conversamos por chamada de vídeo no início de fevereiro. Moro queria convidá-la para integrar a campanha. Pinotti topou coordenar o plano econômico em conjunto com seu marido, Affonso Celso Pastore, mas disse não ter intenção de se envolver em campanha nem integrar o governo. É apenas, diz ela, uma contribuição “de ideias”. “Pode haver proposta melhor que a nossa. Mas se alguma coisa do que estiver lá fizer sentido e ajudar na discussão, e as reformas lá na frente avançarem, estaremos mais do que recompensados”, diz.
Moro também fez contato com o advogado Joaquim Falcão, com quem mantinha conversas frequentes. “Eu estava aqui em Lisboa na paz”, recorda Falcão, que aceitou coordenar o programa jurídico da candidatura. “Aí o Moro me liga, e eu fiquei entre a paz e a pátria. E optei pela pátria”, disse ele, em conversa por telefone. O ex-juiz reuniu ainda nomes como o economista Renato Fragelli Cardoso, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o advogado Modesto Carvalhosa e o agrônomo Xico Graziano. Trouxe Luciano Timm, ex-membro de sua equipe no Ministério da Justiça, e o advogado Marcelo Knopfelmacher. Para a coordenação-geral da campanha, escalou um amigo de Curitiba, o advogado Luis Felipe Cunha, da área de telecomunicações, que nunca se envolveu em questões eleitorais. Conheceram-se pouco antes da Lava Jato, por meio de Zucolotto Júnior, o amigo do churrasco, de quem Cunha é vizinho.
A cerimônia de filiação de Moro ocorreu em 10 de novembro, em Brasília e, dez dias depois, parecia que sua candidatura voaria em céu de brigadeiro. Uma pesquisa o apontava com 11% de intenções de voto, à frente de Ciro Gomes e João Doria. O número reacendeu conversas sobre a viabilidade da “terceira via” e colocou alguns políticos em estado de alerta. No gabinete do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), réu num processo por corrupção no STF, deputados ouriçados com a novidade diziam que, com Moro, o Podemos passaria a se chamar “Fodemos”. Um senador relembra que, na época, esperava-se em Brasília que Moro “subiria como um foguete”. “Houve essa sensação por causa da barreira de dois dígitos, que ele alcançou, enquanto outros nomes do centro não conseguiam se mover”, relembra. Mas agora “parece que gorou”, diz ele, sem deixar de dar uma cutucada: “Até o Geraldo Alckmin, que todos chamam de picolé de chuchu, tem mais charme que ele.”
Em meio à empolgação da largada, o economista e ex-diretor do Banco Central, Luiz Fernando Figueiredo, decidiu apresentar Moro para uma parcela do PIB num jantar em sua casa, em São Paulo. Entre os presentes, Luis Stuhlberger (Fundo Verde), Roberto Setubal (Itaú Unibanco), Fábio Barbosa (ex-Santander) e Marcelo Marangon (Citi Brazil). Como esperavam que o novo presidenciável só falasse de Lava Jato e corrupção, os convivas gostaram de ouvir menções a reformas econômicas e privatizações, mas queriam mesmo saber se um governo de Moro – o juiz que prendeu e condenou próceres da política – conseguiria dialogar com o Congresso. Nessa hora, Renata Abreu, a presidente do Podemos, tomou a palavra. Disse que vinha conversando com vários partidos e estava surpresa com o número de parlamentares que procuraram o ex-ministro depois do anúncio de sua filiação. Moro completou dizendo que, para montar a base de apoio antes do início do mandato, chamaria “todo mundo” – para não seguir o exemplo do ex-chefe, que chegou ao Executivo isolado e depois entregou o orçamento e a alma ao Centrão. Ninguém perguntou se o PT estava entre o “todo mundo”.
Um dos presentes, que falou sob condição de não ter seu nome revelado para não melindrar os demais, relatou o plano de governabilidade do ex-juiz como “aquela conversa mole de sempre”. Mas, segundo ele, Moro foi melhor do que se esperava, recebeu elogios, embora não seja “impressionante”. “Você não fica encantado. Mas estamos todos tão carentes de opções que o balanço acaba sendo positivo”, resumiu. Um investidor que foi procurado pelo ex-juiz nesse mesmo período corrobora que ele “impressiona pouco” e “não é um grande orador, você não fica hipnotizado”, mas reconhece que ele está tentando se adaptar e é “claramente inteligente”. “Quando o Fernando Henrique sentava para conversar, você saía da conversa se perguntando: ‘Meu Deus, o que é isso?’ Era impressionante. E o Lula consegue capturar de uma maneira incrível. Mas mesmo sem ter essas aptidões, achei a conversa com Moro boa”, diz.
No final de dezembro, o ex-juiz retornou animado aos Estados Unidos para terminar sua mudança, vender o carro e alguns móveis. Voltaria para Curitiba, onde alugara um apartamento de 270 m² no bairro de Juvevê, região abastada da cidade. O imóvel é mais confortável e mais bem localizado do que o apartamento que comprara quando era juiz, de 160 m², na vizinhança de Bacacheri. Acreditava que seria capaz de catalisar os votos de Bolsonaro e da centro-direita contra Lula. No entanto, pela primeira vez, Moro teve motivos para ficar intrigado. Numa reunião organizada pelo marqueteiro do Podemos, Fernando Vieira, ouviu algo que ninguém jamais lhe dissera. Um especialista avisou que seria muito difícil que seu nome avançasse nas pesquisas no curto prazo. Sua rejeição era altíssima (hoje está em 55%, enquanto Lula tem 43% e Bolsonaro, 62%). Moro sabia desses números, mas jamais havia sido informado, de maneira tão clara, de que se tratava de uma barreira difícil de transpor.
Quando seu pai, José Masci de Abreu, foi abatido pelo Alzheimer em 2013, a deputada federal paulista Renata Abreu, advogada e administradora, herdou um partido sem bancada. Desde que assumiu o então PTN, ela teve um único objetivo em mente: atrair parlamentares para a sigla e lançar candidatos com chance de vitória. Em 2014, elegeu-se deputada pela primeira vez e começou a executar seu plano. Atraiu políticos de siglas de centro-direita e, pouco mais tarde, participou das articulações a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Participar, nesse caso, queria dizer uma coisa só: oferecer votos em troca de cargos.
Na noite de 13 de julho de 2016, presenciei uma cena simbólica do trabalho de Abreu. O plenário da Câmara estava esvaziado, e Sandro Mabel, assessor do então presidente Temer, tinha acabado de checar os acordos para aprovar o impeachment, quando foi abordado por Abreu. Numa conversa acalorada, ela cobrava os seus cargos – no caso, na Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cobiçada por seu orçamento de 3 bilhões de reais e capilaridade por todo o país. Mabel enrolava, dizendo que os indicados de Abreu não estavam à altura da qualidade técnica necessária, talvez evitando entregar um mimo tão precioso para uma bancada tão pequena, então com treze deputados. O futuro comprovou o poder de persuasão de Abreu: o PTN emplacou seus indicados, ocupou diretorias e superintendências e, no ano seguinte, capturou inclusive a presidência da Funasa.
Ousada e atenta aos seus interesses, Abreu percebeu a força de movimentos como o MBL no impeachment, mudou o nome de seu partido de PTN para Podemos e desenrolou a bandeira do combate à corrupção, para surfar no prestígio da Lava Jato. Estendeu tapete vermelho para o senador Alvaro Dias entrar no partido, depois de constatar que ele estava isolado no PSDB e já se aproximava de Moro. Deixou a base de apoio ao governo, quando Temer virou alvo da Lava Jato, tendo que amargar a desfiliação de correligionários que queriam se manter no poder, mas achou que estava dando um passo atrás para dar dois à frente. Seu mantra continuava o mesmo: aumentar a bancada do partido do seu pai.
Hoje, a deputada é a principal articuladora política da candidatura de Moro. Conversa com lideranças partidárias, tenta costurar alianças e se empenha em conciliar os interesses do candidato presidencial com os de sua bancada voraz. Desde já, o caixa é um obstáculo. Seu partido, pelo menos até agora, sem alianças formais, terá pouco tempo de tevê para a campanha presidencial (estima-se em dez minutos diários, no máximo) e pouco dinheiro. Calcula-se que Moro terá 17 milhões de reais. Em 2018, Bolsonaro elegeu-se com muito menos, mas eram condições excepcionais. Hoje, os líderes políticos dizem que uma campanha presidencial competitiva custará – no oficial – entre 60 milhões e 100 milhões de reais.
Em janeiro, Moro teve seu primeiro choque de realidade. Contratar equipe, encomendar pesquisas, viajar pelo país em avião particular para conseguir visitar mais cidades em menos tempo tornaram-se luxos que ele não conseguiria custear com a verba designada pelo Podemos. As vacas eram tão magras que, no voo para Juazeiro do Norte, em fevereiro, o ex-juiz não tivera direito sequer ao “assento-conforto”, que se localiza nas primeiras filas, mas, ao ser reconhecido pela comissária, foi reacomodado na frente depois que todos embarcaram. Moro confidenciou a amigos que o partido não tinha estrutura política e financeira para bancar uma campanha presidencial, e que, embora tivesse uma boa relação com Renata Abreu, ela sozinha dificilmente conseguiria costurar uma saída que melhorasse a situação. Estão tentando uma aliança com o União Brasil, que resultou da fusão entre DEM e PSL, mas está difícil: de dez lideranças do novo partido, só três apoiam uma aliança com Moro. Os que se opõem fazem a seguinte pergunta: por que o União Brasil, que tem a maior bancada da Câmara e 1 bilhão de reais do fundo partidário, deveria usar sua dinheirama com um candidato de um dígito de outro partido, em vez de investir nas candidaturas de seus deputados?
Enquanto as conversas patinam, Renata Abreu não dá sinais de preocupação com a corrida solitária do Podemos até aqui. A situação já causa incômodo no círculo de Moro, que anda desconfiado de que Abreu está menos interessada na campanha presidencial e mais interessada em aproveitar a candidatura do ex-juiz para eleger uma boa bancada parlamentar e aumentar sua base de filiados. A deputada refuta. Diz que, quando a campanha começar de verdade, Moro vai deslanchar, pois terá apoio popular. Seu trampolim, diz ela, será a comunidade evangélica, que está insatisfeita com os desmandos de Bolsonaro na pandemia e rejeita votar em Lula em razão das pautas progressistas.
Sem aliança, sem o União Brasil, Abreu anunciou no fim de janeiro que começara a negociar a formação de uma federação com o Cidadania, o antigo PPS, legenda presidida pelo deputado federal Roberto Freire. A federação é o novo nome da coligação, com a diferença de que a aliança precisa durar quatro anos e seus membros devem votar de forma alinhada. Freire não se empolgou. “O Podemos e nós não temos nenhuma identidade do ponto de vista político. É um partido que eu não sei o que pensa, não tem muita capilaridade e estrutura democrática”, disse. “Além disso, não há uma definição [do Podemos] sobre apoiar ou não Bolsonaro. Alguns deles apoiam e aceitam a pauta do governo. O próprio Moro está aí assumindo pautas e agendas próximas do bolsonarismo nos costumes, a exemplo da carta que dirigiu aos evangélicos. O Podemos não vê problema nenhum nisso. Ou seja, não tem nada a ver com a gente.” Em fevereiro, o Cidadania aprovou a criação de uma federação com o PSDB.
Se em 2018 o tempo de tevê e o apoio partidário foram secundários, como provou a vitória de Bolsonaro, agora a perspectiva é outra. “Em 2020, já houve a volta da normalidade na política e a volta da hierarquia das plataformas, com o tempo de tevê retomando importância”, avalia o cientista político Antonio Lavareda. Para ele, Moro tinha chances reais de vencer a eleição presidencial em 2018, mas agora é complicado. “Se quiser alguma chance, Moro vai precisar de tempo de tevê e de recursos. E para que ele consiga uma coligação que proporcione isso, precisará se mostrar competitivo. Despontar na frente se tornou mais difícil neste ano para ele, com o campo da direita muito mais fragmentado que o da esquerda”, avalia.
Sem dinheiro suficiente, Abreu tem recorrido a empresários para que ajudem o partido com doações. Num jantar promovido pela revista gaúcha Voto, em São Paulo, no qual era a convidada de honra, Abreu apelou: “Campanha custa. Inclusive, se vocês quiserem arrumar doadores, a gente está precisando.” Como a verba não é abundante e Moro já não ganha da Alvarez & Marsal para arcar com suas despesas, ele tem recebido um salário de 22 mil reais do Podemos. Além disso, tem mantido uma agenda como palestrante. O site The Intercept revelou que o ex-juiz negociou um contrato com a corretora Ativa Investimentos, do Rio de Janeiro, para dar duas palestras para clientes da empresa, em fevereiro. Recebeu 77 mil reais. A piauí confirmou a informação.
Dar palestras remuneradas não é ilegal. No entanto, quando se pleiteia ou se termina um mandato presidencial, todas as relações privadas precisam ser bem calculadas para não ganhar uma aura de suspeição. Por ironia, durante a Lava Jato, os investigadores foram exaustivos em suspeitar publicamente das palestras remuneradas que Lula concedera, a ponto de levar o juiz Moro a autorizar o bloqueio de bens do ex-presidente. Moro dizia que, no contexto das investigações sobre o caso da Petrobras, o pagamento que Lula recebia pelas palestras gerava “dúvidas sobre a generosidade” das empresas que o contratavam. As investigações não provaram qualquer ilegalidade e acabaram sendo arquivadas pela juíza Gabriela Hardt, substituta de Moro em Curitiba.
Os entraves partidários e financeiros da candidatura de Moro se somaram a outros problemas causados por falta de coordenação, diagnóstico, experiência política e, inclusive, uma boa dose de ingenuidade. Moro não acredita nas pesquisas convencionais que mostram seu desempenho enfraquecido. Avalia que as projeções de vitória de Lula no primeiro turno são tendenciosas e que, ao somar brancos e nulos, há mais eleitor sem candidato do que com candidato. Aconselhado pelo deputado Kim Kataguiri, tem olhado com mais atenção o eleitorado jovem, entre 16 e 34 anos, por achar que essa fatia específica não chegou a conhecer seu trabalho na Lava Jato.
Do alto de seus 26 anos, Kataguiri explica que estudou em detalhes o eleitor jovem na campanha do colega Arthur do Val, o Mamãe Falei, para a Prefeitura de São Paulo, em 2020. “O eleitor jovem, de classe média, do Sudeste, boa parte não sabe o que foi a Lava Jato. No meu caso, alguns me conhecem mais pelo mandato como deputado do que pelos protestos pelo impeachment. Nesses momentos me sinto velho, quando um jovem me diz que ouviu o pai falar de mim. Mas o fato é que a juventude mais à direita ficou órfã e há um espaço a ser explorado ali, que o Moro pode ocupar”, diz ele, que tem reuniões frequentes com o ex-juiz. “Não estou na campanha, mas sou uma espécie de consultor, conselheiro.”
Em sua busca pelo eleitorado jovem de direita, Moro deu uma entrevista de 4 horas e 58 minutos em janeiro para os youtubers Igor Coelho e Bruno Aiub, conhecido como Monark, então apresentador do podcast Flow, do qual foi expulso mais tarde depois de defender a criação de um partido nazista no Brasil. No meio da entrevista, Moro replicou uma notícia segundo a qual a Blackrock, a maior gestora de ativos do mundo, não investiria mais no Brasil enquanto Bolsonaro fosse presidente. A Blackrock já tinha desmentido a informação, mas o ex-ministro não sabia. Um empresário alertou o pessoal de Moro para o erro – que foi interpretado como mais um exemplo da falta de estrutura da campanha, que não tem nem uma equipe para fazer checagem e evitar que o candidato cometa deslizes públicos.
Nas redes sociais, Moro tenta antagonizar com Lula e Bolsonaro, mas, nos bastidores, ele diz que seu principal adversário é outro – o tucano João Doria, que patina na rabeira das pesquisas. Moro acredita que Doria planta informações desabonadoras sobre sua campanha na imprensa com o objetivo de enfraquecê-lo. Nas conversas que teve com Doria no ano passado, o tucano insistia que a centro-direita precisava se unir em torno do nome mais viável. Moro acreditou. Quando se lançou com números superiores aos de Doria nas pesquisas, imaginou que o tucano abraçaria sua candidatura. No dia 13 de janeiro, um grupo de WhatsApp chamado “Ativação Política” veiculou a informação de que Moro poderia abrir mão da candidatura em favor de Doria. Moro correu para responder que era fake news. Não queria demonstrar fraqueza diante dos membros do grupo, que inclui cerca de cem empresários, entre eles, Jorge Gerdau, e alguns políticos, como Michel Temer e Eduardo Leite.
Com tanto desalento ao redor, Moro tentou reagir. No final de janeiro, antes de sair em romaria pelo Sudeste e Nordeste, procurou pessoas próximas ao governador paulista para cobrar a tal estratégia de “união em torno do nome mais viável” – ou seja, o dele, que está em terceiro lugar nas pesquisas. Disse que começara a receber recortes de pesquisas mostrando que voltaria para os dois dígitos e que sua taxa de rejeição estaria recuando. A abordagem não pegou bem porque chegou com o tom peremptório de um juiz em vez da sutileza de um político. Além disso, a expectativa de bons números não se confirmou. Em uma pesquisa posterior, realizada pela CNT/MDA, o ex-juiz apareceu com 6,4% das intenções, tendo sido ultrapassado por Ciro Gomes, com 6,7%. Bolsonaro, de quem Moro pretende roubar votos, avançou quase três pontos, chegando a 28%. O resultado desanimador, somado à escassez de recursos e de alianças, reacendeu conversas de que talvez fosse mais vantajoso para Moro tentar uma vaga no Senado. “Está tudo meio abandonado”, diz um amigo que se envolveu na campanha no princípio, mas hoje está frustrado com o rumo das coisas. “Cada um no partido só pensa em si. Moro não é flexível, confia em quem não deve e desconfia das pessoas erradas.”
Terminada a missa na Catedral da Sé, no Crato, naquele domingo de fevereiro, a comitiva de Moro postou-se na porta da igreja. Alguns cratenses pediram uma foto com o visitante. Erguida em 1745, a igreja fica em frente à principal praça da cidade, um ponto de encontro dos moradores, onde há atividades para as crianças, carrinhos de venda de comida e bebida e um letreiro gigante com a frase “Eu amo o Crato”. A noite estava fresca, o lugar estava movimentado e curiosos passavam por ali questionando-se quem seria o forasteiro. Ao olhar detidamente para Moro, uma moradora finalmente reconheceu o ex-juiz, mas demonstrou sua frustação. “É baixinho, né? Achei que ele era mais alto.” Moro tem 1,75 de altura.
O candidato atendeu aos pedidos de fotos prontamente, mas seu desconforto era visível. Parecia que não queria estar ali. Não fazia gestos expansivos, a testa permanecia franzida e, com metade do rosto atrás da máscara, seu olhar era sério. Mantinha sempre uma mão em um dos bolsos e a outra reta sobre os quadris, em posição meio robotizada. Não abraçou nem tocou quem se aproximava. Andou um pouco pela praça, circulando por zonas menos movimentadas, como um observador distante. Conversou com Fabinho, como se identificou o pipoqueiro, para saber da situação do trabalhador local.
Em seguida, Moro saiu em direção ao próximo compromisso: um jantar no restaurante do Crato Tênis Clube, o principal clube da cidade. Apesar da presença incomum da comitiva, as famílias que jantavam no local, tal como aconteceu na igreja, se mostravam indiferentes à presença dos ilustres. Na única vez em que se levantou da cadeira, Moro tirou fotos com alguns convidados do partido e foi embora. Ficou no local menos de uma hora. Os veteranos de campanha no Nordeste que viram o ex-juiz em ação afirmam que sua falta de traquejo e o jeito engessado fazem lembrar a folclórica antipatia de José Serra, o tucano que percorreu a região em 2002 na disputa contra Lula. Deu no que deu.