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    A guarda armada no Estádio Nacional, em setembro de 1973: na cooperação dos porões, a ditadura brasileira ofereceu “toda a assistência que for possível e que venha a ser solicitada” CREDITO: BETTMANN_GETTY IMAGES

anais da tirania

O Brasil contra a democracia

Como agentes da ditadura brasileira atuaram nas torturas no Estádio Nacional do Chile, logo após o golpe militar de 1973

Roberto Simon | Edição 172, Janeiro 2021

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A morte de Salvador Allende, presidente do Chile, completava um mês, e o brasileiro Adolpho Corrêa de Sá e Benevides, chefe da Divisão de Segurança e Informações (DSI) no Ministério das Relações Exteriores, ainda sem respostas, errava por escritórios de espionagem da ditadura, em Brasília. Do consulado em Santiago, chegavam ao Itamaraty pedidos insistentes de instruções sobre o que fazer com os 52 presos brasileiros contados até ali no Estádio Nacional.[1] Benevides repassava as comunicações ao Serviço Nacional de Informações (SNI) e aos órgãos de inteligência das três forças militares, mas recebia de volta orientações contraditórias, veladas ou simplesmente um silêncio desnorteador para o eficiente burocrata que era.

O caso baixara às camadas mais profundas do aparato de repressão do regime militar brasileiro, muito além da alçada do conselheiro.

Nas comunicações secretas do cônsul interino em Santiago, Luiz Loureiro Dias Costa, ao Ministério em Brasília, havia trechos do tipo:

As condições em que se encontram os detidos no Estádio Nacional são precárias, quase desumanas, visto ter ali como “população flutuante” desde o dia 12 de setembro quase 6 mil pessoas. Apelo para o sentido humanitário de vossência [contração de vossa excelência] afim [sic] de receber instruções urgentes.

A imprensa internacional começava a reportar indícios de graves violações – de tortura a execuções sumárias – que ocorriam intramuros no complexo desportivo.

Sem ordens claras vindas de cima, o Itamaraty inicialmente optou por abandonar os brasileiros na arena em que Vavá e Garrincha conquistaram a Copa de 1962, agora metamorfoseada num campo de detenção sem precedentes na história latino-americana. Do lado de fora, corria a rede de arrasto, com diplomatas, militares e arapongas da ditadura brasileira a rastrear exilados que tentavam se salvar e fugir do Chile.

Para alguns na alta hierarquia do ministério, como Marcos Henrique Camillo Côrtes – o primeiro chefe do Centro de Informações do Exterior (Ciex) e pupilo de Manoel Pio Corrêa, o criador dessa agência clandestina de repressão dentro do Itamaraty –, os asilados brasileiros que desejassem voltar para casa tinham direito “líquido e certo” de fazê-lo. Apenas cidadãos banidos nos termos da Lei de Segurança Nacional estavam proibidos de entrar no território brasileiro. Se o governo vetasse o retorno dos demais, advogados dos asilados poderiam impetrar um mandado de segurança. “[Mas] na prática, o MRE [Ministério das Relações Exteriores] tem recusado o regresso [de brasileiros no Chile] por orientação do SNI, que tem desaconselhado o retorno”, explicava Benevides nos memorandos à Secretaria de Estado e ao gabinete do chanceler.

A cúpula do Itamaraty tinha pleno conhecimento da lei e sabia que a estava violando. Nem os diplomatas do Uruguai do presidente Juan María Bordaberry chegariam a tanto – preferiram entregar concidadãos à guarda do embaixador sueco. Depois, quando finalmente vieram as ordens do gabinete do presidente Emílio Garrastazu Médici, os diplomatas deixaram o caso para militares da adidância da embaixada e para interrogadores enviados do Brasil, munidos de informações coletadas com ajuda do Itamaraty.

A decisão dos golpistas chilenos de usar o estádio para confinar suspeitos foi tomada no próprio dia 11 de setembro. Os arquitetos do novo regime antecipavam que o expurgo do marxismo no Chile produziria muito mais presos do que comportava o sistema penitenciário, civil ou militar. No dia seguinte, caminhões e ônibus começaram a despejar a massa humana no Estádio Nacional e no vizinho Estádio do Chile. Era tão inimaginável a escolha que, ao descerem, algemados, alguns dos detidos se animaram, acreditando que veriam uma partida de futebol. Soldados jovens, alguns imberbes e quase todos de partes pobres do interior do Chile, foram levados para fazer a guarda.

As dezenas de milhares de chilenos e estrangeiros que passaram naqueles meses pelo Estádio Nacional viram a barbárie adquirir contornos surreais. Alguns jamais sairiam com vida pelos portões.[2]

Vestiários de boleiros viraram “salas de interrogatório” ou celas superlotadas com mais de cem pessoas (era preciso se revezar para dormir, pois não cabiam todos deitados simultaneamente no chão). Corredores por onde antes circulava a torcida agora estocavam pilhas de cadáveres anônimos sobre poças de sangue. A área do velódromo se tornou um complexo de tortura, com caixas de som tocando Beatles e Rolling Stones a todo volume para abafar urros de dor. Os alto-falantes, em vez do nome dos jogadores e do placar, anunciavam a lista dos próximos a serem interrogados e, alguns, torturados.

O universo de presos não podia ser mais diversificado: de integrantes do Movimento de Esquerda Revolucionária (MRI, em espanhol) a chilenos detidos por acaso, de uruguaios do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T), com seu bigode característico, a turistas que escolheram a hora errada para visitar o Chile. Cerca de 10% eram estrangeiros, de quase quarenta nacionalidades. Ao secretário-geral da ONU, o austríaco Kurt Waldheim, o chanceler chileno Ismael Huerta mentia: todos os estrangeiros que não tivessem cometido “crimes” no Chile receberiam “proteção completa” das autoridades.

Num dos vestiários-cela do estádio estava um ex-jogador da seleção de futebol chilena, Hugo Lepe, que disputara as eliminatórias da Copa do Mundo anos antes, no mesmo estádio. O capitão do time, Francisco “Chamaco” Valdés, conseguiu visitá-lo no cárcere improvisado em que antes havia avançado rumo à classificação para o mundial na Alemanha, a ocorrer no ano seguinte.

No saguão principal, na ponta de uma fileira de cinquenta corpos, foi reconhecido o rosto desfigurado de Victor Jara, o mais celebrado cantor da esquerda chilena, além de poeta, folclorista e diretor teatral. No Estádio do Chile, Jara teve as mãos e costelas destroçadas por socos, pontapés e coronhadas, ficou quase cego de um olho e foi deixado sem comer e sem beber. Seus colegas tentaram usar um cortador de unhas para dar fim à sua característica cabeleira, na esperança de que pudessem assim escondê-lo dos guardas. Não conseguiram. Seu corpo acabou atravessado por mais de quarenta tiros e largado num canto do Estádio Nacional.

Nas celas, com brasileiros, estavam um dos filhos do senador Luis Corvalán, o líder do Partido Comunista chileno,[3] e o médico pessoal de Allende, Patricio Gijón, o primeiro a ver o presidente morto no La Moneda, em 11 de setembro.

Sem o que fazer, os presos gastavam as horas na arquibancada temendo escutar seus nomes no sistema de som. Uma das distrações era acompanhar funcionários do estádio que aparavam a grama. Brasileiros fizeram das cadeiras instrumentos de batuque para acompanhar sambas-enredo clássicos. Peruanos e bolivianos também tinham seu número, em que imitavam flautas indígenas com a voz. Foi montado um coro de prisioneiros, que chegou a fazer apresentações, mas acabou desfeito depois que a imprensa favorável aos militares exibiu a cena para mostrar como a vida no estádio não era de todo má. Afinal, presos até cantavam.

Confinadas no setor das piscinas, algumas mulheres foram vítimas de abuso sexual – às vezes por outros presos que, na ponta do fuzil, eram obrigados a violá-las. Delatores circulavam escoltados, usando sacos de papel na cabeça, com dois furos na altura dos olhos, a identificar ex-companheiros.[4] E, do lado de fora, as filas que brotavam dos portões de aço não eram de torcedores, mas de parentes em busca de informações ou tentando passar cartas e comida para dentro do buraco negro da legalidade chilena. Brasileiros que chegavam naqueles dias ao Chile em busca de parentes presos no estádio – sobretudo pais e mães atrás dos filhos – também imergiam na multidão, mas raras vezes saíam dela com notícias.

“Nós, como eles, estamos um pouco desligados do mundo exterior”, explicou o comandante do campo, o coronel Jorge Espinoza Ulloa, numa entrevista aos primeiros jornalistas que entraram no estádio, no dia 22 de setembro. “Eles” eram os presos sentados na arquibancada, filmados e fotografados pelos repórteres que haviam sido levados ao gramado. A comiseração fez jornalistas jogarem cigarros através das grades entre o campo e o setor da torcida. Entrevistas foram feitas aos berros, com recados a parentes que estavam do lado de fora.

Espinoza mostrou aos visitantes uma tabela de calorias consumidas diariamente pelos detentos, fruto de sua apetitosa imaginação. A dieta diária costumava ser café com leite e um pequeno pedaço de pão, pela manhã, e uma sopa rala com fiapos de galinha ou feijão, apelidada pelos brasileiros de “caldo de urubu”.

Faltava ainda malandragem política à junta chilena para esconder seus crimes, coisa que o tempo lhe ensinaria. Ao verem chegar mais um ônibus lotado de presos, os jornalistas que faziam o tour imediatamente avançaram para tentar entrevistar os que desciam. A reação dos militares foi agredir os profissionais, diante das câmeras – um desastre de relações públicas para o regime. Com a imprensa, entraram também no estádio os funcionários do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e, depois, diplomatas estrangeiros que tentavam resgatar concidadãos – ou, em alguns casos, qualquer um que conseguissem tirar dali.

 

O Estádio Nacional começava a aparecer em jornais de todo o mundo. Mas, em Brasília, as perguntas que chegavam do consulado em Santiago continuavam sem resposta.

No dia 22 de setembro, o cônsul Luiz Loureiro Dias Costa foi chamado à chancelaria chilena para receber a lista dos presos com nacionalidade brasileira. Os 52 estavam divididos em três categorias: 31 não respondiam a acusações e seriam expulsos do país, 13 teriam de passar por um julgamento militar e 8, “novamente interrogados”. Entre os membros do primeiro grupo, 5 haviam manifestado aos militares chilenos o desejo de voltar ao Brasil e, contra o conselho da maioria dos brasileiros presos, pediram para acionar o consulado.

Quem cuidava diretamente do assunto era Dias Costa, à frente do serviço consular em Santiago. Segundo suas mensagens a Brasília, o embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto era mantido informado sobre as tratativas e acompanhava de perto o caso.

Horas depois de receber a lista, o cônsul foi pessoalmente ao estádio falar com os brasileiros que queriam voltar para casa. Os cinco presos se entusiasmaram ao ouvir que seriam soltos em breve. No dia seguinte, retornou ao campo de prisioneiros e conversou com o comandante da tropa, coronel Espinoza. O militar lhe prometeu uma relação atualizada de todos os brasileiros que tinham recebido aval para deixar o estádio.

O caso dos brasileiros que queriam ir para casa era simples, segundo disse o coronel ao cônsul. Bastaria ao Brasil solicitar os salvo-condutos que as autoridades chilenas emitiriam de pronto os documentos. A junta queria começar a esvaziar o quanto antes a prisão improvisada, ouviu Dias Costa da boca do coronel. O mesmo recado o embaixador Câmara Canto escutara do ministro da Defesa, Patricio Carvajal. O cônsul pediu instruções urgentes sobre quais presos poderiam ser repatriados. Enquanto a resposta não vinha, orçou passagens de Santiago ao Rio de Janeiro na Varig.

A relação final do coronel Espinoza contaria 56 brasileiros dentro de seu improvisado campo de prisioneiros – 4 a mais que a primeira. Anos mais tarde, o ex-chefe da polícia política chilena, o coronel Manuel Contreras, divulgaria uma lista de 108 brasileiros que estiveram no Estádio Nacional. É improvável que o número tenha sido tão alto. Segundo papéis da estação da CIA em Santiago, 71 brasileiros passaram pelo cárcere desportivo.[5]

Dias Costa foi informado ainda que outros 22 cidadãos do Brasil haviam sido levados para a prisão militar da Ilha Quiriquina, na Baía de Concepción, dos quais 13 já estavam em liberdade. A depender dos chilenos, poderiam seguir para o Rio de Janeiro de avião. Novamente, o governo brasileiro só precisava solicitar, por meio de uma nota oficial, os salvo-condutos e assumir a responsabilidade de tirá-los do Chile.

Passou uma semana e o cônsul continuava sem instruções. Brasília emudecera. Benevides, o chefe da DSI do Itamaraty, ainda não havia recebido respostas definitivas dos órgãos de inteligência, apenas sinais imprecisos de que ninguém deveria voltar ao Brasil. O Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) por fim respondeu-lhe que era favorável ao regresso, sob uma condição: ao chegarem ao Brasil, deveriam ser imediatamente interrogados por seus oficiais. A Marinha, o Exército e principalmente o SNI não se pronunciavam.

De Santiago, o cônsul insistia:

As autoridades militares chilenas, mediante simples solicitação diplomática para que sejam expedidos os salvo-condutos para deixarem o Chile, entregarão à minha responsabilidade os citados brasileiros. Muitos deles não possuem presentemente documentação brasileira em ordem. Nada de desabonador encontrei deles em meus arquivos. Rogo vossência autorizar-me a recebê-los e embarcá-los no primeiro avião da Varig.

Do outro lado, silêncio.

Exatamente um mês após o golpe, Benevides foi recebido pelo coronel Darcy Boano Mussói, da Agência Central do SNI, para discutir o futuro dos brasileiros no estádio. A conversa começou com o diplomata a explicar os contatos entre o Itamaraty e as autoridades chilenas. O coronel Mussói respondeu que falava em nome do próprio chefe do serviço de inteligência, o general Carlos Alberto Fontoura, e era “desaconselhável” o retorno de brasileiros fichados como subversivos. Quanto aos demais, deveriam ser analisados “caso a caso”.

Ou seja: até segunda ordem, a entrada no território nacional de brasileiros que tivessem sido presos no Chile estava oficialmente vetada pelo SNI. O cônsul foi orientado a negar às autoridades chilenas o retorno de 3 dos 5 brasileiros, pois tinham ficha criminal, e a repassar mais informações sobre os outros dois para averiguações adicionais. Entre os três proibidos de retornar ao Brasil estava Maria das Dores Romaniolo, que, embora não tivesse antecedentes policiais, era culpada de ser a esposa de Wânio José de Mattos, o ex-policial de São Paulo que integrava a cúpula da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no Chile.[6] Ao ser presa com o marido, viu a filha de 2 anos ser levada pelos militares. Maria foi resgatada pelo Comitê Nacional de Ajuda aos Refugiados (Cnar) e, graças à intervenção de um oficial chileno, teve a filha devolvida. Levadas à Suíça, Maria continuaria – sem sucesso – por anos a tentar tirar um passaporte brasileiro e voltar para casa. Seu nome permaneceria na lista negra do Itamaraty até seis anos após a morte do marido.

Dias Costa obedeceu às ordens e entregou uma carta confidencial ao coronel Espinoza negando aos brasileiros o direito de retorno. Mas o cônsul aparentemente não entendeu bem o recado de Brasília, ditado pelo SNI.

No dia seguinte à reunião entre Benevides e Mussói, Dias Costa ajudou a retirar do Estádio Nacional três brasileiros, cujos nomes não estavam na lista dos cinco que primeiro haviam manifestado desejo de voltar ao Brasil. A mãe de Solange Albernaz de Melo Bastos e os pais de Ricardo de Azevedo e Antônio Paulo Ferraz – todos condenados à expulsão do Chile – haviam viajado a Santiago para tentar resgatá-los, desesperados com as notícias do golpe no país onde viviam os filhos. O caso de Ferraz era especial: seu pai, proprietário de um estaleiro no Rio, tinha contatos com o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). A Marinha teria permitido o retorno do jovem sob a condição de que ele, ao chegar, fosse diretamente prestar depoimento.

Dias Costa concordou em liberar os outros dois, mas era responsabilidade dos familiares garantir a saída deles do Chile. Em caso de novos problemas, avisou, lavaria as mãos. O cônsul enviou os três pedidos de salvo-conduto à chancelaria chilena e, no mesmo dia, os três presos foram libertados e entregues aos pais. O vice-cônsul Lélio Demoro foi buscá-los no estádio e os levou aos hotéis onde permaneceriam com os pais. Ao ver seu filho com olheiras profundas e a roupa que não trocava havia semanas, um dos pais achou por bem conduzi-lo discretamente pelo elevador de serviço.

É difícil determinar as razões que levaram Dias Costa a deliberadamente desobedecer às ordens da chancelaria. Talvez o agente consular tenha agido, corajosamente, em nome do imperativo moral de socorrer os cidadãos de seu país que, segundo suas próprias palavras, viviam sob condições “quase desumanas” no Estádio Nacional (o primeiro comandante do campo falava em “situação dantesca”). Segundo Ricardo de Azevedo, um dos três libertados, porém, outros fatores, menos abonadores, motivaram o cônsul: seu pai, um empresário mineiro, afirmou ter subornado Dias Costa para que ele ajudasse a tirar seu filho da prisão chilena – acusação que até hoje não foi corroborada por nenhuma outra fonte.[7]

Passados dois dias, um ônibus especial levou os jovens e seus pais até o aeroporto. Viajaram primeiro a Buenos Aires, onde a polícia os esperava, e foram mantidos numa sala isolada no aeroporto de Ezeiza. Por fim, tocaram solo brasileiro, no Galeão.

Agentes da Marinha aguardavam Ferraz na área de desembarque. Azevedo e Bastos não tinham passaporte válido, o que deixou o policial federal de plantão encafifado. Ele folheou um enorme livro com nomes de procurados, mas nada encontrou. O agente continuava a achar estranha a falta de passaportes e ameaçou levá-los ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde passariam a noite, mas acabou persuadido por uma nota de 100 dólares que saiu do bolso do pai de Azevedo. “Vale para os dois, certo?”, disse o empresário ao policial, apontando para Bastos. “A garota vai nas tuas costas, doutor”, o grupo ouviu.

Quando o caso chegou à imprensa do Rio, com uma frase de Solange Bastos dizendo que deixara o Estádio Nacional “por interferência do cônsul brasileiro”, o chanceler Mario Gibson Barboza explodiu em fúria. Começou a bombardear Dias Costa com perguntas – queria saber se era verdadeira a notícia e por que ele não havia consultado o Itamaraty antes de ajudar a retirar os três brasileiros do estádio, conforme fora explicitamente instruído. O cônsul confirmou que havia ajudado a retirá-los, justificando que não encontrara “nada de desabonador” contra eles em seus arquivos, e que o coronel Espinoza tampouco via problema nas libertações. “Ao dar-lhes proteção consular, achei desnecessária a consulta prévia”, completou.

Com as respostas que chegavam do consulado, Gibson Barboza se enraivecia cada vez mais. Por fim, decidiu cortar as asas do “insolente” Dias Costa e ordenou que, daquele momento em diante, ele só agisse sob ordens diretas de Câmara Canto. “[O embaixador deve] exercer o mais estrito controle sobre os atos do Consulado-Geral em tudo que se refira a brasileiros suspeitos, subversivos ou que se encontrem detidos”, decretou.

O chanceler começava a suspeitar do cônsul quando um dos presos brasileiros, Wânio de Mattos, o ex-capitão e militante da VPR trocado pelo embaixador suíço em 1972, morreu por falta de atendimento médico dentro do estádio. Com fortes dores na barriga e vômitos incessantes, sem defecar havia dias, Mattos foi diagnosticado por presos médicos – incluindo o brasileiro Otto Brockes – com abdômen agudo cirúrgico, condição que pode levar à morte se não for tratada. Brockes fez um relatório com um apelo para que ele fosse imediatamente levado a um centro cirúrgico. Foi ignorado. Quando Mattos chegou desacordado à enfermagem que funcionava na praça esportiva, seu estado já era irreversível. Militares registraram a morte do brasileiro em 16 de outubro e Câmara Canto foi formalmente notificado oito dias depois.

Após ser solta do estádio, a esposa do ex-capitão soube que se tornara viúva quando soldados chilenos lhe entregaram um saquinho plástico com o relógio, os óculos e a aliança de Mattos.[8] A embaixada e o consulado do Brasil em Santiago tomaram nota da morte e encaminharam a papelada ao Itamaraty. Àquela altura, entretanto, eram outros funcionários do regime militar que assumiam o dossiê do Estádio Nacional do Chile.

 

No dia 15 de outubro, às 11h40, aterrissou no Aeroporto Los Cerrillos, em Santiago, um bimotor Avro C-91, de número 2500, da Força Aérea Brasileira. Pilotado pelo major Zilson Luiz Pereira da Cunha, o avião partiu de São Paulo e fez escala em Montevidéu, antes de cortar os Andes. Sua “Permissão de Sobrevoo e Aterrissagem” – formulário que o coronel Walter Mesquita de Siqueira, adido militar da embaixada, entregava aos chilenos para obter aval a voos oficiais – tinha alguns pontos incomuns. Ao contrário dos aviões que haviam pousado nos dias anteriores, aeronaves Hércules C-130 trazendo alimentos e remédios, aquele tinha por objetivo o transporte de passageiros. Mas o campo que deveria ser preenchido com o nome das pessoas a bordo foi deixado em branco; o único que constava era o do piloto. Mais abaixo na página, em um espaço reservado a “observações”, o coronel Siqueira fez uma anotação: “Sobrevoo autorizado verbalmente pelo sr. oficial de enlace da FACh [Força Aérea Chilena], com autorização número 209/73, por motivos de urgência.” Por que o transporte daqueles passageiros era urgente não está explicado.

A ditadura tentou fazer com que a presença de agentes brasileiros no Estádio Nacional não deixasse nenhum rastro na forma de documentos. E quase conseguiu, não fosse o desavisado cônsul Dias Costa. Até hoje, foram encontrados apenas dois registros oficiais que comprovam que militares dos serviços de repressão da ditadura brasileira atuaram no campo de prisioneiros, ambos da lavra do diplomata que havia despertado a cólera de Gibson Barboza.

A primeira mensagem do cônsul foi enviada no mesmo dia em que os agentes brasileiros desembarcaram no Chile. Tem tom de surpresa. Dias Costa conta que seu vice fora ao estádio tratar com autoridades chilenas e se deparara com um grupo de “policiais” vindos do Brasil, acompanhados pelo sargento do Exército que trabalhava na embaixada como assistente pessoal do coronel Siqueira.

Comunico a vossência que o vice-cônsul Lélio Demoro acaba de regressar do Estádio Nacional […] e lá topou com aproximadamente cinco policiais brasileiros que se encontravam acompanhados do sargento Deoclécio Paulo, ordenança do adido militar e aeronáutico da embaixada do Brasil nesta capital, que já estavam [se] ocupando da situação dos brasileiros ali detidos.

Duas semanas depois, enquanto tentava justificar a Gibson Barboza a libertação dos três brasileiros, o cônsul novamente citou a presença do grupo no estádio. Pressionado pelo ministro a justificar suas ações, disparou: “Deixei de transmitir à Secretaria de Estado [as informações sobre a saída dos três] porque aqui chegou, no dia seguinte, um Avro da Força Aérea Brasileira trazendo autoridades que passaram incontinenti a lidar com os brasileiros detidos no Estádio Nacional.”

O sargento Deoclécio Paulo, ou Mestre Deo, citado na primeira mensagem, foi um dos pioneiros do jiu-jítsu no Brasil. Décadas mais tarde, continuaria a dar aulas numa academia em Brasília, como fez, ainda que de modo improvisado, nos dois anos que passou em Santiago sob as ordens do coronel Siqueira. Especialista em torções e estrangulamentos, ele é o único identificado nominalmente nos documentos sobre os agentes brasileiros que estiveram no Estádio Nacional. Quarenta anos depois, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, diria que jamais pisara no local porque “não gosta de futebol”. Sobre as duas medalhas penduradas em seu peito pela “bravura” demonstrada no Chile, explicaria que as condições de trabalho eram perigosas e ele tinha de ir de condução à embaixada.

Mas Paulo, um sargento, era provavelmente figura secundária entre os agentes brasileiros que passariam pela arena esportiva chilena. Mais de quarenta anos depois, um deles aceitou contar sua versão, sob a condição de que sua identidade fosse preservada. Dr. Pinto, seu codinome no mundo da repressão, era um capitão da Aeronáutica que se especializara no Partido Comunista Brasileiro. Vivia no Rio, mas viajava mensalmente a São Paulo levando uma pasta gorda com fichas de novos “terroristas” presos. Gabava-se de sempre encontrar abertas as portas do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de ambas as cidades, embora não pertencesse ao Exército, nem a nenhuma força policial.

Segundo o capitão, cerca de um mês após a queda de Allende, chegou-lhe a ordem para fazer as malas.[9] Havia uma “missão especial”. Dr. Pinto diz ter embarcado no Avro C-91 na Base Aérea do Galeão, com outros quatro oficiais de inteligência. O comandante da missão seria o coronel Sebastião José Ramos de Castro, da Agência Central do SNI, o mesmo que encontrara em Brasília, semanas antes do golpe chileno, o emissário do almirante José Toribio Merino. Castro, o segundo mais importante da junta militar que agora comandava o Chile. O Centro de Informações do Exército teria dois representantes – o major Victor de Castro Gomes e o tenente-coronel Paulo Barreira, um louro grandalhão que presos brasileiros identificaram erroneamente como o capitão de fragata Alfredo de Magalhães. Havia ainda um segundo capitão da Aeronáutica, da área de contrainformações. Os cinco oficiais teriam sido escolhidos para integrar a viagem em razão das informações que detinham sobre opositores no Chile. “Ninguém foi a passeio”, diz Dr. Pinto. O serviço de inteligência da Marinha, o Cenimar, teria ficado de fora da missão.

Antes de deixar o território nacional, o avião teria feito uma escala em São Paulo para pegar outro passageiro. O então capitão Ênio Pimentel da Silveira, o Dr. Ney, era o chefe de investigações do DOI-Codi de São Paulo, além de um dos mais prolíficos matadores que o regime nascido em 1964 teria. Ele foi a última adição ao grupo. Da capital paulista, o bimotor parou para reabastecer em Montevidéu e, perfurando nuvens baixas, venceu os Andes. Por fim, tocou a pista de Los Cerrillos, no final da manhã do dia 15 de outubro.

Dr. Pinto conta que, no dia em que chegaram a Santiago, os agentes – sem o coronel Castro e o capitão Silveira – foram levados ao Estádio Nacional. Vestiam terno e gravata e haviam recebido uma espécie de laissez-passer das autoridades chilenas. Ainda assim, teriam sido submetidos a uma demorada revista logo após cruzarem os portões. Temia-se que o MIR ou outro grupo armado ousasse lançar uma operação de resgate.

Brasileiros presos no estádio lembram que seu primeiro contato com os agentes recém-chegados do Rio foi no centro do campo de futebol, com os detidos ordenados em fileiras. Os visitantes traziam nas mãos álbuns de fotos e fichas criminais e passavam identificando um a um, em silêncio. Havia semanas que a lista dos presos chegara aos vários órgãos de inteligência da ditadura, parcialmente elaborada pelo Itamaraty. No centro do gramado, os brasileiros foram divididos em três grupos menores para serem interrogados nos dias seguintes.

Desde o primeiro momento, os presos perceberam que se tratavam de agentes brasileiros. Não era difícil. Os dossiês nas mãos dos visitantes estavam em português e era possível ouvi-los cochichar na língua pátria. A maneira de se vestir era diferente da moda chilena e alguns tinham um tipo físico que inexistia entre as forças de segurança do Chile. Mais de um tinha uma tez morena rara entre chilenos e um deles era negro.

Dr. Pinto afirma que o primeiro objetivo dos agentes foi identificar os brasileiros presos, já que vários estavam no Chile com nomes “frios” (falsos). A tarefa seria desempenhada facilmente. Segundo ele, na mesma sexta-feira em que chegaram, os oficiais brasileiros foram levados pelo major Mario Luis Lavanderos, responsável pelos estrangeiros detidos na arena, até uma caixa que guardava as fichas dos cidadãos não chilenos detidos, com nome e fotografia. Os agentes recém-chegados compararam as fichas chilenas com os documentos que tinham. Nomes que eles jamais haviam ouvido foram colocados de lado. Seriam ou irrelevantes ou de brasileiros na clandestinidade, com identidades forjadas.

Naquela primeira ida ao estádio e nos dias seguintes, o major Lavanderos recepcionou o grupo. Até que um dia sumiu. Ao perguntar sobre o chileno, um dos oficiais brasileiros teria escutado: “Lavanderos se fué.” Depois, os agentes brasileiros descobririam que ele havia sido assassinado no Casino de Oficiales de la Academia de Guerra, uma residência militar.

Segundo Dr. Pinto, os agentes brasileiros se hospedaram no Hotel Carrera, um prédio de janelas verticais compridas, voltadas para a rua, na calçada oposta ao palácio presidencial La Moneda, em ruínas após o bombardeio que sofrera em 11 de setembro. O local de hospedagem era uma escolha incauta para uma missão secreta: o Carrera era o hotel mais conhecido de Santiago e, naqueles dias, hospedava dezenas de repórteres estrangeiros, um grupo de funcionários da Anistia Internacional e mesmo parentes de brasileiros presos no estádio.

As jornadas em Santiago seguiam uma mesma rotina, disse Dr. Pinto. Começavam cedo com um motorista chileno no lobby do hotel para levá-los, de Fusca, ao campo de prisioneiros. E terminavam, à noite, com uma reunião de menos de uma hora no quarto do coronel Castro, na qual se discutiam as informações levantadas ao longo do dia. Em razão dos tiros que ainda espocavam pelas ruas da capital chilena, oficiais brasileiros foram aconselhados a guardar distância das janelas e a não sair do Carrera. Castro e Silveira mantiveram uma agenda separada e não iam ao estádio com os demais.

Sobre o que exatamente faziam os agentes enviados do Brasil durante o dia, o relato de Dr. Pinto diverge em pontos essenciais da memória de presos brasileiros e chilenos. Na versão do oficial, ele e seus colegas ficavam em uma sala no último andar do estádio. O espaço tinha mesas pequenas, cada uma com um interrogador e, ao lado, um soldado de cassetete na mão. Segundo os exilados Tomás Togni Tarquinio e Nelson Serathiuk, os agentes brasileiros geralmente ficavam atrás dos chilenos e passavam papeizinhos dobrados com perguntas específicas a serem feitas. Queriam sobretudo saber como funcionava a “Caixinha”, os fundos da comunidade de exilados brasileiros e de organizações como o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), cisão do PCB criada por Apolônio de Carvalho, que no Chile era um dos líderes da comunidade de exilados. A Aeronáutica distribuiu a outros órgãos de inteligência uma lista com nomes dos exilados que teriam recebido dinheiro comunitário em Santiago – segundo Dr. Pinto, a informação fora coletada por outro capitão da Aeronáutica, especialista em contrainformações, enviado ao Chile. Outro preso brasileiro, Nielsen de Paula Pires, afirma que as respostas eram colocadas em dois formulários separados, um em espanhol e outro em português.

O exilado Osni Geraldo Gomes conta que, enfurecido com um interrogado, um dos agentes brasileiros soltou do fundo da sala um palavrão em deslavado portunhol. Outro provocava os presos conterrâneos assoviando a melodia de Aquarela do Brasil, com um sorriso nos lábios. Gomes também afirma que os oficiais brasileiros, desde o início dos interrogatórios, tentavam impor um clima de terror. Por exemplo, o exilado Luiz Carlos Guimarães estava com um nome falso no estádio, Pedro Paulo de Souza. Após ser colocado em pé na sala para prestar depoimento, teria escutado do homem louro vestido como civil, em português: “Muito prazer, Luiz Carlos Guimarães.”

Dr. Pinto admitiu que os oficiais brasileiros testemunharam cenas de extrema violência. Os detalhes dos episódios, entretanto, ele se recusou a contar. Segundo o capitão da Força Aérea Brasileira (FAB), apenas os soldados chilenos cometeram as agressões. Agentes da repressão brasileira teriam um papel subsidiário, de prover informações aos anfitriões, sem torturar concidadãos ou outros detidos no estádio.

Exilados brasileiros, e mesmo presos chilenos, contam uma história diferente. Gomes afirma que alguns brasileiros foram levados a uma segunda sala, menor, perto da área do estádio reservada à imprensa. Nela, diz ter visto uma macabra coleção de instrumentos: soldadores incandescentes, uma prancha de madeira inclinada com uma “maricota” – ou “maquineta”, o aparelho à manivela que dava choques – e um pau de arara. Uma réplica das salas de tortura que funcionavam no Brasil. Gomes afirmou ter sido lançado porta adentro pelos chilenos e, do outro lado, recebido por brasileiros que não se incomodavam de falar português. Oficiais chilenos teriam entrado na sala enquanto ele era preparado para ser içado no pau de arara.

Em um depoimento ao Senado brasileiro, em 2014, Gomes também narrou como foi submetido, nu, a sessões de eletrochoques que só eram interrompidas brevemente, quando os torturadores tocavam seu pescoço para verificar se ainda havia batimentos. Ele afirmou que a tortura começou de manhã e, ao sair da sala, sangrando e quase desacordado, o sol havia se posto. Outros sobreviventes brasileiros narram casos de violação sexual por agentes brasileiros enviados ao Chile.

Também presos chilenos afirmaram ter sido torturados sob a supervisão direta de instrutores brasileiros. Segundo o cartunista Juan Sepúlveda, oficiais brasileiros assistiram à sua sessão de tortura e se impressionaram com a brutalidade dos chilenos. As descargas de eletrochoques ficariam para sempre gravadas em sua memória: “Eu sentia que meus órgãos iam sair do meu corpo.” Eram tantos os presos chilenos e tão poucas as informações que os militares tinham sobre eles que várias vezes os interrogadores não sabiam o que perguntar durante as horas de dor e martírio. Mesmo assim, prosseguiam com a tortura.

 

O rastro dos oficiais brasileiros no Estádio Nacional também ficou em documentos da diplomacia norte-americana. O embaixador norte-americano em Santiago registrou conversas sobre a presença de agentes do Brasil, embora tenha minimizado as histórias de tortura. As fontes do embaixador Nathaniel Davis eram funcionários norte-americanos e canadenses da ONU que trabalhavam com refugiados, além de missionários dos Estados Unidos. Eles relataram a diplomatas dos Estados Unidos que brasileiros libertados do Estádio Nacional andavam dizendo ter sido interrogados por “indivíduos que falavam fluentemente português e que eles acreditavam ser policiais brasileiros ou agentes da inteligência brasileira”. Os religiosos ouviram casos de tortura durante os interrogatórios dos brasileiros, mas Davis duvidou. Os funcionários das Nações Unidas, reforçou o embaixador, desconheciam essas acusações.

Grande parte dos presos brasileiros no estádio havia conhecido a tortura antes de chegar ao Chile. Eles contam que, ao serem presos pelos chilenos, muitos foram recebidos com espancamentos e simulações de execução, passaram horas algemados em posições incômodas e foram vítimas de outras formas de violência, mas não da tortura no sentido estrito do termo: o uso instrumental da dor, em seu limite máximo, para extrair uma informação específica que o interrogador quer obter. “Tortura é técnica e, no começo, os chilenos só sabiam dar porrada a esmo e humilhar”, disse Nilton Bahlis dos Santos, gaúcho preso no Estádio Nacional.

Os relatos de que os chilenos ainda não sabiam “extrair informações” divertiam o coronel Adyr Fiúza de Castro, chefe do DOI-Codi do Rio, para onde Solange Bastos foi levada semanas após retornar do Chile. Fiúza de Castro, que chamava as mulheres em seu calabouço de “as minhas meninas”, convocara a moça que estivera presa no Estádio Nacional para ouvir suas histórias do Chile, e ria das “trapalhadas” dos iniciantes. O tempo de amadorismo duraria pouco. Rapidamente, a repressão chilena desenvolveria sua expertise no assunto.

Como e quando Brasília e Santiago acertaram o envio de agentes brasileiros ao Estádio Nacional é incerto. No entanto, algumas pistas ajudam a compor o quadro no qual teve início a cooperação entre os dois porões. Um dia após o golpe, Câmara Canto recebeu instruções de Brasília para oferecer à recém-nascida junta militar chilena “toda assistência que for possível e que venha a ser solicitada”. Ambos os regimes temiam uma reação da esquerda chilena. A segurança interna, incluindo o apoio para dizimar focos de oposição à junta chilena, era tema prioritário entre os dois países.

O empresário e ex-militar chileno Roberto Kelly Vásquez – emissário do almirante Merino que fora ao Brasil, semanas antes, atrás de garantias de que o Peru não atacaria o Chile em caso de golpe – contaria que, no dia 13 de setembro, recebeu um telefonema especial. Kelly relatou ter escutado do outro lado da linha: “Aqui fala o Dr. Shulz, estivemos juntos em Brasília há algum tempo e preciso encontrá-lo urgentemente.” Era o coronel Ramos de Castro, que o conhecera em Brasília e que, dois dias após o golpe, estava em Santiago. Segundo Kelly, Ramos de Castro o convidou para uma conversa no lobby do Hotel Carrera um mês antes de a missão brasileira ir ao Estádio Nacional, e cujos agentes se hospedariam no mesmo local.

O coronel teria afirmado que estava em Santiago para resgatar espiões brasileiros “infiltrados em movimentos revolucionários”. Os dois ainda discutiram um pacote de ajuda financeira do governo Médici ao Chile – Kelly passaria logo depois a integrar a equipe econômica do novo governo. No dia seguinte, o empresário disse ter buscado o coronel na embaixada brasileira e o levado até o almirante Merino, agora um dos quatro integrantes da junta militar. E não soube mais do caso.

Documentos norte-americanos corroboram grande parte da história. A diplomacia de Washington registrou a presença do “número 2 da inteligência brasileira” em Santiago naqueles dias, relatada em um telegrama secreto da embaixada no Chile. Segundo Nathaniel Davis, a visita do agente do SNI estava abrindo caminho para o primeiro pacote de ajuda financeira do governo Médici à ditadura chilena.

Davis incentivou naqueles dias o nascimento da parceria chileno-brasileira na luta contra o inimigo interno. Duas semanas depois do encontro no Hotel Carrera, o embaixador norte-americano e o general do ar Walter Heitmann (a Força Aérea chilena tem essa patente), indicado dias antes por Augusto Pinochet para chefiar a embaixada do Chile em Washington, tiveram uma conversa reveladora sobre o assunto enquanto almoçavam. Heitmann, um sujeito forte, com mais de 1,90 metro, mãos enormes e estilo refinado, levantou o tema do apoio do governo Nixon à luta contra o “terrorismo urbano” no Chile. A junta acreditava que travaria a guerra contra a subversão “em um futuro não muito distante”, explicou o general Heitmann. Davis entendeu o pedido velado de ajuda e reagiu com cautela. “Seria mais fácil para o governo norte-americano considerar as necessidades de equipamento técnico, como rádios, do que fornecer pessoal para assessorar e treinar [as forças de repressão chilenas]”, retrucou. Em seguida completou: existia “uma considerável experiência nessa área entre alguns dos amigos latino-americanos do Chile” e a junta deveria buscar ajuda desses países.

Heitmann disse que entendia a posição norte-americana e informou que o Chile buscaria a assessoria do Brasil e do Uruguai. Na verdade, afirmou o general, já houvera “contatos preliminares nesse sentido” com os dois países do Cone Sul. “Espero que o governo chileno explore essas possibilidades”, disse Davis.

Essa mesma luta contra o “terrorismo urbano” no Chile, conforme o eufemismo usado pelos embaixadores, custaria a vida de três cidadãos norte-americanos. Os jornalistas Frank Teruggi e Charles Horman foram levados ao Estádio Nacional e assassinados – o caso do segundo foi retratado no filme Desaparecido – Um Grande Mistério, do diretor Costa-Gavras. O matemático Boris Weisfeiler desapareceu no Sul do Chile, perto de Colonia Dignidad, um vilarejo de imigrantes alemães “com tendências neonazistas”, segundo o Departamento de Estado norte-americano, e que se tornaria um centro de tortura do regime Pinochet.

No início de outubro, o jornal Washington Post – o mesmo que revelara as suspeitas de que a CIA e a companhia norte-americana ITT (International Telephone and Telegraph Co.) haviam conspirado contra Allende – publicou o primeiro editorial com denúncias de graves violações dos direitos humanos no Chile pós-golpe. Em uma das passagens do texto, alertou: “Há relatos inquietantes de que a polícia do Brasil chegou ao Chile para ‘recuperar’ alguns refugiados brasileiros.” A publicação foi posterior à primeira visita do coronel Ramos de Castro, comentada por diplomatas norte-americanos em comunicações secretas. O editorial foi publicado exatos dez dias antes de o Avro com os agentes brasileiros pousar no Aeroporto Los Cerrillos.

A onda de prisões ilegais em massa, no imediato pós-golpe, foi uma tática eficiente da jovem ditadura em Santiago para desarticular qualquer resistência ao golpe. No entanto, politicamente, o resultado teve um custo que Pinochet e os demais comandantes militares não anteciparam. Com as atenções da imprensa internacional e de governos ocidentais voltadas à mudança de regime no Chile, o Estádio Nacional rapidamente se converteu no símbolo máximo da tirania, da violência e do arbítrio impostos sobre a mais longeva democracia da região. Antes mesmo de completar um mês, o regime chileno já ganhara a sua Bastilha, a qual figurava em destaque nos jornais do mundo todo – à exceção do Brasil, onde a censura barrava quase todas as notícias sobre a repressão no Chile.

Segundo Dr. Pinto, a missão dos agentes brasileiros no Estádio Nacional foi suspensa porque começou a chamar demais a atenção. Os presos brasileiros afirmam ter alertado o Comitê Internacional da Cruz Vermelha sobre a presença da missão vinda do Brasil e, conforme mostram documentos secretos norte-americanos, outras autoridades humanitárias rapidamente souberam dos novos visitantes. De acordo com a Permissão de Sobrevoo entregue pelo coronel Siqueira, o avião da FAB que levara os agentes a Santiago voltou para casa no dia 21 de outubro. A missão brasileira ao Estádio Nacional teria durado uma semana.

Mas, nos meses seguintes, a história dos enviados da ditadura do Brasil ao infame centro esportivo chileno continuaria a ganhar força mundo afora. Na Europa, a Anistia Internacional publicou um relatório com informações precisas sobre a cooperação da ditadura brasileira na repressão chilena. O documento foi organizado após uma visita de três pesquisadores da ONG europeia ao Chile e citava fontes das próprias forças de segurança chilenas. “Os encarregados de lidar com os prisioneiros do Estádio Nacional admitiram que policiais brasileiros estiveram presentes aos interrogatórios e que os policiais estavam lá para ensinar aos chilenos os métodos brasileiros”, concluiu a Anistia. Os investigadores também escutaram dos militares “referências específicas a um curso de quatro dias ministrado por policiais brasileiros no Ministério da Defesa”.

Em entrevista à imprensa italiana, a viúva de Allende, Mercedes Hortensia Bussi Soto de Allende, denunciou a participação de “elementos brasileiros” tanto no golpe quanto no apoio à tortura no Chile. Carlos Altamirano, ex-secretário-geral do Partido Socialista chileno, afirmou que “centenas” de presos no Estádio Nacional haviam sido interrogados por brasileiros “levados pela CIA”.[10]

Nos Estados Unidos, o caso dos “assessores” brasileiros no Chile bateu às portas do Congresso em agosto de 1974. Uma comissão de representantes da sociedade civil de Chicago – incluindo acadêmicos, autoridades religiosas e o pai de Teruggi, um dos norte-americanos assassinados após o golpe – visitara Santiago para investigar violações. O dossiê entregue aos congressistas de Washington continha informações sobre abusos contra brasileiros, incluindo a tentativa de execução de Luiz Carlos Almeida Vieira – que, ao despencar baleado no Rio Mapocho, conseguira nadar e ganhar asilo diplomático da Suécia. Em outro trecho do relatório, consta um registro dos agentes brasileiros no Estádio Nacional: “Há uma convicção generalizada de que oficiais do Brasil, treinados no uso de métodos de tortura, foram trazidos [ao Chile] imediatamente após a tomada de poder pelos militares para interrogar prisioneiros brasileiros, além de chilenos.” A missão também reportou relatos “não confirmados” de que a ditadura brasileira também levara ao Chile aparelhos de tortura, incluindo máquinas de eletrochoque.

 

Ciente do desastre de relações públicas, a junta chilena correu para esvaziar o Estádio Nacional e reconvertê-lo de campo de detenção em praça de futebol. Havia, no calendário, uma oportunidade para encerrar o caso com uma boa desculpa: dia 21 de novembro, a arena deveria sediar o segundo duelo entre Chile e União Soviética pelas eliminatórias da Copa do Mundo, marcado antes do golpe. A junta militar queria fazer da partida uma prova de que o país havia recobrado a normalidade.

O primeiro jogo, em Moscou, terminara 0 a 0. Quem ganhasse a segunda partida se classificaria. Passado o 11 de setembro, as autoridades russas avisaram que boicotariam a disputa caso ela não fosse transferida para um campo “neutro”. Os chilenos recusaram. Acreditavam que os soviéticos estavam blefando.

A 24 de outubro, uma comissão especial da Fifa, a Federação Internacional de Futebol, foi ao Estádio Nacional analisar se o local tinha condições de abrigar a partida. Integrava a equipe o brasileiro Abílio de Almeida, vice-presidente do setor de arbitragem da federação. A maior parte dos cerca de 7 mil presos foi trancada nos vestiários. Alguns, entre frestas, viram os dignitários do futebol internacional percorrerem o gramado, envoltos num enxame de jornalistas ávidos pelo veredicto. Depois de uma reunião com o ministro da Defesa, Patricio Carvajal, a Fifa anunciou que a situação do estádio era de “tranquilidade total”. “Não se preocupem com a campanha internacional contra o Chile. No Brasil, aconteceu o mesmo. Logo passará”, completou o visitante brasileiro à imprensa.

A história dava voltas estranhas. Onze anos antes, o mesmo Almeida, naquele mesmo Estádio Nacional, participara da jogada extracampo que garantiu a presença de Garrincha na final da Copa do Chile, apesar do cartão vermelho que o artilheiro levara na partida anterior. Pelé, machucado, já estava fora. A Seleção dependia das pernas arqueadas do camisa 7, e Almeida deu um jeito – jamais totalmente revelado – de convencer as autoridades do futebol mundial a desconsiderarem o cartão.

Como o Brasil de Médici no triunfo na Copa de 1970, o Chile queria fazer do futebol uma questão de Estado e orgulho nacional, capaz de abafar os gritos que vazavam dos porões (a Argentina faria o mesmo ao sediar a Copa de 1978). A importância simbólica do jogo contra a União Soviética era tamanha que a junta chilena buscou o clube Internacional, de Porto Alegre, para ter certeza de que o zagueiro chileno Elías Figueroa – uma das estrelas do futebol do Chile – seria liberado e entraria em campo no dia 21. Primeiro, a chancelaria ordenou ao encarregado de negócios em Brasília, Rolando Stein, que se envolvesse pessoalmente no caso. “Com o objetivo de melhorar as possibilidades da equipe nacional, é imprescindível contar com o jogador chileno Elías Figueroa”, escreveu o chanceler Ismael Huerta. Stein falou com o presidente do Inter, Carlos Stechman, que teria prometido ajudar. Os militares chilenos insistiram e despacharam ao Brasil o almirante da reserva Carlos Chubretovic Álvarez, vice-presidente da Associação Central de Futebol, que conseguiu liberar Figueroa.[11]

Sob o risco de a União Soviética cumprir a promessa de boicote, o Chile chamou o Santos para fazer o papel de time-estepe. O show deveria continuar a qualquer custo.

O regime de Leonid Brejnev cumpriu sua palavra, abrindo mão da Copa na Alemanha em nome da solidariedade com Allende. No dia da partida, a seleção do Chile primeiro entrou em campo sem adversário e, após uma troca de passes desanimada entre os atacantes, bicaram a bola para o fundo da rede. O placar marcou Chile 1 e União Soviética 0, e o juiz apitou final de jogo. O país de Pinochet estava classificado.

A cena seria lembrada como “o gol mais triste da história do Chile”. Lepo, o ex-jogador que havia sido preso no Estádio Nacional, assistia em silêncio da arquibancada.

Finda a encenação, o Santos (sem Pelé) entrou em campo e goleou por 5 a 0 a seleção chilena.

 

No início de novembro, os últimos presos brasileiros foram levados a abrigos do governo suíço e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em Santiago. Alguns já haviam recebido propostas de asilo; outros passariam por sabatinas com autoridades estrangeiras que os escolheriam de acordo com critérios de instrução e utilidade profissional.

Em poucos meses, os exilados brasileiros, incluindo os detidos no estádio, estariam espalhados, sobretudo, por países europeus. “Foi um salve-se quem puder e embarque para onde possa”, resumiu o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho. A esquerda brasileira vivia o exílio dentro do exílio.


Trecho do livro O Brasil Contra a Democracia: A Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul, a ser lançado neste mês pela Companhia das Letras.

 

[1]  O número de brasileiros que passaram pelo Estádio Nacional em Santiago é maior do que 52, pois nem todos permaneceram na arena. Uns, como José Serra, foram simplesmente soltos. Outros, como Luiz Carlos de Almeida, levados para fora e assassinados.

[2] O estádio chegou a abrigar mais de 7 mil pessoas ao mesmo tempo, segundo um levantamento feito no final de fevereiro de 1974 pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, e a estimativa é de que, ao longo dos meses, cerca de 30 mil presos tenham passado pelo local. O número exato é impossível precisar.

[3] Luis Alberto Corvalán Castillo (1947-75) foi depois levado ao campo de prisioneiros de Chacabuco, mas conseguiu sobreviver. Ele relatou sua história no livro Viví para contarlo (Tierra Mía, 2007).

[4] Um deles, o socialista Juan Muñoz Alarcón – el encapuchado del Estadio Nacional –, foi posteriormente identificado. Alarcón acabou assassinado em 1977.

[5] Ainda de acordo com a CIA, o grupo de brasileiros seria o terceiro mais numeroso entre os estrangeiros no Estádio Nacional, atrás de uruguaios (75 pessoas) e bolivianos (124 pessoas). Onze norte-americanos também teriam passado pelas instalações.

[6] Maria das Dores Romaniolo também havia sido acusada de “roubar psicotrópicos” quando trabalhava como enfermeira no Exército. Os outros proibidos de voltar eram Maurício Dias David e João Ernesto Maraschin.

[7] Azevedo diz ter sido procurado pelo cônsul dentro do estádio e o diplomata lhe teria passado um bilhete, seguido de uma piscadela. O papelzinho amassado tinha a letra do pai de Azevedo, dizendo que ele deveria pedir para ir com o cônsul. O pai nunca revelou a quantia supostamente paga ao cônsul. Tampouco foi esclarecido por que Solange Bastos foi incluída no grupo. Ela jamais soube de qualquer propina ao diplomata brasileiro.

[8] Segundo a certidão de óbito de Mattos, a causa da morte foi peritonite aguda. A primeira comissão de investigação dos crimes da ditadura chilena concluiu que o brasileiro morreu “por se haver negado auxílio médico […] por parte de agentes do Estado, constituindo uma grave violação a seu direito à integridade física e à vida”.

[9] Dr. Pinto deu entrevista ao autor em 29 de maio e em 11 de junho de 2015.

[10] Altamirano fez graça da suposta submissão da junta chilena à ditadura brasileira: “Um general brasileiro e um almirante chileno conversam. O chileno pergunta: ‘Estão contentes com o modo como demos o golpe?’ O brasileiro responde: ‘Está muito bom, mas devem seguir aprendendo. Vocês ainda são carniceiros. Nós, brasileiros, somos cirurgiões.’”

[11]  O presidente do Internacional elogiou o fato de o pedido ter partido do encarregado de negócios do Chile, e não ter sido feito por meio das autoridades futebolísticas brasileiras. Stein recomendou que a diplomacia chilena mantivesse esse canal de diálogo e não envolvesse a cartolagem.