ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
O candidato negro
Argentinos fazem piada com Obaca, sósia de Obama
Paula Scarpin | Edição 105, Junho 2015
Repórter há oito anos no Clarín, o principal diário argentino, o jornalista Guido Carelli Lynch sabe que é inevitável se surpreender de tempos em tempos com a política local. Nada que se compare, no entanto, ao susto que levou no início de maio, ao passar distraído por um cartaz de rua, voltando do trabalho. “Faça história. Vote no primeiro presidente negro da Argentina. Obaca 2015”, dizia a peça publicitária. Com a bandeira dos Estados Unidos ao fundo, uma versão bem mais bochechuda de seu quase homônimo sorria para o transeunte. O ar vitorioso era reforçado pelo retrato em contra-plongée e pela aura criada pela iluminação.
A primeira reação de Carelli foi de insegurança. Até aquela data, ele se sentia confortavelmente veterano no emaranhado político argentino. Como essa figura podia ter lhe escapado até aquela campanha chegar às ruas? Obaca certamente não tinha concorrido a nenhuma vaga legislativa nas últimas eleições, tampouco despontava como liderança em algum partido nanico. Talvez fosse um líder dentro da pequena comunidade negra argentina. Mas bastou digitar o nome do candidato no Google para o jornalista constatar que caíra numa pegadinha.
A primeira ocorrência de Obaca no buscador direcionava ao site da FWTV, um canal de vídeos online, com peças curtas feitas sob medida para “viralizar” nas redes sociais – algo assim como se o site do Porta dos Fundos, além das esquetes cômicas, tivesse outros programas na grade, de culinária a clips jornalísticos. Toda a suposta campanha de Obaca estava hospedada ali, seus slogans e suas inusitadas propostas de governo.
Em um dos vídeos, Obaca garante que, se eleito, decretará o retorno imediato à Argentina dos jogadores que brilham no exterior. Aludindo à fuga de cérebros do país, o candidato desdenha: “Que voltem os cientistas? Que volte Messi!” Noutra providência de seu futuro governo, o problema da violência seria contornado com uma medida simples: a distribuição de fardas policiais para toda a população, a fim de “semear a paranoia entre os delinquentes”.
Os inventores de Omar Obaca são os roteiristas da Nah! Contenidos, uma produtora de vídeos para tevê e publicidade. O personagem nasceu em 2009, como uma paródia despretensiosa de Barack Obama. Mas foi só neste ano que a rede FWTV vislumbrou na figura um contraponto cômico para as eleições, que acontecem em outubro próximo. Os vídeos não demoraram a se propagar pelas redes sociais, e Obaca transcendeu a internet. As redes de rádio e televisão logo se interessaram pela notícia. O passo seguinte foi espalhar cartazes pela cidade, a exemplo dos demais candidatos.
“É inacreditável, mas a pergunta a que eu mais respondo é se de fato pretendo me candidatar”, disse por telefone Marcos Moreno Martínez, o ator que interpreta Omar Obaca. Mas a dúvida não é de todo infundada, e não faltam precedentes. O palhaço Jón Gnarr chegou a exercer o cargo de prefeito da capital islandesa, Reykjavík, entre 2010 e 2014. Nem é preciso ir tão longe: Tiririca foi reeleito deputado federal como o segundo mais votado entre os postulantes paulistas. Moreno, contudo, garante não ter ambições políticas. Ator desde a adolescência, ele está satisfeito por ter conseguido emplacar um personagem de sucesso e ser reconhecido na rua pela primeira vez, aos 37 anos.
O fato de ser pouco conhecido ajudou Moreno a conquistar o papel, já que a intenção dos criadores da campanha era confundir o público. “Além disso, não é que houvesse uma multidão de atores negros na Argentina”, brincou. Nem atores, nem não atores. No censo de 2010, menos de 0,5% de seus conterrâneos se declarou negro – o que situaria a Argentina atrás da Suécia e da Noruega, respectivamente com uma população de 0,8% e 1,4% de afrodescendentes.
Nem sempre foi assim. A Argentina, à semelhança de outros países latino-americanos, contou com mão de obra escrava vinda da África no período colonial. No primeiro censo realizado no país, em 1778, os negros chegavam a cerca de um terço da população. Pouco mais de um século depois, no censo de 1887, esse número havia caído para 1,8%. A queda brutal se deve a vários fatores, entre eles as guerras entre espanhóis e ingleses no século XVIII, e as de independência no começo do século XIX. Por ordem dos patrões ou promessa de alforria, os negros integravam quase todas as frentes de batalha.
Nas décadas seguintes, diminuiria, até cessar, o tráfico negreiro para a Argentina. Já o contingente de imigrantes europeus só aumentou – o que contribuiu para que a parcela negra na população total encolhesse. Por fim, uma política oficial de branqueamento passou a registrar filhos de pais inter-raciais como brancos, de modo a manipular os dados. Ainda hoje, com o movimento negro quase incipiente na Argentina, é difícil dizer se os dados autodeclaratórios são confiáveis.
Marcos Moreno Martínez, o Obaca, mora a 90 quilômetros da capital, em Luján, onde vários de seus amigos são negros. Seus antepassados, ele disse, eram brasileiros de Minas Gerais e da Bahia, mas Moreno não tem contato com os parentes do lado de cá da fronteira. Circula na família a história de que teriam sido escravos enviados à frente de batalha na Guerra do Paraguai. Conseguiram fugir e formaram uma pequena colônia na região de Santa Fé.
Moreno nunca participou do movimento identitário negro, segundo ele um fenômeno recente no país – o Dia Nacional do Afro-Argentino, por exemplo, só saiu do papel em 2013. “De qualquer modo, é um movimento que está engatinhando. Certamente ninguém nem sonha com um presidente negro.” Para seus compatriotas, um candidato de origem não europeia parece ser algo tão absurdo quanto as propostas de Obaca – e motivo para uma piada de gosto duvidoso. “Certamente não teria a mesma graça no Brasil, onde é plausível que em alguns anos um negro chegue à Presidência da República”, especula o ator.