PC Araújo usava os longos percursos de ônibus entre a escola e a casa para ler "Os Pensadores": "Eu fui formado pela indústria cultural, e o transporte coletivo foi a minha grande faculdade" FOTO: LUIZ GARRIDO_2012
O brega no espelho
Censurado pelo ídolo Roberto Carlos, interlocutor de João Gilberto, o ex-engraxate Paulo Cesar de Araújo reivindica um lugar para a canção cafona na reflexão sobre a música brasileira
Rafael Cariello | Edição 66, Março 2012
“Deixa eu sonhar um pouco”, pediu Agnaldo Timóteo, enquanto fechava os olhos, absorvido pela música. O tecladista aproveitou a deixa e esticou a sequência de notas e acordes que servia de introdução ao bolero mexicano. O intérprete respirou fundo, ergueu o corpo e se lançou, afinal, aos versos de Pecadora:
“Divina claridad la de tus ojos / diáfanos como gotas de cristal…”
A voz grave e potente tomou o pequeno estúdio montado nos fundos da casa, no bairro do Cambuci, em São Paulo.
Naquela sexta-feira nublada de janeiro, vestindo camisa e calças brancas, sapatos azuis e um crucifixo dourado à mostra sobre o peito, Timóteo escolhia o repertório do disco de sucessos latino-americanos que pretende lançar em breve. A seu pedido, o produtor selecionava folhas com as letras das canções, dispostas numa pilha ao lado do órgão eletrônico, e as repassava ao intérprete.
Timóteo já foi um dos maiores vendedores de long-plays e compactos do país. Nas listas dos cinquenta discos mais vendidos a cada ano, seu nome aparece treze vezes entre 1965 e 1985, período áureo da MPB. O de Chico Buarque, doze vezes; o de Caetano Veloso, seis. “Eu sou um monstro de cantor. Modéstia à parte uma ova. São poucos no mundo que se comparam a mim.”
O cantor tem 75 anos. Já foi engraxate e feirante. Começou a se apresentar com números musicais, em circos do interior, ainda na adolescência. O sucesso artístico catapultou a carreira política. Conquistou seu primeiro mandato como deputado federal pelo PDT de Leonel Brizola, em 1982. Rompeu com o então governador do Rio e votou em Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, em 1985. Foi vereador pelo Rio, na década de 90, e ocupa, pela segunda vez, uma vaga na Câmara dos Vereadores da capital paulista. Compara sua trajetória a um blockbuster cinematográfico. “Zezé di Camargo não dá nem para a saída”, sentencia, ao falar sobre o personagem de 2 Filhos de Francisco. “A minha vida dá de dez a zero. A minha história é fascinante.”
Mas a grandiosidade que Timóteo enxerga em si nem sempre foi reconhecida, ele admite. Não, pelo menos, como desejaria. “Nós sempre fomos muito discriminados”, disse, numa referência a cantores de sua geração, como Odair José, Nelson Ned, Waldick Soriano e Wando. “Nós somos os cafonas.”
A música cafona, como ele mesmo a chama, é um assunto caro ao jornalista e historiador Paulo Cesar de Araújo. Durante a infância e a adolescência, ele não tinha tevê em casa. Ouvia rádio e, como milhões de brasileiros, cresceu ao som da geração de cantores bregas dos anos 70. Ao chegar à faculdade, surpreendeu-se que tais intérpretes e compositores – responsáveis por inúmeros sucessos de audiência e pela consolidação da indústria fonográfica no país – estivessem ausentes dos principais compêndios sobre a história da música popular brasileira.
Essa omissão é um dos grandes temas de seu primeiro livro, Eu Não Sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar, lançado pela editora Record no início da década passada. “A música de Waldick Soriano ou de Nelson Ned não costuma ser objeto de análise ou debate, a não ser excepcionalmente, em conversa de botequim”, escreveu. “A tendência é ainda considerá-la sob conotação anedótica, como se a produção musical dessa geração de cantores e compositores não tivesse nada a ver com a nossa realidade social.”
PC Araújo, como é chamado, completa 50 anos neste mês. Sua pele clara contrasta com as sobrancelhas e os cabelos pretos. É alto – mede 1,83 metro –, anda com a cabeça e o peito levemente curvados. Fala baixo e de maneira pausada, mas com prazer. Mesmo na conversa mais trivial, parece em alguns momentos estar diante de um púlpito ou de um microfone. Controla as ênfases da frase; separa as sílabas ou repete as palavras quando considera que é necessário marcar a importância de uma ideia ou de uma expressão. Foi o orador de formatura da sua turma de jornalismo, na PUC do Rio de Janeiro.
Ao se referir à própria família, lança mão de um conceito acadêmico. “Nós fazíamos parte daquele grupo que o sociólogo Jessé de Souza chama de ‘a ralé brasileira’.” O termo serve de título a um livro publicado em 2009 pelo professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, pesquisador da desigualdade no país. A “ralé” compreende famílias pobres ou miseráveis, desprovidas de educação e de capital cultural, desestruturadas, não raro com a figura paterna ausente.
O pai de Araújo é, ainda hoje, lavrador em Vitória da Conquista, cidade do sudoeste baiano, quase fronteira com Minas, a cerca de 500 quilômetros de Salvador. Durante a infância de PC, o pai parava pouco em casa; sumia, reaparecia, sumia de novo. O jornalista Lula Branco Martins, amigo desde os tempos da faculdade, conheceu seu Raimundo. Descreve-o como um “matuto de chapéu”, um sujeito “com a pele queimada e marcada pela seca”. Além de trabalhar na roça alheia, caçava. “Ele comia carne de tatu”, diz Martins, “preparada com farinha e óleo.”
A mãe de Araújo trabalhava como faxineira. Dona Alzerina pertence à Igreja Batista, e durante muito tempo a Bíblia foi o único livro em sua casa. O filho se alfabetizou decifrando os versículos da Epístola a Tito, escrita pelo santo que lhe emprestou o primeiro nome. Lembra-se da mãe e das tias felizes e orgulhosas, em volta da mesa, enquanto ele recitava em voz alta o trecho inicial da carta: “Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo.”
Quando seu Raimundo foi embora de vez, Araújo havia completado 8 anos – seu irmão mais novo, Paulo Sérgio, tinha 4. Começou então a trabalhar como engraxate. “Sabe aquela imagem clássica do menino com o caixote na praça?”, perguntou o pesquisador, de maneira retórica, no início de janeiro. Ele também trabalhou, ainda na infância, como vendedor de picolé, ajudante de pedreiro, feirante, atendente de relojoaria e de padaria.
Há mais de vinte anos, PC se esforça para entender e explicar por que os intérpretes bregas, apesar de seu sucesso, foram excluídos da narrativa hegemônica sobre a canção popular no país. Poucos especialistas, críticos ou simples ouvintes discordariam sobre seus gêneros principais ou sobre a sequência simplificada de sua “linha evolutiva”, no último século: samba, bossa nova, tropicália, MPB, rock e, mais recentemente, funk e rap compõem essa história e são objetos de inesgotáveis análises e debates.
Em Eu Não Sou Cachorro, Não, o argumento de Araújo não é apenas que a música brega ocupa um lugar secundário nessa narrativa, mas sim que o gênero, sob muitos aspectos, se tornou invisível. Foi excluído e é como se não tivesse acontecido – isso, repete, apesar de nenhum outro estilo ter existido tanto, para a maior parte da população brasileira, em seus afetos e em suas memórias de vida.
O pesquisador elenca duas dezenas de obras de referência sobre a história da música brasileira em que não há qualquer registro dos cantores cafonas dos anos 70. Nos livros didáticos de história por ele consultados – todos os que encontrou onde havia menção à canção popular da época –, tampouco aparecem tais intérpretes. A exclusão se estende a outras gerações de cantores e compositores. Altemar Dutra, Anísio Silva, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Nora Ney, Marlene, Emilinha Borba figuram apenas marginalmente, se tanto, na narrativa canônica da MPB.
Araújo imputa a construção dessa história “autoritária e excludente” ao que chama de enquadradores: críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos. É preciso, ele diz, revelar a que grupo social eles pertencem e “de que critérios se valem para determinar quais canções ou compositores devem ser esquecidos ou preservados na memória nacional”.
Quanto ao grupo social, não há muito segredo. Os críticos, segundo o pesquisador, constituem um “público de classe média e nível universitário”. Os intérpretes desprezados, por outro lado, com frequência contavam histórias de vida semelhantes à de Agnaldo Timóteo e à do próprio Araújo, com infância pobre, se não miserável. Waldick Soriano foi engraxate. Wando trabalhou como feirante.
Os critérios dos “enquadradores” são um pouco menos óbvios. Apelo comercial, música simplificada e forte carga sentimental são características geralmente associadas às canções cafonas. Araújo argumenta que marchinhas carnavalescas, sambas consagrados e sucessos da MPB também reúnem esses predicados.
Para o pesquisador, o corte entre o que é cafona e o que não é independe da qualidade de letra e música, que pode ser maior ou menor. A distinção é determinada pela inadequação dessas canções aos parâmetros críticos que orientaram, no século XX, boa parte das análises culturais e sociológicas feitas no país: “modernidade”, de um lado, “tradição”, de outro. “Desde pelo menos 1922”, escreve Araújo, “a tensão entre ‘tradicional’ e ‘moderno’ ocupa o centro do debate político-cultural no país, refletindo o dilema de uma elite em busca de sua identidade nacional.”
No caso particular da música, é segundo a identificação de quantidades maiores ou menores de modernidade e de tradição, de sua mistura ou oposição, que cada canção será avaliada, ele diz, e a história da música popular no século XX, construída. Sambas, choros, composições tropicalistas e rocks são facilmente classificáveis segundo esses critérios. Boleros, música sertaneja romântica e pagodes, não.
O pesquisador argumenta que esses parâmetros ainda educam o gosto da classe média. Ao visitar as casas de colegas e professores da faculdade, um mesmo padrão lhe saltava aos olhos das estantes de discos, onde quase invariavelmente figuravam Cartola e Nelson Cavaquinho – representantes da tradição –, Chico, Caetano e Gil – artistas modernos que deliberadamente incorporam elementos tradicionais em suas canções.
Ao informar o debate sobre a música, as duas vertentes encontrariam defensores radicais. Em seu livro, Araújo opõe dois autores que são referências na constituição dessa história. José Ramos Tinhorão é o mais emblemático defensor da tradição. Em seu livro Música Popular: Um Tema em Debate, publicado em 1966, o crítico faz a apologia de uma canção brasileira autêntica, pura, original, contra a “pasta sonora mole e informe” da bossa nova.
O poeta e ensaísta Augusto de Campos, organizador do Balanço da Bossa, de 1968, seria o partidário mais contundente da modernidade. Em seu livro, o concretista combate a “Tradicional Família Musical” e propõe radicalizar a experiência da bossa nova, abrindo a canção brasileira a uma constante atualização.
Não à toa o fulcro dessas narrativas, que em grande medida as orienta, está na bossa nova, tida pela maioria dos críticos desde seu surgimento como a síntese perfeita dos termos que se opõem e constituem a música brasileira. O lado de fora dessa história – ou melhor, sua área de serviço – é o brega. Aí estão reunidos todos os estilos e compositores que não são classificáveis segundo os critérios de modernidade e de tradição.
A análise de Paulo Cesar de Araújo poderia ser estendida ao público que ouvia e admirava cantores como Agnaldo Timóteo e Odair José nos anos 70. Faxineiras, empregadas domésticas, porteiros ou comerciários eram na maioria migrantes ou filhos de migrantes, àquela altura. Na cidade, desempenhavam serviços baratos e desprestigiados.
Não eram burgueses nem propriamente trabalhadores modernos. Nem de longe poderiam ser identificados com a “vanguarda do proletariado” – que meios de produção tomariam para si? Tampouco eram “camponeses” ou trabalhadores rurais, ainda que num passado próximo pudessem ter sido. Não faziam parte da “modernidade”, mas já haviam abandonado a “tradição”. Ocupavam um lugar marginal na história do país. E, no entanto, eram eles o Brasil.
O grupo de artistas admirado por esse público tem se tornado um pouco mais visível – e memorável – desde a publicação de Eu Não Sou Cachorro, Não, em 2002. A vida de Waldick Soriano foi levada às telas de cinema em 2008 pela atriz Patrícia Pillar, diretora do documentário que recebe o nome do cantor. Um disco em tributo a Odair José foi gravado em 2006, com versões de bandas modernas para seus sucessos do passado. O intérprete atribui à pesquisa de Araújo o fato de “o público jovem e a imprensa” terem voltado a procurá-lo. “Mas a importância maior do livro do Paulo Cesar”, argumenta Odair José, “foi o toque que ele me deu. Passei a ter mais respeito e mais afeto pela minha própria obra.” Avaliação semelhante é feita por Agnaldo Timóteo. “O livro do Paulo Cesar mostrou para os especialistas, para os responsáveis por difundir informações, que nós merecíamos respeito.”
Na manhã do dia 12 de janeiro de 2012, uma quinta-feira, dias depois de nosso primeiro encontro, Paulo Cesar de Araújo embarcaria na Rodoviária Novo Rio para um percurso de vinte horas de estrada até sua cidade natal.
O pesquisador se acomodou numa das últimas poltronas do ônibus com destino a Salvador e parada em Vitória da Conquista. O veículo sacolejava na serra. Ao seu lado, um turista austríaco tirava fotos da Rio–Bahia. Um senhor de camisa regata branca caminhou pelo corredor e se aproximou de uma brasileira. Com um sotaque entre o francês e o britânico, perguntou: “Would you care for some water?” Explicou num espanhol complicado que era de Marselha, no sul da França.
Três horas mais tarde, a primeira parada, já em Minas. Araújo ignorou as bandejas do precário self-service de beira de estrada e pediu um queijo quente no balcão. “Faço essa viagem há anos e nunca vi tanto estrangeiro no ônibus”, comentou. Argumentei que a passagem de avião devia estar cara. “Mas a classe C não estava lotando os aeroportos? Que inversão é essa?”, ele perguntou.
A viagem seguiu ao som do conjunto Raça Negra. Mais tarde um DVD da dupla Bruno & Marrone embalaria os passageiros, com direito ao sucesso Dormi na Praça. Na chegada à sua cidade, Araújo tomou um táxi. Parado num sinal de trânsito, ouviu no carro ao lado o hit Ai Se Eu Te Pego, de Michel Teló.
Vitória da Conquista, terceiro maior município da Bahia, tem hoje 310 mil habitantes, e boa parte de seu centro segue o padrão de inúmeras cidades de tamanho médio no país. Quem anda pelas ruas, ao mesmo tempo malcuidadas, movimentadas e com comércio varejista aquecido, tem dificuldade de distingui-las de vias parecidas em Juiz de Fora ou Petrópolis.
Uma espécie de centro velho, contudo, mantém-se mais ou menos preservado. A praça onde Araújo trabalhou como engraxate ainda está lá, arborizada e limpa. Em sua parte mais alta fica a Igreja Matriz, de torre única e janelas que fazem vaga referência ao estilo gótico. Por uma rua lateral chega-se à construção onde um dia funcionou o Cine Riviera. Hoje, no espaço que o cinema ocupava, há um hotel modesto e um estacionamento coberto. Sobre a capota dos carros ainda se distingue a estrutura de cimento, como um balcão que se destaca da parede, onde ficava o projetor. “Era mágico ver aquele facho de luz passando por aqui”, descreveu Araújo, enquanto movia os braços no espaço vazio.
Menos de 100 metros abaixo está a Primeira Igreja Batista, construída nos anos 50. Sua torre rivaliza em altura com a do templo católico. Numa rua próxima, o pesquisador fez outro gesto largo. “Essa aqui sempre foi a minha área.” Engraxou sapatos e vendeu picolé nas redondezas.
Trabalhava de manhã e estudava à tarde. Nos fins de semana e feriados, dava um jeito de entrar no cinema, muitas vezes sem pagar. Além do Riviera, que projetava as fitas mais populares – “histórias do Tarzan, bangue-bangue, os filmes da garotada” –, havia o Madrigal, mais elitizado. Sua antiga sala de projeção, com plateia de 720 cadeiras, foi recentemente comprada pela Igreja Mundial do Poder de Deus. “A melhor coisa que pode acontecer a um cinema, se vai fechar, é virar igreja”, defendeu Araújo, para alegria do pastor Rinaldo Vaz, que o recebia num sábado à tarde para a visita ao templo da infância. “É melhor do que virar banco ou Casas Bahia. Pelo menos sua estrutura é preservada. E, melhor ainda, resta a esperança de que um dia possa voltar a ser cinema.” O pastor sorriu, constrangido.
Foi no Cine Madrigal que o pesquisador, aos 10 anos, assistiu a Ben-Hur pela primeira vez. PC guarda, ainda hoje, o caderno em que anotou os nomes de todos os filmes que viu nessa época. O épico bíblico tem lugar especial na lista. Ao deparar com rankings dos melhores filmes do século, ele sempre procura pela fita de 1959, estrelada por Charlton Heston. “Se não tiver Ben-Hur, não se salva.”
Em 1972, o filme não estava sendo projetado pela primeira vez em Vitória da Conquista. Ainda assim ele se recordou que a cidade parou para assisti-lo. “Lembro que saí para ir à casa de uma tia, e as ruas estavam desertas. Estava todo mundo dentro do cinema. Até o pipoqueiro.”
Lá dentro, a projeção, o colorido e o tamanho da tela o impressionavam. Quando o tema do filme era bíblico, ele percorria o Antigo e o Novo Testamento à procura da narrativa. “Avancei muito na leitura tentando encontrar Ben-Hur na Bíblia”, confessou, fazendo galhofa de si mesmo. O roteiro foi baseado num livro homônimo, escrito pelo militar e diplomata americano Lewis Wallace, na década de 1880.
Formado também em história, hoje Paulo Cesar de Araújo dá aulas numa escola técnica em Niterói, no estado do Rio, onde mora. É daí que vem a sua principal fonte de renda, um salário recém-reajustado para 6 300 reais. Diz que, nos conselhos de classe, procura ajudar os alunos com maior dificuldade. Acredita que poderia ter tido outro destino na vida se não tivesse recebido o mesmo empurrão, no passado.
Seu irmão Paulo Sérgio, ele disse, não conseguiu. “No caso dele, nem a ajuda dos professores foi suficiente. Ele tinha uma dificuldade maior do que a minha. Repetiu muito e acabou desistindo.” Hoje Paulo Sérgio “trabalha com serviços gerais” e ganha menos de dois salários mínimos por mês. “Meu irmão seguiu o meu pai; ele é o meu pai.”
Aos 13 anos, Araújo aprendeu o ofício que o sustentaria até depois dos 30. Um tio, dono de uma óptica, o contratou para ser montador de óculos. A loja recebia a lente, já com o grau encomendado; ele triturava o excesso de vidro e fazia o polimento para encaixá-la na armação escolhida pelo cliente.
Quando completou 16 anos, sua mãe decidiu: o melhor que a família tinha a fazer era emigrar para São Paulo. Outros parentes já moravam por lá, e esse, segundo o pesquisador, era o caminho natural para quem não tinha muitos recursos. Já os filhos da elite de Vitória da Conquista, ele disse, rumavam para Salvador, uma vez terminado o ginásio.
Na capital paulista, encontrou trabalho numa óptica grande, no Centro da cidade. A tarefa de triturar a lente era desempenhada por outro funcionário. Araújo cuidava apenas do acabamento. “Eu tinha uma jornada de trabalho de operário europeu do século XIX.” Polia uma lente atrás da outra, diante de um grande relógio de parede, das 8 às 19 horas, com pausa de quarenta minutos para o almoço. À noite, ia à escola. Morava na Vila Maria, Zona Norte da cidade, e usava os longos percursos de ônibus, do bairro ao Centro e de volta, para ler. Em geral, eram obras vendidas em banca de jornal, como clássicos da literatura e a coleção Os Pensadores, da editora Abril. Já na faculdade, tomou um susto quando travou contato pela primeira vez com a crítica à indústria cultural feita pelos filósofos da Escola de Frankfurt. “Eu fui formado pela indústria cultural, e o transporte coletivo foi a minha grande faculdade.”
O montador óptico também usava intervalos no trabalho para adiantar a leitura. Às vezes se demorava longe das suas funções, o que acabou chamando a atenção do chefe. Certo dia, baixaram uma norma, impressa num cartaz: “A partir de hoje, fica proibido levar jornais ou livros para o banheiro.” Araújo ganhou a antipatia de parte dos colegas, privados de um hábito antigo e inofensivo.
“São Paulo não é fácil”, comentou. Diante da minha concordância, acrescentou: “Não é fácil para operário. Para intelectual é ótimo.”
Foi o desejo, e não a necessidade, que levou Araújo ao Rio de Janeiro. Visitou a cidade pela primeira vez em 1982, vindo da capital paulista para assistir a Brasil e Alemanha, no Maracanã. Antes do amistoso, passeou pela Zona Sul e conheceu pontos turísticos. Terminada a partida, jogou tempo fora nas redondezas do estádio, enquanto esperava a hora de voltar para a rodoviária.
“Achei tudo muito bonito àquela hora, com as luzes acesas. Via o movimento das pessoas. Queria tomar um daqueles ônibus e ir para casa também, queria morar no Rio, como elas moravam. Chegar em casa e abrir a geladeira. Um desejo profundo. Nunca tive um desejo assim.”
Algum tempo depois, começou um namoro com uma moça de Niterói, que conhecera numa festa, em São Paulo. Muitas viagens pela rodovia Presidente Dutra depois, o pai da namorada conseguiu um trabalho para Araújo numa óptica da cidade, para onde se mudou, afinal, sempre acompanhado pela mãe e pelo irmão.
Já havia concluído o ensino médio, em São Paulo, e desejava fazer faculdade. Tentara entrar na USP, sem sucesso. Em Niterói, conseguiu tempo para estudar. Comprou fascículos de preparação para o vestibular, vendidos em banca, e passou a acordar mais cedo para fazer as lições, antes do trabalho. Foi aprovado em história, na UFF, e em comunicação, na PUC, que lhe concedeu uma bolsa de estudos.
Aos 25 anos, Paulo Cesar de Araújo passou a frequentar o assombreado e agradável campus da universidade católica, localizada na Gávea, bairro rico do Rio. Cursaria história mais tarde, depois de concluídos os créditos de jornalismo. Lula Branco Martins foi aprovado no mesmo vestibular. “Ficamos amigos desde o início. Éramos um pouco mais velhos que a média e já trabalhávamos. Ele, na óptica, e eu, no Banco do Brasil. Éramos diferentes dos outros, das loirinhas da PUC”, compara Martins, hoje colunista da revista Veja Rio.
Restava para o calouro vindo de Niterói o problema de sempre: dinheiro. A saída foi fundar “A Ótica Itinerante”. Mandou imprimir cartões de negócios e passou a carregar para as aulas uma pasta-mostruário, com diversos modelos de armações. Seus colegas e professores traziam a receita, escolhiam os óculos e Araújo voltava com o produto acabado, alguns dias mais tarde. O antropólogo Everardo Rocha, professor do Departamento de Comunicação da PUC, virou freguês. “Fiz mais de um par de óculos com ele. E não só eu. Ele trabalhava com marcas nacionais, tinha muitas opções. Eram armações muito simpáticas, bonitas; e a um preço campeão.”
Apesar da pasta de vendedor, a origem social não era uma questão. “Isso nunca entrou no jogo”, disse Rocha. “Nunca ele usou disso, que eu saiba. Nem foi vítima de preconceito.”
“A vida toda, nunca me senti deslocado”, explicou Paulo Cesar de Araújo. “Embora eu seja tímido, não é um sentimento de inferioridade.” Questionado se o fato de entrar na faculdade numa idade mais avançada não lhe causou algum tipo de constrangimento, ele riu: “Nada me incomodava. Eu pegava aquela barca feliz, todo dia de manhã, para ir ao Rio. Quando finalmente entrei na biblioteca da PUC, foi como ver Ben-Hur pela primeira vez.”
O segundo livro de Paulo Cesar de Araújo lhe trouxe fama e dor de cabeça. Roberto Carlos em Detalhes é o que o título promete. A vida e a carreira do ídolo de infância do autor, um cantor cuja voz ele era capaz de reconhecer no rádio aos 6 anos, é esmiuçada em capítulos temáticos que abordam sua relação com o sexo, a política, o sucesso, a amizade, a fé. Mas a obra é também a história de uma turma de subúrbio, jovens de classe média baixa, aspirantes a cantores e músicos, que se reuniam na Tijuca e sonhavam, um dia, fazer sucesso.
Entre o final dos anos 50 e início dos 60, Tim Maia, Jorge Ben, Erasmo Carlos, Wilson Simonal e outros se encontravam em frente ao Bar Divino, na esquina da rua do Matoso com a Haddock Lobo, no bairro da Zona Norte carioca, sabendo que em algum outro lugar da cidade – nas rádios, na tevê, na Zona Sul – uma festa de arromba acontecia. Eles queriam fazer parte daquela festa.
Araújo se refere ao grupo utilizando uma outra distinção feita pelo sociólogo Jessé de Souza. O conceito não aparece em Roberto Carlos em Detalhes, mas essa turma da Zona Norte e do subúrbio fazia parte, diz hoje o biógrafo, dos “batalhadores brasileiros”.
O termo descreve, segundo Jessé de Souza, uma fatia da população que escapou do destino de trabalho braçal imposto à “ralé”, mas que ainda assim não desfruta dos privilégios de “herança e tempo” próprios da classe média. Estudam em escolas públicas de baixa qualidade e, muitas vezes, começam a trabalhar cedo. Compensam a falta de capital cultural e econômico com esforço pessoal e dupla jornada.
Se os bregas provinham da “ralé brasileira” – e para ela, sobretudo, cantavam –, os intérpretes que viriam a fazer a história da Jovem Guarda, do rock e da música soul no país eram “batalhadores”.
Roberto Carlos nessa época morava em Lins de Vasconcelos, bairro do subúrbio do Rio, e fazia parte do grupo. A biografia escrita por Paulo Cesar de Araújo nos mostra o cantor em início de carreira, zanzando entre o rock e a bossa nova, atrás de uma brecha para o sucesso. Apelidado de “João Gilberto dos pobres”, por imitar o estilo suave do cantor baiano, Roberto chegou a ser barrado em apresentações coletivas de bossa nova organizadas por Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. “O garoto suburbano que, assim como aqueles da Zona Sul carioca, tinha se encantado pela música de João Gilberto era visto como um estranho, um intruso, um bicão, e levava sempre um chega pra lá”, escreve Araújo no livro.
Em entrevista ao pesquisador no início dos anos 90, Erasmo comentou seu esforço para conseguir espaço no show business. Ao começar a frequentar a TV Tupi, no final da década de 50, ele se oferecia para fazer pequenos favores, como buscar sanduíches para os artistas, os produtores e o porteiro da emissora. “Eu fui entrando ali como um câncer. É como um câncer que a gente vai entrando no ambiente de que quer fazer parte”, declarou o parceiro de Roberto Carlos durante a conversa, registrada em vídeo.
No auge do sucesso da Jovem Guarda, na segunda metade dos anos 60, em um episódio conhecido e muito simbólico dos embates daquele tempo, os dois enfrentariam a oposição momentânea de um grupo de artistas liderados por Elis Regina, contrários ao uso de guitarras elétricas na canção popular. Em 1970, a mesma Elis terminaria por incluir As Curvas da Estrada de Santos, de Roberto e Erasmo, no repertório das apresentações que fazia no Canecão, no Rio.
Convidado a assistir ao show, Erasmo se emocionou ao ouvir sua composição na voz da ex-rival. “Chorei adoidado mesmo”, contou mais tarde, em depoimento à revista Playboy, reproduzido por Araújo em seu livro. O cantor disse ter pensado então: “Taí a prova de que nós somos legais, porra.”
O tom em geral elogioso da biografia não impediu que o maior compositor romântico do país se sentisse incomodado com a exposição de aspectos de sua vida pessoal no livro. No capítulo “Amante à moda antiga”, Araújo apresenta o cantor envolvido quase simultaneamente, de diferentes maneiras, com as três mulheres com que se casou. No mesmo ano de 1977, quando o relacionamento com Nice já estava em crise, Roberto conheceu Myrian Rios, então com 18 anos, e Maria Rita, uma colegial de 16 anos, nos diz o biógrafo, e seu interesse pelas duas jovens foi correspondido. O cantor tinha então 36 anos de idade.
Araújo também relata encontros fortuitos do cantor com fãs e mulheres famosas, como a cantora Maysa e a atriz Sônia Braga. Descreve minuciosamente o acidente que provocou a perda de parte da perna direita de Roberto. E o longo sofrimento de Maria Rita com o câncer.
Poucos dias depois de a obra ser lançada, os advogados do cantor pediram na Justiça indenização por danos morais e materiais a seu cliente, bem como a suspensão da venda e a retirada dos exemplares já distribuídos das livrarias.
Quase simultaneamente, uma ação criminal, por injúria e difamação, foi proposta em São Paulo, e outra, cível, no Rio de Janeiro. Uma audiência de conciliação foi agendada na capital paulista. O biógrafo deixou-se representar pelos advogados da editora, decisão de que hoje se arrepende. Um acordo foi rapidamente alcançado, pelo qual a Planeta se comprometia a cessar a venda da obra e não voltar a editá-la. Em contrapartida, Roberto Carlos abriria mão da ação cível.
Paulo Cesar de Araújo acredita que o temor de perdas financeiras motivou a decisão da editora. Por meio de sua assessoria de imprensa, a Planeta declarou estar claro, à época, “que a Justiça do Rio de Janeiro, que já havia proibido a comercialização, daria uma sentença condenatória em danos morais”. “Comentava-se no meio jurídico que a condenação seria de aproximadamente 2 milhões de reais”, informou ainda a editora, por escrito, ao responder a perguntas enviadas por piauí.
“Fui à audiência no mais tranquilo otimismo”, afirmou o historiador, que alega ter proposto a Roberto Carlos excluir do livro as partes consideradas ofensivas pelo cantor, o que lhe foi negado. “Elas não representavam nem 1% da obra, e a biografia continuaria a existir.”
De posse do acordo em São Paulo, a juíza responsável pela ação no Rio a declarou extinta, o que na prática manteve a proibição de venda do livro. A advogada do biógrafo apelou contra a suspensão da comercialização da obra, sem sucesso. Ainda assim, o autor diz acreditar na reversão da decisão. “Tão certo como dois e dois são quatro, o meu livro vai voltar. Não tenho dúvida. Mais cedo ou mais tarde.”
“Eu cantei a pedra para ele do que ia acontecer”, afirmou Ruy Castro, que, em sua coluna na Folha de S.Paulo, já criticou várias vezes a censura a obras de não ficção, em geral, e ao livro de Araújo, em particular. “Está provado que não adianta você tentar proteger o biografado.”
Segundo o escritor, Paulo Cesar de Araújo retrata Roberto Carlos como um “filho fabuloso”, um “amante fabuloso” e por aí vai. Questionado se essa transparente admiração compromete a qualidade da obra, o autor de Chega de Saudade comentou: “Isso diminui um pouco o valor de uma biografia. Não estou falando da dele em particular, mas de modo geral.”
É inegável que o autor toma as dores de seu biografado em vários momentos da obra. Ao relatar a implicância de jovens da Zona Sul do Rio com Roberto Carlos, que buscava ser aceito pela “turma da bossa nova”, o pesquisador descreve o encontro em que o compositor Roberto Menescal recomendou ao intérprete iniciante que parasse de imitar João Gilberto. O próprio Araújo reage, em seguida, ao que havia acabado de relatar: “É muito curioso esse argumento de que Roberto Carlos tinha de mudar de estilo porque cantava muito parecido com João Gilberto”, escreveu. “Afinal, naquele momento, qual daqueles rapazes e moças não era imitador de João Gilberto?” Mas a complexidade e as ambiguidades do biografado são preservadas nas descrições e narrações de episódios da vida de Roberto Carlos, que dão carne e osso ao livro e independem das ocasionais intervenções e comentários explícitos do biógrafo.
Para Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Paulo Cesar de Araújo tomou partido também em seu primeiro livro e “forçou a barra” ao fazer a defesa dos cantores bregas. Talvez, especulou Fischer, motivado por sua identificação com aquele grupo de intérpretes e compositores. “Validar seu objeto, encontrar nele traços da atividade mental, comportamental, afetiva, cultural, enfim, das classes populares – ou como se queira chamar –, o.k.”, ele disse. “Mas outra coisa é querer esquecer muitas outras dimensões, por exemplo a enorme tendência da canção dita brega a operar na faixa do sentimentalismo, e não da crítica, assim como sua tendência a usar formas redundantes, sem nenhuma ousadia estética.”
Entre março de 1990, quando começou sua série de entrevistas com cantores e compositores de todos os gêneros da música brasileira, e dezembro de 2006, mês em que Roberto Carlos em Detalhes foi publicado, Paulo Cesar de Araújo buscou, sem sucesso, se aproximar de seu ídolo de infância. “Onde havia um rastro de Roberto, eu estava atrás”, afirma.
Não deixa de ser irônico que, nesse mesmo período, ele tenha se aproximado, de maneira invejável para qualquer outro crítico ou “enquadrador”, do mais célebre e mais inacessível intérprete do país: João Gilberto.
Nos anos 90, Araújo dava os primeiros passos de sua pesquisa falando de um orelhão próximo à sua casa, em Niterói. “Só vim a ter meu primeiro telefone no segundo governo Fernando Henrique”, explicou. Naquele telefone público convenceu Tom Jobim a encontrá-lo para uma conversa no Jardim Botânico, a primeira das 253 entrevistas que faria nas duas décadas seguintes. Da mesma forma, em 1991, discou o número do inventor da bossa nova e, do outro lado da linha, eis que João Gilberto atendeu.
Nos meses seguintes, Araújo voltaria a ligar com frequência, e um diálogo se estabeleceu entre o pesquisador e o intérprete. Só que, em vez de falarem sobre o passado da música brasileira, conversavam sobre a história de Araújo. Já no primeiro telefonema, João Gilberto quis saber coisas sobre a família do interlocutor, na Bahia.
A pesquisadora Edinha Diniz, autora de uma biografia sobre Chiquinha Gonzaga, é amiga de João Gilberto. Na época, era também vizinha do cantor, em um apart-hotel do Leblon, no Rio. Contou que costumava acontecer de “alguém ligar para o João e ele inverter o jogo, ser o entrevistador”. “Pela voz do Paulo, ele percebeu alguma sinceridade, percebeu algo, e manteve a conversa.”
Araújo falou da infância, da mãe, do irmão. Sobre o pai, disse que não o via desde que tinha 16 anos, quando se mudara para São Paulo. Nunca mais haviam se falado, em parte, justificou depois, porque seu Raimundo é semianalfabeto, o que dificultava o contato por carta, e também porque nenhum dos dois tinha telefone. João Gilberto aconselhou o pesquisador a procurar o pai. Afirmou que provavelmente ele devia estar pensando no filho, querendo ter notícias suas.
Nos telefonemas seguintes, voltava ao assunto. “Já falou com o seu pai?”, perguntava, mal iniciada a conversa. A insistência de João Gilberto levou o filho a escrever uma carta, lida para o pai, em Vitória da Conquista, pela tia. A mesma tia redigiu a resposta, ditada por seu Raimundo. Mais tarde os dois se falaram por telefone, pondo fim a um período de catorze anos sem contato.
João Gilberto não se deu por satisfeito. Em 1993, convidado a realizar o show de reinauguração do Teatro Castro Alves, em Salvador, pediu que Araújo o acompanhasse na viagem à capital baiana. Reservou um quarto no mesmo hotel em que iria se hospedar. Queria ver pai e filho juntos. Separou lugares na plateia para os dois. Pediu que avisassem seu Raimundo. A viagem de Conquista a Salvador e o concerto correriam por sua conta. Cobrava: “E aí, Paulo, cadê seu pai?”
Mas o recado não chegou a tempo. Dias antes, seu Raimundo havia deixado a cidade para trabalhar na lavoura. Quando voltou, na segunda-feira, o show já havia acontecido. Araújo e seu pai só viriam a se encontrar pessoalmente anos mais tarde, em 2002, quando nasceu a primeira filha do pesquisador.
Ele hesita em falar sobre os telefonemas e sobre sua relação com João Gilberto, mas a história é contada com desembaraço por pessoas próximas aos dois. Edinha Diniz acompanhou a aproximação entre o ex-vizinho e Araújo, de quem também se tornou amiga. Lula Martins a ouviu do ex-colega de faculdade.
É possível, de toda forma, que a narrativa apareça no livro em que Araújo trabalha no momento, a pedido da Companhia das Letras. O editor Luiz Schwarcz conheceu o pesquisador na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2007, em meio ao imbróglio com Roberto Carlos. Ouviu o que ele tinha a dizer e decidiu encomendar uma obra híbrida, que deve conter bastidores da pesquisa musical e relatos autobiográficos de Araújo. “Será um livro sobre os caminhos de um biógrafo”, explica o pesquisador. E acrescenta: “Vou contar a minha história.”
Em 1996, enquanto Araújo caçava qualquer rastro de Roberto Carlos, seu amigo Lula recebeu um convite para fazer uma entrevista exclusiva com o cantor. A conversa aconteceria no apartamento de Roberto, na Urca, Zona Sul do Rio.
“Resolvi convidar o Paulo Cesar”, conta Martins. “Ele iria me ajudar. Eu faria as perguntas sobre o próximo show e ele daria conta de fazer perguntas mais históricas e biográficas.”
Nos anos anteriores, a cada entrevista coletiva de Roberto Carlos, Martins pedia a Ivone Kassu, assessora de imprensa do cantor, que autorizasse a entrada de Araújo nos eventos. Como dessa vez levava o amigo de forma semiclandestina para o encontro exclusivo, temia que Kassu pudesse impedir a participação de Araújo na entrevista.
“A gente marcou no meio da tarde, às duas, na portaria do prédio do Roberto. Não sei por que cargas-d’água havia uma passeata no caminho.” A manifestação de bandeiras vermelhas, segundo a recordação dos dois amigos, fez com que chegassem com um atraso de meia hora à casa do entrevistado.
“Não havia mais ninguém na portaria esperando pela gente”, lembra Martins. “Talvez a Ivone estivesse ali, caso a gente chegasse a tempo, e não sei se ela deixaria o Araújo subir. O porteiro avisou pelo interfone e autorizaram a nossa entrada. Quando chegamos, a porta já estava aberta. Aquela coisa de elevador privativo.”
No livro que o cantor censurou, Paulo Cesar de Araújo narra o encontro que se seguiu: Em pé, lá estava ele, Roberto Carlos vestido de Roberto Carlos, com seu tradicional traje de calça jeans azul, camisa branca e tênis branco. Ivone estava sentada em um sofá de frente para a porta. Lula foi o primeiro a entrar, sendo apresentado a Roberto por ela. Foi logo pedindo desculpas pelo atraso e em seguida me apresentou. “Roberto, este é meu amigo Paulo Cesar…” Roberto estendeu-me a mão efusivamente, fitando meus olhos, e disse: “Já nos conhecemos não é, bicho?” Sem pestanejar, e também olhando no fundo dos seus olhos, respondi: “Com certeza, Roberto. Eu sou o Brasil.”
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