ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O cassador de medalhas
Uma luta pelo recall de comendas
Clara Becker | Edição 111, Dezembro 2015
Douglas Fabiano de Melo dava expediente na Secretaria de Educação de Campinas, onde é servidor concursado, quando recebeu um telefonema do Tribunal Superior do Trabalho. Segundo a secretária da Corte, a correspondência que ele tanto aguardava já deveria ter chegado a sua residência. O rapaz passou o resto do dia ansioso. Já em casa, abriu o envelope branco confiante de que seu pedido seria atendido. Mas, ao ler o ofício, a alegria sumiu do rosto do jovem de 29 anos e aparência impúbere.
Nada poderia ser feito, informava o Tribunal, “em atenção aos pedidos 164 154 e 169 417 formulados por Vossa Senhoria, referentes à eventual cassação da comenda da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho aos senhores Camilo Cola e Luiz Estevão de Oliveira Neto”.
Há um ano, imbuído de espírito cívico, Melo vem tentando fazer com que instituições públicas revoguem as medalhas de honra ao mérito conferidas a quem estaria, segundo ele, longe de merecer o reconhecimento. Somam-se mais de uma centena de pedidos desse tipo, de sua autoria, aos principais órgãos estaduais, federais e municipais do país. “Essas medalhas foram compradas com dinheiro do contribuinte e em nome do povo. Algumas delas são confeccionadas em ouro, e muitas condecoram bandidos”, explicou o servidor público, um rapaz magro, de fala rápida e cabelos espetados domados com gel. Seria esse, argumenta Melo, o caso da comenda da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho concedida pelo TST ao ex-deputado federal Camilo Cola e ao senador cassado Luiz Estevão Oliveira Neto.
A distinção deveria ser reservada a personalidades e instituições que se destacaram em suas atividades no ramo do direito trabalhista, prestaram relevantes serviços à Justiça do Trabalho ou em atividades socioculturais. Ironia do destino, Cola possui dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal que apuram justamente seu envolvimento com trabalho escravo, e uma condenação no Tribunal Regional do Trabalho do Espírito Santo por submeter 22 funcionários a condições degradantes de labuta. Os trabalhadores moravam em alojamentos em péssimo estado de conservação, sem camas, com esgoto a céu aberto e instalações elétricas sem proteção.
Como o caso de Luiz Estevão teve repercussão nacional, Melo estava confiante de que seria fácil excluí-lo do rol dos prestigiados pelo TST. O ex-senador foi condenado a três anos e seis meses de prisão por desviar 1 bilhão de reais na obra do prédio do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, junto com o juiz Nicolau dos Santos. Nem assim. O servidor campineiro se disse perplexo com a decisão do órgão, que argumentava não haver nenhum fato desabonador do “agraciado” à época em que se decidiu conceder-lhe a comenda.
“Como um homem preso pode estar com presunção de inocência, eu não entendo”, queixou-se. Em ambos os casos, entrou com recurso.
No que depender dele, vão-se também as medalhas atribuídas pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) aos ex-parlamentares José Genoíno (Colar do Mérito 2000), Demóstenes Torres (Grão-Cruz 2004 Quadro Especial), João Paulo Cunha (Grão-Colar 2003 Quadro Especial) e José Sarney (Grão-Colar Quadro Especial 2003), dentre outros. “Não é perseguição pessoal. Só fui vendo quem não está em condições de recebê-las”, justificou-se. Em suas representações, Melo solicita que o valor despendido nas honrarias seja restituído ao erário. A comenda de grau Grão-Cruz, concedida bienalmente pelo MPDFT, por exemplo, custa 90 reais. E ainda há o colar de fita (45,45 reais), o botão (outros 37,50) e o estojo (60 reais). O MPDFT informou à piauí que os pedidos ainda estão sendo analisados.
A
batalha de Melo tem sido solitária e desgastante. Nos últimos tempos, o jovem tem passado os fins de semana escrevendo recursos, enfurnado no quarto com espaço apenas para o computador e uma cama de solteiro, no apartamento onde mora com a mãe. “Às vezes penso em parar, mas quando chega uma carta de resposta eu não consigo e recorro. Preciso chegar sempre até a última instância”, disse, admitindo sua obsessão.
Por ora, os requerimentos de Melo provocaram o recall de uma única comenda. A deputada federal pelo PTB do Amapá, Jozi Araújo, perdeu a Medalha Amikeco, uma homenagem da International Police Association, a IPA, concedida a ela em 2013. Araújo foi condenada por desvio de dinheiro de uma cooperativa de veículos que prestava serviço para a Companhia de Eletricidade de seu estado. Instada pelo servidor, a IPA decidiu que a agraciada havia deixado de fazer jus ao título.
“Não tive dúvidas em tomar essa medida assim que verifiquei as informações. Para todos os efeitos, ela não está mais condecorada”, disse o presidente da IPA, Jarim Lopes Roseira. Ele parabeniza Melo e sua tentativa de moralizar o país. No gabinete da deputada, contudo, não chegou nenhum documento, e a medalha permanece com ela. A honraria também continua a constar no currículo da parlamentar, no site do Congresso. Um pedido de providência para que a informação seja corrigida foi enviado para a Ouvidoria do Congresso. “Minha mãe já está começando a ficar preocupada com a minha segurança. Sempre coloco meus dados completos para apresentar as denúncias”, disse.
“Sei que desde o Brasil Império as medalhas servem a adulações”, admitiu, realista. “Dom Pedro I já as usava com interesses políticos, e não pretendo mudar a cultura do país.” Ainda assim, algum avanço pode ser conquistado, insistiu. Mesmo que as medalhas sejam mantidas, Melo acredita que pelo menos terá levado a algum tipo de reflexão às instituições que as concederam. “Vão pensar duas vezes antes de agraciar quem não merece”, disse.
Há uma regra, contudo, de que ele não abre mão. Um princípio simples que toda instituição deveria seguir, facilitando muito o seu trabalho. Políticos, defende Melo, não deveriam receber qualquer espécie de comenda. “Eles andam por lugares sombrios e têm futuro incerto. É mais prudente não agraciá-los e pronto”, argumentou.