ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O Cine Íris resiste
Pornografia como negócio de família
Paula Scarpin | Edição 108, Setembro 2015
Um empregado cochilava numa das frisas do Cine-Theatro Íris, logo cedo, numa manhã do início de agosto. Não contava que a proprietária do mais antigo cinema ainda em funcionamento no Brasil, localizado no Centro do Rio de Janeiro, iria, justo naquele dia, fazer uma visita. Dona Neyde Brilho Cruz, uma octogenária de cabelos branquinhos, estava no palco, diante da tela do cinema, quando apontou a bengala na direção do dorminhoco. Lembrando tempos mais prósperos, dona Neyde anunciou num tom de voz firme: “Rui Barbosa tinha uma frisa ali.” O segurança acordou num sobressalto.
Como se nada tivesse acontecido, a proprietária do Cine Íris deu prosseguimento à visita guiada. Percorria com agilidade e destreza incomuns para a idade cada canto do estabelecimento, e escalou com facilidade quatro andares de escadas – a bengala parecia lhe servir apenas como acessório de vestuário. Queria mostrar as galerias – dois balcões suspensos, que junto com a plateia principal oferecem assento a mais de 400 espectadores –, o salão de entrada e o terraço. Antes das dez da manhã, já não restava mais nada para ver.
Terminou o tour exatamente quando o sobrinho abria a bilheteria. Pouco antes, ele escrevera a mão, num pequeno quadro-negro, os títulos dos filmes em cartaz naquele dia: Juventude Indecente, Gostosas e Poderosas e Mundo Anal. O ingresso – 16 reais – funciona como passe diário e também dá direito aos shows de strip-tease, nos intervalos. Não era por pudor que dona Neyde não queria circular pelo cinema depois da chegada do público. Afinal, foi na sua gestão, nos anos 80, que os herdeiros decidiram que a única forma de manter o negócio no azul era apelar para uma programação mais explícita. “O problema é que, depois que o cinema abre, a escuridão é total. Na sala não se vê um palmo adiante do nariz”, ela disse.
O número 49 da rua da Carioca conserva até hoje a escadaria de ferro, o piso de pastilhas e os azulejos adornados com ramos de íris escolhidos por seu fundador – o avô de dona Neyde, João Cruz Júnior – em 1909. Como toda a rua da Carioca, o edifício pertencia à Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, e o sr. Cruz conseguiu um contrato de comodato, renovável a cada dez anos, para explorá-lo. Inaugurado como “Cinematographo Soberano”, exibia filmes mudos acompanhados de uma orquestra ao vivo. Depois de uma breve reforma, a sala foi reinaugurada em 1918 com o nome que tem até hoje.
Enquanto Juventude Indecente começava a rodar, dona Neyde tomava um suco de melancia na padaria ao lado. Olhando melancolicamente através do vidro, atribuiu a decadência ao redor à transferência da capital para Brasília: “O Centro da cidade deixou de ser importante, foi ficando perigoso.” Desiludido, seu avô arrendou o cinema para o Grupo Severiano Ribeiro. O contrato só foi desfeito depois da morte do fundador, quando os filhos retomaram o negócio. O tio de dona Neyde, Jerônimo Cruz, tentou reanimar a programação com seriados, como Rin Tin Tin, e filmes de kung fu. Por algum tempo, a estratégia deu certo.
Dona Neyde demorou a gerir o cinema, mas não foi por falta de interesse. Casou-se cedo, e o marido não permitia que ela trabalhasse. Mais tarde, divorciada, percebeu que o negócio familiar ia mal das pernas e propôs nova mudança – uma mudança drástica – na grade: “Alguns cinemas do Centro estavam começando a exibir pornô, e eu achei que era a única alternativa à falência”, disse. Reuniu uma assembleia familiar, e garante que não houve opositores: “Era uma questão meramente financeira, ninguém queria deixar de ganhar dinheiro com o cinema.”
Dali em diante, passou a bater ponto na gerência do estabelecimento, uma salinha de madeira no topo da escadaria, e viu a clientela mudar completamente. “Era um público predominantemente masculino, com muitos homens que só eram gays da porta para dentro”, contou. Ela disse ainda que o cinema virou uma espécie de território de experimentação crossdresser: alguns frequentadores traziam roupas femininas na bolsa e se travestiam ali: “Já subi muito fecho-éclair de travesti na minha sala.” Seu filho, Walter Repsold, então coordenador de eventos na Rede Globo, deu a ideia de aproveitar o palco e apresentar shows no intervalo, com números de mágica e strip-tease.
Quem não gostou da ideia foi o frei alemão Eckart Höfling, superintendente da Venerável Ordem Terceira. Incomodado com a clientela atraída pela mudança na programação, entrou com uma ação de retomada do imóvel, alegando que a família Cruz estava extrapolando as cláusulas de uso. Dona Neyde mobilizou os lojistas vizinhos, e o juiz deu ganho de causa para o Cine Íris. Obrigada a arcar com as custas do processo, a Ordem demonstrou interesse em negociar a venda do imóvel para a família – que o adquiriu por 400 mil reais, em 1997.
Quinze anos mais tarde, quando os religiosos venderam a rua da Carioca para o Opportunity, o cinema foi um dos únicos imóveis que ficaram a salvo dos aluguéis exorbitantes impostos pelo banco. Dona Neyde afirma que o Íris continua sendo seu ganha-pão. “Mas só porque não tenho grandes ambições.”
A proprietária admite que o cinema, com suas poltronas já com o forro rasgado, deveria passar por uma boa reforma. “Mas, para arrumar, tem que fechar durante um tempo, e, se fecha, não gera receita”, explicou. Os parentes alimentam o desejo de arrendar o imóvel para algum empreendedor que se disponha a reformá-lo e a pagar aluguel para a família – em troca, claro, do direito de explorar comercialmente o local. “Mas com essa crise? Só se fosse um gringo rico. Por enquanto, ficam as peladonas”, suspirou.
Na tarde daquela quinta-feira de agosto, o palco que dona Neyde ocupou pela manhã era usado por uma garota que se despia e dançava tediosamente ao som de uma canção pop, melosa e romântica. Os dezoito cavalheiros da plateia, na faixa dos 50 aos 70 anos, não pareciam mais animados do que ela.
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