FOTOS: FERNANDA REGALDO E ROBERTO ANDRÉS
O Canadá mineiro
Passa um Fusca ocre, em cujo para-brisa está escrito: “O Brasil é assim porque nós deixamos”
Roberto Andrés e Fernanda Regaldo | Edição 61, Outubro 2011
A Rainha Elizabeth, no início dos tempos, era a rua dos buracos. Era lá que a molecada brincava quando as chuvas de verão alagavam o Canadá. Logo ao lado, dona Maria era dona de sua rua. O nome que deu a ela foi João Paulo II. A própria dona Maria mandou fazer a placa. Foi com certa tristeza que viu seu papa substituído por aquele nome estranho: Hudson. Desconhece o que, onde ou quem possa vir a ser Hudson. Mas pelo menos o número que escolheu continua igual.
O Jardim Canadá é um bairro de Nova Lima, embora fique a 16 quilômetros da sede do seu município, e apenas a 10 da borda sul de Belo Horizonte. Nova Lima é um dos municípios mais extensos de Minas Gerais e cerca de 70% de sua área pertencem a mineradoras. O Canadá é fruto de um loteamento fracassado da década de 50, que começou a ser ocupado informalmente nos idos dos anos 70. Tem hoje cerca de 7 mil moradores, que trabalham na mineração, em várias indústrias, no comércio e na prestação de serviços nos condomínios vizinhos.
Nas ruas do bairro, nas quais o asfalto ainda não chegou, pessoas carregam sacolas plásticas. As sacolas carregam sapatos. Ou as sacolas viram sapatos, para que a terra não suje os pés nem os sapatos. Na avenida Ottawa, seu Antônio caminha num lote vago. No Canadá, é comum surgirem pessoas nos lotes vagos, atravessando o vazio, traçando finas trilhas, quase invisíveis. Nas mãos, seu Antônio traz algumas ervas para fazer chá. Também o boldo e a erva-doce costumam despontar em lotes vagos.
Na avenida Canadá, três vira-latas fazem xixi, latem para os carros e irritam os passantes. No domingo pela manhã, a avenida se enche de cones para que funcionários da firma de transportes acelerem enormes caminhões numa competição de cavalos de pau.
Enquanto um trator asfalta a rua Victoria, cruzam seu caminho um ônibus escolar, um caminhão-pipa, duas crianças empurrando um carrinho de bebê, uma moto, dois carros, três bicicletas, dezessete transeuntes e um homem a cavalo. Misteriosos jovens de terno e gravata listrada são vistos com frequência na avenida Missisipi. Perto dali, uma enorme grua rasga os céus, servindo de mostruário dos serviços prestados por uma empresa de aluguel de máquinas e equipamentos.
Um gramado sintético foi arrancado de uma quadra de futebol na rua Kent. Alguns dias depois, seus restos formavam um montinho verde na rua Michigan. Na rua Kenton, um coqueiro se equilibra no topo de uma montanha branca da fábrica de cimento. Na Candal, uma mulher retoca a maquiagem no meio de um canteiro de obras. Na Calgary, uma retroescavadeira amarela tenta se esconder atrás de uma bananeira. Na Truro, uma placa pintada à mão anuncia Manicure e Pé-de-curi. Na Sparta, vende-se uma casa com meio lote. Em nenhuma das ruas se encontra uma explicação para o nome do bairro. “Deve ser o frio, né?”, especula um morador.
Na rua Alaska, crianças brincam de estátua. Na Mackenzie, um senhor grisalho passa com frequência dentro de um Fusca ocre, em cujo para-brisa lê-se: “O Brasil é assim porque nós deixamos.” Vendem-se cadeiras de jardim no canteiro central da avenida Montreal, onde, logo adiante, uma família constituída por galinha, galo e quatro pintinhos atravessa o asfalto.
Na rua Mell Ville, um homem com roupas brancas troca o pneu de um trator, observado por um cavalo pampa, enquanto na Niágara funcionários da casa de festa lavam a calçada com água, sem se incomodarem com um pequeno incêndio que ocorre logo ao lado.
As ruas Kalamazo, Kerban e Kenon não remetem a nenhum lugar no Canadá. Talvez sejam, respectivamente, um parque nos Estados Unidos, uma cidade no Cazaquistão e um acidente topográfico – seriam, as três, acidentes tipográficos. Na rua Puebla, que é no México, oito contêineres repousam sobre um lote gramado.
Nos sábados de sol, o Canadá inteiro ganha o colorido das roupas estendidas nos varais de arame farpado.
Urbanista e professor da UFMG. É diretor da Rede Nossas Cidades e autor de A Razão dos Centavos (Zahar).
Fernanda Regaldo é editora da revista Piseagrama e autora de 'A Natureza Mora ao Lado'.