CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
O Círio e a saudade
Devotos voltam à procissão e lembram mortos da Covid
Tiago Coelho | Edição 194, Novembro 2022
A paraense Angela Maria Bentes Vieira adotou um menino assim que ele nasceu, pois a mãe biológica não tinha condições financeiras para criá-lo. Vieira batizou seu filho único com o nome de Igor Artur Bentes Vieira e o educou para ser um devoto de Nazinha, como os paraenses chamam Nossa Senhora de Nazaré. Todo mês de outubro, o menino dava as mãos à mãe e à avó para percorrer em Belém quase 4 km de ruas lotadas de fiéis, acompanhando o Círio de Nazaré, a maior manifestação católica do Brasil.
Quando Igor tinha 5 anos, a mãe o levantou no colo, no meio da multidão, junto à longa corda de sisal que puxa a berlinda de vidro com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré. No momento em que a imagem passou, ela disse ao filho: “Erga as mãos e faça um pedido.” Igor ficou um tanto atordoado. Não sabia o que pedir. “Peça qualquer coisa que você queira muito”, insistiu Angela. Ele então fechou os olhos, ergueu as mãozinhas na direção da santa e rezou pela saúde da mãe. “Pedi que eu pudesse ficar com ela junto de mim por muito tempo”, lembra Igor, hoje com 26 anos.
Em 2017, ele foi agradecer à padroeira por ter passado no vestibular para o curso de computação da Universidade Federal Rural da Amazônia. Pela primeira vez, participou da procissão puxando uma das cordas atadas à berlinda. A tradição remonta a um episódio de 1885: uma enchente na Baía do Guajará alagou a orla de Belém e atolou o carro de boi que carregava a imagem da santa. Foi necessário o uso de cordas para arrancar o veículo da lama. Hoje, a procissão inclui várias cordas de cerca de 400 metros de extensão e 50 cm de diâmetro. Puxá-las é um ato de devoção – e sacrifício. “É muito cansativo. Só pela fé a gente consegue”, diz o jovem.
No final de 2019, sua mãe começou a se sentir cansada e indisposta. O coração acelerava com frequência. No início de 2020, ela precisou ir várias vezes a hospitais para se submeter a exames e descobrir exatamente o que tinha. Os médicos aventaram a possibilidade de colocar um marca-passo. Em março, Vieira se queixou de falta de ar. Foi internada, intubada e morreu de uma parada cardiorrespiratória no dia 21 daquele mês.
Pouco depois, saiu o laudo: ela fora vítima da Covid, que pegou em alguma de suas idas constantes a hospitais. Seu filho entrou em depressão. “Minha fé ficou abalada”, diz. Por causa da pandemia, romarias foram suspensas em 2020. Em outubro, época da festa do Círio de Nazaré, ele estava confinado em casa, com a avó. “Foi um tempo de lembrança e muito choro”, conta.
Depois de uma vida inteira comemorando o Círio de Nazaré com toda a família, a funcionária pública Márcia Nascimento, de 45 anos, também passou o dia da padroeira de 2020 isolada em casa, na companhia dos pais idosos. Foi triste para eles não ter mesa cheia de parentes em torno de travessas com pato no tucupi com jambu, maniçoba e doce de cupuaçu. “A pandemia rompeu um ritual importante para nossa família”, diz Nascimento.
No fim daquele ano, os pais de Nascimento apresentaram sintomas de Covid e foram internados. A mãe ainda estava na UTI quando seu marido foi intubado e morreu no dia 11 de janeiro. “Minha mãe sofreu uma parada cardíaca, sobreviveu, mas teve danos neurológicos graves”, conta Nascimento. A funcionária pediu licença do trabalho e ficou ao lado da mãe por 21 dias, até a morte dela, em 1º de março. “Eu assistia às novelas de mãos dadas com meus pais. Toda tarde, tomávamos café com leite e pão juntos. Era uma ligação muito forte”, recorda. Para superar o luto, ela teve de se afastar do trabalho por um tempo. “A dor era muito grande. Ainda é.”
Mesmo com a vacinação em curso, em 2021 as comemorações do Círio aconteceram sem aglomerações. Ainda deprimido pela morte da mãe, Igor Vieira encontrou consolo em uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré mostrada na tevê. “O arcebispo de Belém sobrevoou a cidade de helicóptero com a imagem da santa. Olhei para o céu, agradeci pela vida e pedi conforto para mim e as pessoas que perderam parentes para a Covid. Fiquei esperançoso de que aquele momento ia passar.”
No dia 9 de outubro deste ano, a procissão do Círio de Nazaré voltou a juntar uma multidão nas ruas de Belém – 2,5 milhões de fiéis. Igor Vieira vestiu a mesma camisa que a mãe usou no Círio de 2019, estampada com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré e o escudo do Paysandu Sport Club. No meio da procissão, ele chorou compulsivamente. “Quando Nossa Senhora passou na minha frente, fechei os olhos e agradeci pela vida”, diz. “Pedi paz, saúde e discernimento para todos nós. Ainda tem muitos familiares sofrendo por terem perdido parentes para a Covid.” Ao olhar à sua volta, viu muita gente se abraçando e chorando.
Márcia Nascimento acordou bem cedo. Sem condições físicas para acompanhar o cortejo, foi para a casa do irmão, que mora próximo de onde a procissão acaba, e ficou à espera da padroeira. Levou para a rua uma fotografia dos pais. “Quando a santa passou, pedi que ela cuidasse deles. Pedi também para que eu conseguisse superar aquela dor”, diz. “E pedi perdão por sentir muita raiva com tudo que estava acontecendo no Brasil.” Ela ainda se sente revoltada. “Não consigo me esquecer de Bolsonaro imitando pessoas com falta de ar por causa da Covid. Na UTI, vi as lágrimas de minha mãe por causa das dores que sentia.”
No dia 8 de outubro, sábado, Jair Bolsonaro esteve no Círio fazendo campanha. Em uma postagem nas redes sociais, escreveu o nome da comemoração religiosa com “s”: “Sírio de Nazaré, 2022.” “É normal políticos na procissão, pois a Virgem de Nazaré tem honras de chefe de Estado. Mas Bolsonaro tentou transformar a procissão em ato de campanha. Não conseguiu”, diz Nascimento. “O Círio é muito sagrado para nossa gente. Nosso foco estava em Nossa Senhora.”