Carla Madeira e as aquarelas que pintou: ela conta que está elaborando um novo livro. “Já tenho muitas anotações. Um menino de 10 ou 12 anos falando. A voz vai ficando insistente, nomes surgem e alguns acontecimentos vão se impondo” CRÉDITO: LEO DRUMMOND_2022
O caminho do best-seller
Como a publicitária Carla Madeira se tornou uma das escritoras mais lidas do país
Fabrício Marques | Edição 196, Janeiro 2023
Na noite da última quinta-feira de abril do ano passado, no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte, cinquenta pessoas lotaram o restaurante Cozinha Santo Antônio para participar do Jantar Literário com Carla Madeira. A proposta era intercalar a leitura de referências gastronômicas que aparecem nos três romances da escritora mineira com um menu inspirado nesses trechos. Divulgado em redes sociais, o evento teve os ingressos a 230 reais esgotados em menos de 24 horas.
De vestido longo preto com uma camélia branca de tecido, Carla Madeira leu os trechos enquanto à sua direita a chef Juliana Duarte preparava as iguarias na cozinha aberta. Uma mesa coletiva de madeira de demolição e as paredes intencionalmente descascadas conferiam um aspecto rústico ao restaurante. De início foram servidos, com brinde de champanhe e aperitivos, figos frescos com queijo de cabra e mel silvestre de mexerica, jiló empanado acompanhado de limão-capeta e croquetinhos. Em seguida, chegaram as empadinhas de frango com azeitona, alusão a um quitute preparado em um episódio de Tudo É Rio, o primeiro e mais famoso romance de Madeira. O prato principal foi o coq au vin – coxa e sobrecoxa de frango cozidas no vinho – que aparece em Véspera, livro mais recente da autora. A sobremesa consistiu em um bolo perfumado de laranja, citado em A Natureza da Mordida, seu segundo romance.
A chef é amiga de longa data da escritora. As duas trabalharam juntas por dezenove anos na Lápis Raro, a agência publicitária da qual Madeira é sócia e diretora executiva de criação. Foi Duarte que, em 2014, levou Madeira até a livraria Quixote, para que ela mostrasse os originais de Tudo É Rio ao casal de proprietários da loja, Alencar Perdigão e Cláudia Masini. Fundada em 2003, a Quixote tinha acabado de se tornar também uma pequena editora.
Alencar conta que na época demorava a ler os originais que lhe enviavam. Mas, no caso de Tudo É Rio, foi diferente: o livro o agradou de imediato, e ele leu de uma vez. Um contrato foi logo assinado: a autora assumiria os custos de edição, enquanto a Quixote cuidaria da distribuição – acordo relativamente comum no mercado editorial brasileiro, em se tratando de editoras independentes. A primeira edição saiu em dezembro de 2014, com uma tiragem de setecentos exemplares. Até a noite do jantar na Cozinha Santo Antônio, Tudo É Rio, relançado pela editora Record em 2021, já ultrapassava a marca de 75 mil cópias vendidas. Em outubro, seis meses depois, o número quase dobrou, totalizando cerca de 145 mil exemplares.
Carla Madeira Carneiro nasceu em 18 de outubro de 1964, em Belo Horizonte, a quinta de seis filhos. Para assinar os livros, preferiu o sobrenome materno ao paterno. Ulisses, seu pai, foi religioso da ordem marista na juventude, estudou na Sorbonne, em Paris, era poliglota e tinha amplo domínio de várias disciplinas, em particular a matemática, que ensinou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em faculdades particulares. Aos 38 anos, largou a vida religiosa. Pouco depois, casou-se com Irlanda Madeira, 22 anos mais nova. Morreu em 2010, uma semana antes de completar 91 anos, sem conhecer a veia literária da filha. Numa coincidência infeliz, o primeiro encontro da piauí com Carla Madeira ocorreu um dia após a morte de sua mãe, no início de abril, aos 81 anos. Irlanda foi a primeira a ler o original de Tudo É Rio, tanto mais que a personagem Aurora, mãe da protagonista Dalva, tem muitas de suas características.
Tudo É Rio se passa em uma época pré-internet, indefinida. Dalva é uma mulher virtuosa, apaixonada por seu marido, Venâncio, um homem definido como tendo “olhos profundos de abismos por dentro”. Ele se envolve com Lucy, uma prostituta conhecida na cidade (não nomeada no livro), estrela do prostíbulo Casa da Manu. Recuos no tempo refazem a trajetória de Lucy até se tornar prostituta e mostram como Dalva e Venâncio se conheceram. O idílio matrimonial de anos é interrompido quando Venâncio tem uma crise de ciúme ao ver Dalva amamentar o filho recém-nascido, espanca a mulher, arranca o bebê dos braços da mãe e o atira longe. Com isso, de uma só vez Dalva perde “a fé, o filho e o marido”. A narrativa se desenvolve a partir das consequências desse ato violento. De início imune às investidas de Venâncio, a prostituta Lucy acaba se apaixonando por ele. Dalva, por sua vez, embora continue vivendo com o marido, fica quase sete anos sem falar ou olhar para Venâncio. Também esconde dele uma informação crucial. “Nunca dizia nada, essa era a pena perpétua que Venâncio pagaria”, escreve a autora.
Quando começou a escrever Tudo É Rio, Madeira não sabia se seria um romance ou um conto – ou uma história que abandonaria no meio. Era o ano 2000, e ela estava querendo engravidar. Ao escrever a cena de Venâncio com o filho, logo nas primeiras páginas, interrompeu a narrativa. “A violência contra uma mulher e seu bebê foi intransponível para mim naquele momento”, conta. “Senti repulsa e, ao mesmo tempo, vi a necessidade de investigar aquilo que ia se avolumando dentro de mim.” A investigação continuou, mas só em 2014 ela retomou a escrita do livro. “Os quatorze anos que fiquei paralisada jorraram. Tudo foi escrito durante oito meses alucinados, na ordem que o leitor lê. A história foi sendo feita enquanto eu escrevia.”
Madeira afirma ter usado alguns elementos autobiográficos na trama de Tudo É Rio. Em particular a história de um de seus tios, que batia na mulher. Certa vez, a escritora presenciou o início de uma briga do casal e viu o desespero da tia, que, porém, não conseguia se separar do marido. “Quando comecei a escrever, Tudo É Rio não era sobre isso, mas à medida que avançava a narrativa vi o quanto esse caso familiar me atravessou. Eu me lembrava das pessoas que diziam que minha tia gostava de apanhar, testemunhei isso, a dor dela, e ao mesmo tempo o que acontecia para que ela não abandonasse o marido.” O episódio chegou a inspirar até mesmo um poema que ela escreveu anos atrás: Depois de apanhar/minha tia jurava nunca mais voltar/E voltava/antes mesmo da pele rosa/perder o tom lilás.
Todos os livros de Madeira possuem eventos traumáticos como o do início de Tudo É Rio. Em A Natureza da Mordida, um possível incesto afeta de maneira determinante a vida de alguns personagens; em Véspera, uma criança é abandonada pela mãe. O núcleo familiar aparece frequentemente como matriz de desajustes e comportamentos violentos, com seu misto de casamentos tóxicos, rejeição, abandono, vingança e culpa. A pergunta que abre este último romance pode ser aplicada, de certa forma, a todos os seus outros livros: “Como se chega ao extremo?”
Na noite do jantar literário na Cozinha Santo Antônio, o microfone foi franqueado ao público para perguntas ou leituras de trechos das obras. Um dos raros homens no recinto era Alisson Bretas, de 49 anos, executivo de uma empresa de aviação que antecipara seu retorno de Brasília para Belo Horizonte apenas para participar do evento. Ele leu um fragmento de Tudo É Rio muito popular entre fãs do livro, o primeiro parágrafo do capítulo 21, que começa assim: “O que mais existe no mundo são pessoas que nunca vão se conhecer. Nasceram em um lugar distante, e o acaso não fará com que se cruzem. Um desperdício.” Bretas tomou conhecimento da obra de Madeira numa viagem de férias, quando a sua mulher – a titular de cartório Cláudia Amaral, também presente no jantar – adormeceu no voo, deixando seu exemplar de Tudo É Rio à vista do marido. Ele apanhou o livro e leu numa sentada.
Quem também pediu a palavra foi a jornalista Juliana Machado, de 42 anos. Estava acompanhada de participantes do Nosso Clube, fundado no início deste ano. Ela contou que a ideia de criar o clube de leitura, formado só por mulheres, surgiu durante uma festa de aniversário de criança. “Eu tinha acabado de ler A Natureza da Mordida. Outra mulher falou de Véspera. A maioria já tinha lido Tudo É Rio. O nome ‘Carla’ mobilizou praticamente todas que estavam lá, que já tinham lido ou ouvido falar sobre ela. E, por causa daquela energia literária, sugeri criarmos um clube do livro.”
O boca a boca parece ter tido papel fundamental para fazer de Tudo É Rio um sucesso comercial. A primeira edição, de dezembro de 2014, foi vendida apenas na Quixote, num ritmo constante, porém lento. Os setecentos exemplares levaram dois anos para se esgotar, uma quantidade desprezível para grandes editoras, mas considerável para as pequenas. Em 2017, a Quixote uniu-se à Do, editora da jornalista Luciana Tanure, e passou a se chamar Quixote + Do Editoras Associadas. Naquele ano, estimulada pelas vendas de Tudo É Rio, a nova casa editorial decidiu fazer uma segunda impressão, agora assumindo todos os custos de produção e distribuição.
As indicações de leitores entusiastas ganharam fôlego. Uma das histórias curiosas dos leitores de primeira hora é a do médico José Salvador Silva, de 91 anos, fundador do Hospital Mater Dei (hoje parte da Rede Mater Dei de Saúde), um dos mais tradicionais da capital mineira. Ele ganhou o livro de presente de uma amiga em 2015. Filho de fazendeiro e leitor obstinado, tem o costume de presentear, todo ano, os membros de sua família com exemplares de um mesmo livro e, no dia de seu aniversário, sortear um dos parentes para comentar a obra. Salvador empolgou-se tanto com Tudo É Rio que, além de presentear os familiares, deu o livro para mais de cem amigos.
Em 2018, ocorreu o que Madeira define como um dos “momentos mais emocionantes” de sua trajetória literária. Tudo É Rio foi selecionado, junto com obras do poeta mineiro Ricardo Aleixo e de outros escritores, para um programa carcerário de estímulo à leitura – uma resolução da Secretaria de Estado de Defesa Social e do Tribunal de Justiça permite que os detentos do sistema penitenciário troquem a leitura mensal de um livro pela remição de quatro dias da pena.
Acompanhada do marido, o jornalista José Amaro Guimarães de Siqueira, a escritora esteve no Presídio de Caeté. Numa tarde de 19 de junho, conversou com sete presidiários, que chegaram em fila, de uniforme vermelho e sem algemas, todos com o exemplar do romance em mãos. O presídio projetado para 45 detentos abrigava, naquela ocasião, quase cem pessoas. Como não havia um lugar adequado, o encontro com Madeira aconteceu no espaço de banho de Sol, ao lado das celas, observado por um guarda numa torre de vigilância. Ela estava um pouco receosa em relação ao encontro, mas ouviu palavras que a comoveram. Um dos detentos disse que o romance acabara com seu rancor e o ajudara a perdoar a mãe de seus filhos. Outro foi mais longe: afirmou que o livro lhe dava a esperança de que o momento que estava vivendo ia passar.
Dois meses depois, em 5 de agosto de 2018, a escritora gaúcha Martha Medeiros dedicou sua coluna dominical de O Globo a Tudo É Rio, classificando o livro como uma “obra-prima” e Carla Madeira como “a revelação literária do ano”. Medeiros havia recebido o livro da escritora e jornalista mineira Leila Ferreira, que, por sua vez, ficara sabendo da obra por intermédio de seu psicanalista e de sua cabeleireira. No dia seguinte à publicação da coluna, a Quixote + Do passou a receber pedidos das demais livrarias de Belo Horizonte e de outras cidades. Perdigão, o sócio da editora, diz que, em mais de duas décadas atuando no ramo de livrarias, nunca tinha visto uma demanda tão contínua como a que se seguiu. Quem também teve a impressão de estar diante de um novo fenômeno foi a livreira Simone Pessoa, referência no circuito literário da cidade, atualmente trabalhando na Livraria da Rua. “As pessoas liam numa tarde e voltavam para agradecer a indicação e comprar o livro para presentear”, ela conta, descrevendo a velocidade do boca a boca na difusão de Tudo É Rio.
A movimentação em torno do livro chamou a atenção das grandes editoras do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas Madeira preferiu manter seu livro na Quixote + Do. Foi com essa mesma editora que lançou em 2019 seu segundo romance, A Natureza da Mordida, com uma tiragem de 3,6 mil exemplares, atualmente esgotada.
Em novembro de 2020, Madeira resolveu aceitar a proposta de Roberta Machado, diretora da Record e entusiasta do livro – e trocou de editora. “O problema era que, por ser uma editora pequena, eles conseguiam produzir e distribuir de uma maneira bem limitada, não atendendo à demanda”, diz a escritora, referindo-se à Quixote + Do. O fim do contrato deu-se de forma amigável, e exemplares de Tudo É Rio sob o selo da editora Record estão sempre à mostra na Quixote Livraria e Café. Até que o contrato acabasse, a pequena editora fez cinco reimpressões de Tudo É Rio e vendeu no total cerca de 8,7 mil cópias.
A Record relançou Tudo É Rio em fevereiro de 2021. Iniciou-se então uma nova trajetória para o livro, em que tiveram papel importante na difusão alguns canais de influenciadoras nas redes sociais, como o de Tatiany Leite – Vá Ler um Livro –, com 200 mil inscritos, e o de Pam Gonçalves, com 340 mil inscritos, ambos no YouTube. Em um vídeo, Gonçalves chamou Madeira de sua “nova autora brasileira favorita” e comentou: “É um livro polêmico, recebi comentários conflituosos e até algumas críticas por ter gostado, mas tenho meus motivos pra ter ficado tão empolgada.” No contexto do confinamento da pandemia, também houve uma explosão de indicações do romance em clubes de leitura. Madeira conta que passou a participar de um encontro por semana nesses clubes.
Carla Madeira mora há mais de duas décadas em uma casa de três andares, quatro quartos e cerca de 300 m2 no Mangabeiras, bairro de classe alta de Belo Horizonte. Tão logo se abre o portão da casa, vê-se um jardim com flores e hortaliças plantadas por sua mãe: hibisco, espada-de-são-jorge, lírio, amoreira, alecrim, manjericão, tomilho e pimenta dedo-de-moça.
Ela vive na casa com Guimarães de Siqueira, seu terceiro marido, um homem de cabelos grisalhos e expressão afável. Ex-gerente de comunicação da Globo Minas, Siqueira conheceu a escritora no meio publicitário e hoje a acompanha em todos os eventos literários. Ali também moram Ana, de 22 anos, e João, de 20 anos, os filhos de Madeira com o produtor de vídeo e cinema Marcelo Braga de Freitas, seu segundo marido. O primeiro casamento foi com um piloto de motocross, Renato Araújo Ferreira, o único com quem ela oficializou a relação.
Em uma das salas do primeiro andar, há 43 quadros com o tema de flores e plantas, pintados em cores em tom pastel e estilo impressionista por Madeira, a maior parte enquanto ela escrevia A Natureza da Mordida. Em outra sala, no segundo andar, também com vários quadros nas paredes e espalhados pelo chão, estava seu violão. A música e a pintura precederam a literatura no gosto de Madeira. Ela conta que até os 25 anos dedicou mais tempo à música – ouvindo e tocando, sobretudo MPB – do que à leitura.
A escritora tem uma fala assertiva, pontuada pela gesticulação teatral. Nas conversas, contrapõe um excesso de concentração naquilo que a interessa a uma inabalável indiferença, ignorando tudo o mais em volta. Amigos colecionam histórias que ilustram essa mescla de hiperfoco e distração, como quando ela foi visitar a mãe e estranhou as pessoas presentes no apartamento. Demorou um tempo até ela entender que tinha errado de andar e de casa.
Madeira diz que escreve seus livros em um laptop, trabalhando ora no escritório da casa, ora em uma mesa no quintal. Tudo É Rio, porém, foi feito em grande parte em sua cama, com um travesseiro servindo de apoio ao computador. Ela se dedicava ao romance principalmente à noite, depois que chegava do trabalho e colocava os filhos para dormir. “Nos fins de semana, eu escrevia muito. Às vezes, cinco horas seguidas. Não podia ficar um dia sem escrever porque perdia o sotaque, a voz e o ritmo do narrador”, contou durante uma conversa sobre sua produção literária com 25 funcionários da Lápis Raro, sua agência de publicidade.
A conversa, feita a pedido da própria equipe, aconteceu na véspera do jantar literário e foi conduzida pela diretora de criação da agência, Cristina Cortez, e pela gestora de estratégia, Juliana Sampaio, duas ex-alunas de Madeira, da época em que ela deu aulas de redação publicitária no curso de publicidade e propaganda na UFMG, de 1991 a 1992. Para explicar aos funcionários da Lápis Raro como surgiam suas histórias, a escritora se valeu de uma metáfora: disse que enxergava pontinhos de luz espalhados por um terreno montanhoso, cada um “como uma tocha”. Chegando a um ponto, via outro na distância, e seguia caminho, e assim por diante. “Mas só enxergo a história toda, só vejo todas as tochas, na hora que chego ao final da história mesmo.”
A Lápis Raro começou em 1987, no quarto de Madeira, quando ela ainda morava na casa dos pais, no bairro Floresta, e cursava as faculdades que lhe renderiam tripla formação na UFMG – formou-se em relações públicas naquele ano e em jornalismo e em publicidade e propaganda em 1988. Sua única experiência profissional até então havia sido como professora de uma escola maternal. O primeiro cliente dela e suas sócias, Letícia da Veiga Ladeira e Eurídice Fraga (que já saíram da agência), foi um professor particular de matemática. “Fizemos um folheto com um desenho de uma pulguinha simpática e um bicho de sete cabeças ao lado dela. O título era: ‘O bicho de sete cabeças não é tão grande assim.’”
De acordo com números da própria agência, a Lápis Raro faturou cerca de 19 milhões de reais no ano passado. Como sócia e diretora, Madeira cuida tanto do planejamento quanto da criação. Embora não dispense alguns clientes do setor público, seu foco principal é a iniciativa privada: atende a marcas fortes do mercado mineiro, como a Drogaria Araújo, a Unimed-BH e a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração.[1]
Há 28 anos, a principal sócia de Madeira é Simone Moreira, que entrou na Lápis Raro como estagiária e passou por diversas áreas na empresa. Além da sociedade, algo mais une as duas mulheres. A filha de Moreira, Luisa, e a de Madeira, Ana, nasceram no mesmo dia, 21 de janeiro de 2000. As amigas entraram em trabalho de parto na mesma hora, em hospitais diferentes, mas foram atendidas pelo mesmo médico, que primeiro acompanhou o parto de Moreira e depois o de Madeira. Vinte dias depois, Moreira precisou viajar a trabalho e a escritora amamentou as duas recém-nascidas.
A sororidade evocada pela anedota se reflete na composição geral da agência: a empresa tem todos os cargos de chefia ocupados por mulheres, e mais de 60% da equipe é feminina. Madeira tampouco é a única escritora a ter passado pela empresa. A gestora de estratégia da agência, Juliana Sampaio – coautora de Mothern: Manual da Mãe Moderna, blog que virou livro, coluna de revista e minissérie de tevê – se lembra de algumas escritoras e poetas que trabalharam na agência, como Marcela Dantés, autora do romance Nem Sinal de Asas, finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, e Cris Guerra, autora do livro de não ficção Moda Intuitiva. Em 2007, Guerra teve um filho, mas com apenas 45 dias de licença-maternidade o seu chefe ordenou que voltasse ao trabalho na agência em que atuava. Ela retomou as atividades, mas decidiu procurar a Lápis Raro. Madeira a contratou, bancando todo o restante do período de licença-maternidade. “Nunca vou me esquecer disso”, diz Guerra.
Em Tudo é Rio, Madeira imprime um ritmo ágil à história e usa muitas frases concisas e diretas, um estilo que parece aludir à sua experiência com jingles, anúncios e filmes publicitários. “Algumas vezes as mudanças acontecem na marra”, diz a narradora do romance a certa altura. “Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida.” A passagem alude ao jogo entre acaso e destino na vida dos protagonistas, concedendo às situações vivenciadas por eles um ar de episódios quase inevitáveis (algo que de certa forma contradiz a primeira impressão sugerida pelo título do livro). Além do estilo em si, a verve publicitária da autora se mostra também em seu envolvimento “na etapa de concepção do livro em termos de projeto gráfico, capa e sinopse”.
Quando Tudo É Rio foi lançado pela primeira vez, a Quixote não tinha uma área de marketing e comunicação estruturada. “Por ter uma agência, assumi o projeto gráfico, editoração do livro, assim como os custos da primeira impressão”, conta Madeira. No caso da Record, porém, ela se envolveu menos, já que a editora carioca tem canais de divulgação e distribuição mais robustos. Mas a escritora rejeita a ideia de que a estratégia de divulgação é o principal fator por trás do sucesso de Tudo É Rio. “É a ressonância no leitor que faz o livro acontecer. Ou seja, não ter um bom trabalho de comunicação e marketing pode retardar ou impedir que um livro aconteça, mas ter não é garantia suficiente para fazer um livro acontecer. Ele precisa impactar o leitor.”
Os fãs mais ardorosos do livro enfatizam o caráter “viciante” de Tudo É Rio, o que também está no cerne de algumas das críticas mais duras que o livro recebeu. Para os leitores menos persuadidos, a habilidade narrativa realçada por admiradores não é sinônimo de força literária. Numa resenha do livro publicada na Folha de S.Paulo, em junho de 2021, o crítico literário Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), definiu Tudo É Rio como um romance “trivial” e os personagens de Madeira como “tipos”, dotados de “pouca densidade psicológica”. Fischer argumenta que a trama do romance depende excessivamente “de muitos clichês do gênero das telenovelas – recados que chegam abruptamente, filiações obscuras, maldições inescapáveis, determinismos familiares”.
Por telefone, de Porto Alegre, Fischer disse à piauí que Tudo É Rio parece se inscrever numa tendência da literatura que é marcada pela combinação de um enredo de reinvindicação feminina com uma trama em que “forças telúricas atuam sobre os personagens”. Além de Isabel Allende, citada em sua resenha da Folha de S.Paulo, o crítico inscreveu o romance Dois Rios, de Tatiana Salem Levy, na mesma tendência (Fischer também vê Martha Medeiros como uma influência clara na escrita de Madeira). Em sua resenha, ele criticou a resolução da trama de Tudo É Rio, dizendo que o romance cai numa espécie de redenção final reducionista, em que “o bem vence o mal”.
Formada em estudos literários na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestranda na Universidade Federal Fluminense (UFF), Mell Ferraz comanda desde 2010 o Literature-se, um canal de resenhas literárias no YouTube com mais de 170 mil inscritos. Em um vídeo publicado em 6 de março do ano passado, ela teceu opinião parecida com a de Fischer: “A escrita não funcionou quando tentou criar um arco de redenção”, diz Ferraz, que também achou a narrativa “condescendente com os crimes”, num ambiente “de violência doméstica e patriarcal”. Luciana Gerbovic, uma das diretoras da Escrevedeira, que promove oficinas de escrita em São Paulo, gosta de Tudo É Rio, mas não deixou de notar certa resistência ao romance quando ele foi discutido num clube de leitura que organizou. Alguns alunos fizeram críticas pontuais, dizendo que “não gostaram de alguns clichês”, segundo ela. “Essas críticas mais à questão formal se devem ao fato de que nossos cursos são voltados à formação de escritores. Pessoalmente, acho um bom livro para participar de clubes de leitura, pois é de fácil leitura e traz questões importantes para debater”, diz.
“E eu que passei a vida inteira pensando que ser fabulosa era uma coisa boa!”, diz Madeira, ao ser indagada sobre o que achou da crítica de Fischer. “A coisa mais elegante que consigo dizer é: doeu, mas sem unanimidade tudo fica mais inteligente.” O impacto, porém, não foi tão fácil de absorver. “O maior incômodo teve a ver com tomar consciência de um tipo de exposição que eu ainda não tinha me dado conta que estaria sujeita, quase como uma invasão de um território sagrado: o de criar, sem ser submetida à aprovação, classificação ou carimbos”, ela explica. “Eu imaginei que na literatura, ao contrário da publicidade, a opinião do outro não me afetaria, e que ter adesão com o que escrevi me protegeria emocionalmente. Mas, quando esse outro é um crítico, que supostamente fala de um lugar de especialista, em um grande jornal, o que ele diz ressoa como uma verdade. E isso me deixou arrasada.”
A experiência fez com que ela tentasse blindar mais a sua escrita de opiniões alheias, positivas ou negativas. Madeira também viu no texto de Fischer “um punhado de preconceitos”: “contra folhetins, fábulas, Isabel Allende e ‘certo tipo’ de leitores”. E acrescenta: “Mas isso diz mais do crítico do que de mim. As argumentações do Fischer não conversam com o que tenho tido de ressonância dos meus leitores, muitos deles bastante exigentes. Estou bem resolvida quanto a isso.”
Quando impelida a comentar as razões do sucesso do próprio romance, Madeira cita o foco em diferenças de gênero e na violência contra a mulher. “Estive também em um presídio feminino para falar do livro. E é interessante que, lá, a protagonista Lucy foi mais festejada, mais falada do que no presídio masculino. Senti o quanto uma mulher exercer sua sexualidade com gozo liberta a coragem de falar da própria sexualidade, sem o peso do controle social”, comenta. Editor executivo da Record, Rodrigo Lacerda, não tinha ainda assumido seu posto quando Madeira foi contratada, mas diz que a escritora “se insere no perfil literário que a editora está em busca e que coloca a questão feminina em evidência de forma muito sensível e forte”.
Criadoras de um grupo de psicanálise e literatura do qual Madeira participa, Mônica Godoy e Paula Vaz dizem que os livros da autora mineira atraem o feminino nos leitores, no sentido mais amplo do termo, do “feminino na estrutura de cada um de nós, homens e mulheres”. E o mesmo Fischer reconhece na narrativa a conquista de uma dicção feminina, para além de abordar um tema ligado às mulheres. “Como dizia o escritor Moacyr Scliar, o leitor brasileiro é mulher”, afirma o crítico, em referência à dominância de leitoras femininas no país. “A crítica que faço ao livro não tem a ver com esse vetor feminista, mas sim com ele operar na faixa de clichês, tanto em linguagem quanto em estratégias narrativas folhetinescas, fatores que em boa medida explicam seu sucesso”, completa Fischer.
Para algumas leitoras, porém, o feminismo encampado por Tudo É Rio tem certos limites. Valeria Rosito, professora de literatura e cultura brasileiras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), autora de Produções Feministas no Brasil: Da Modernidade à Pós, avalia que as personagens Dalva (a esposa) e Lucy (a prostituta) são dois tipos unidimensionais, sendo uma o inverso da outra. “Elas são muito parecidas porque são inversas. Quero dizer que se refletem, são complementares, são ambas figuras muito caras ao patriarcalismo. Essa questão está bastante explícita nos papéis que ocupam: puta e santa.” Rosito diz ainda que “falta aos personagens multifacetação, o que daria a elas mais cor, mais vida, mais verossimilhança”. Ela compara Tudo É Rio com o conto Aramides Florença, de Conceição Evaristo, em que a protagonista homônima vive feliz com o marido até ele arrancar a criança da mão dela e jogá-la no berço. “Uma história brutal, mas bastante comum, que está na pauta das duas escritoras.”
Maria do Rosário Pereira, professora de literatura brasileira no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e integrante do grupo de pesquisa “Escritas de autoria feminina”, da UFF, vê certa força em Lucy, sobretudo na ênfase que Madeira dá às manifestações de libido da personagem. Pereira acha que isso foi uma decisão consciente da autora com o objetivo de evitar que o leitor sinta pena da personagem. Ela compara essa estratégia ao que fez a escritora francesa Virginie Despentes, autora de Teoria King Kong, que foi elogiada pela crítica por fazer um retrato original da prostituição. Segundo Rosário Pereira, Despentes, que já trabalhou como prostituta, “pontua que o discurso de vitimização em torno da prostituição é uma construção política que visa à manutenção do status quo, isto é, o lugar à margem no qual as prostitutas permanecem”.
A redenção final em Tudo É Rio a qual se refere Fischer está relacionada ao perdão que Dalva concede a Venâncio, após os atos criminosos do marido. Esse é outro ponto polêmico do livro. Mell Ferraz, do canal Literature-se, diz que o problema não é a redenção em si, que ocorre em outros importantes livros de literatura, mas o fato de que, em Tudo É Rio, isso “não atinge a crítica social tão defendida por muitos fãs da obra”. Ela ressalta que os temas que o livro traz para debate – machismo e violência patriarcal – são importantes e necessários, mas em sua visão a narração onisciente por vezes ameniza os crimes do agressor. Ela dá um exemplo do início do livro. Quando Venâncio atira o recém-nascido para longe de Dalva, a narradora diz: “O outro morreu sem ter um nome; ia se chamar Vicente, mas não foi registrado e nem batizado.” Para Ferraz, ao dizer que o bebê morreu, e não que foi assassinado, a narrativa se mostra condescendente, construindo um arco de redenção problemático.
Rosário Pereira não acha que o silêncio de Dalva em Tudo É Rio seja inverossímil ou sinal de submissão. Para ela, é um retrato da “vergonha” que vítimas de violência e abusos têm de denunciar e contar o que passaram, inclusive para pessoas próximas. “A vítima se vê emocionalmente frágil”, diz. A professora avalia que Dalva, à sua maneira, pune o marido. Ele sofre durante anos com a indiferença e o silêncio da mulher.
Dois dias após o jantar na Cozinha Santo Antônio, Carla Madeira estava feliz com a notícia de que era uma das indicadas na 19ª edição do Prêmio Faz Diferença, do jornal O Globo, na categoria Livros, ao lado do escritor Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti 2021 com o livro O Avesso da Pele, e do jornalista Zuenir Ventura – que acabou ficando com a distinção.
O sucesso de Tudo É Rio não arrefeceu. Apenas nos dois primeiros meses de 2022, o livro vendeu mais da metade do que no ano passado inteiro. Embalada pelos resultados, a Record lançou em novembro de 2021 o terceiro romance de Madeira, Véspera. Em novembro passado relançou o seu segundo romance, A Natureza da Mordida, em versão revista pela autora, com mudanças pontuais nos primeiros capítulos. Uma eventual pressão em replicar o êxito de Tudo É Rio não preocupa a escritora. “Quero experimentar, investigar. Tenho curiosidade, o resto é lucro”, ela diz.
Outro motivo de alegria para Madeira foi o anúncio de que Tudo É Rio vai ser adaptado para o cinema. A pessoa que irá dirigir o filme ainda não foi escolhida, mas será uma mulher. Já estão se desenrolando conversas sobre elenco e equipe de produção, a cargo da Boutique Filmes, que também adaptará Véspera para uma série de tevê. Além disso, com a retomada dos eventos presenciais pós-pandemia, a agenda de Carla Madeira tem se intensificado. Desde maio de 2022, ela participou de encontros literários no Instituto Inhotim, em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre – em alguns desses lugares, mais de uma vez.
Madeira diz que está vivendo agora o momento em que um novo livro está vindo à tona. “Já tenho muitas anotações, caóticas. Um menino de 10 ou 12 anos falando, a ingenuidade da idade lidando com questões complexas. A voz vai ficando insistente, alguns nomes próprios vão surgindo, e alguns acontecimentos vão se impondo.” Ela conta que já escreveu dois capítulos, mas teve que interromper o processo. “Não está sendo um ano fácil para mim, tive muitas perdas, e não estou ainda me sentindo pronta para mergulhar em outra história. Mas vai acontecer, porque já não consigo silenciar as vozes e algumas situações que vislumbrei. Estou em um lugar sem volta, mas também sem pressa.”
[1] Um dos acionistas da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração é o grupo Moreira Salles, do qual faz parte João Moreira Salles, fundador da piauí.
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