CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
O clube não era na esquina
Histórias e lendas de um lugar mítico da música brasileira
Silvana Arantes | Edição 197, Fevereiro 2023
Primeiro, a história. No final dos anos 1960, uma turma de amigos costumava se encontrar à noite em Belo Horizonte para conversar, tocar violão e cantar. O resultado da amizade foi um disco luminoso, lançado em 1972, com o nome de Clube da Esquina. As suas canções abriram um novo horizonte à MPB, sintetizando muitas aspirações, poucas certezas e várias angústias de uma juventude que vivia sob a ditadura militar. Já é hora do corpo vencer a manhã/Outro dia já vem e a vida se cansa na esquina/Fugindo, fugindo pra outro lugar, pra outro lugar, dizia a canção chamada, justamente, Clube da Esquina.
Depois, o mito. No bairro Santa Tereza, a esquina formada pelas ruas Divinópolis e Paraisópolis se tornou um dos pontos históricos de Belo Horizonte. Até uma placa foi afixada na frente da casa que se alonga pelas duas vias, para informar que ali nasceu o Clube da Esquina de Milton Nascimento, Fernando Brant, Toninho Horta, Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini e dos irmãos Márcio e Lô Borges.
Só que essa versão oficial “não corresponde à realidade fidedigna dos fatos”, revela o cantor e compositor Lô Borges. Imaginar que os músicos do Clube da Esquina compuseram naquele trecho de ruas algumas de suas canções mais conhecidas foi uma “licença poética à esquina”, diz ele, contando que não se amofina com a leve distorção da realidade e que “está liberado pensar o que quiser”. E arremata, parafraseando uma frase do filme O Homem que Matou o Facínora, de John Ford: “Quando a lenda se torna muito forte, imprime-se a lenda.”
Os Borges se mudaram para a Rua Divinópolis em 1952, ano em que Lô nasceu. Em 1963, um problema na fundação da casa obrigou a família a se mudar para o Edifício Levy, no Centro de Belo Horizonte, enquanto se fazia a reforma. Ali, Márcio e Lô fizeram amizade com um vizinho – Milton Nascimento, o Bituca. Quando a família voltou a Santa Tereza, Lô estava com 16 anos e logo se enturmou com o pessoal do bairro. Os irmãos, segundo Márcio, a essa altura já estavam “superamigos do Bituca, que continuou frequentando nossa casa, mesmo após a mudança”.
“Militante da esquina”, como se qualifica, Lô conta que o local era frequentado pelo pessoal do seu quarteirão, “os garotos da pelada”. À noite, eles se encontravam na calçada da esquina para tocar violão e tomar umas biritas, que eles mesmos levavam. “Márcio é seis anos mais velho do que eu e não tinha tempo de ficar ali. Milton Nascimento, Toninho Horta, Beto Guedes e Flávio Venturini moravam em outros bairros. A música Clube da Esquina se refere à minha experiência, à minha história pessoal”, acrescenta. No ponto de encontro, Lô ganhou fama de craque em tocar Beatles e Chico Buarque.
Os irmãos Borges lembram que Milton, Horta, Nelson Angelo e Naná Vasconcelos às vezes paravam na esquina para ouvir o que os meninos estavam cantando. Corrigiam harmonias no violão e ensinavam acordes novos. Naná chegou a tomar emprestadas panelas na cozinha de Maria Fragoso Borges, a dona Maricota, matriarca da família, para promover uma sessão percussiva com a garotada. Mas essas eram atividades eventuais: não foi na esquina que se gestou o Clube da Esquina. “Onde a gente se reunia de fato era num bar do Centro chamado Saloon”, conta Lô. Ou na casa dos Borges ou na de Fernando Brant, de acordo com Márcio. O Saloon, que não existe mais, ficava na Rua Rio de Janeiro, 1027, em frente ao antigo Cine Palladium (hoje Sesc Palladium).
Como é difícil contrariar uma lenda popular, a esquina deve permanecer um dos atrativos turísticos de Belo Horizonte. “O povo bate na campainha o dia inteiro, perguntando se pode entrar”, conta a advogada Daniela Arruda, que até o fim do ano passado morava na Rua Paraisópolis, 770 – exatamente onde essa via encontra a Rua Divinópolis. Ela deixou a casa da esquina quando se separou do médico Roberto Casarões, que ainda mora lá, agora sozinho.
Casarões conheceu a esquina pouco antes da época em que Lô Borges passou a frequentá-la. Em 1966, ele se mudou de Conselheiro Lafaiete para Belo Horizonte, a fim de cursar medicina na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi morar no número 770. A casa pertencia à sua tia Maria de Freitas, professora, que a comprara e reformara nos anos 1950 – a construção original deve ser da década anterior.
O estudante de medicina “arranhava um violão”, como ele mesmo diz. Acompanhado de dois colegas de faculdade – um clarinetista e outro violonista –, Casarões costumava sair à noite para fazer serenata na porta dos pensionatos “cheios de meninas bonitas”. Gatinha Manhosa, de Roberto e Erasmo Carlos, estava entre as canções mais populares do repertório do trio. Na saída para essas noitadas musicais, ele via a turma de garotos que se reunia para conversar e cantar na sua esquina. “Eles tomavam uma cachacinha comprada no bar mais próximo e comiam linguiça assada em fogareiro”, lembra o médico.
Desde a origem, o bairro de Santa Tereza tem a vocação de abrigar os mineiros que vêm do interior para Belo Horizonte. “Do ponto de vista histórico, a região foi ocupada inicialmente pelos imigrantes que trabalharam na construção da nova capital e não tinham condições financeiras para se estabelecer dentro da Avenida do Contorno, na parte planejada da cidade”, diz Flávio Carsalade, professor da Escola de Arquitetura da UFMG.
Como é comum nas capitais brasileiras, a especulação imobiliária alterou muito a face do bairro, mas a casa de Maria de Freitas resistiu, com mudanças: em 1974 a proprietária construiu um segundo pavimento para abrigar uma sobrinha recém-casada. “Por mais que as construções nos pareçam ‘imóveis’, na verdade elas apresentam uma mobilidade muito grande”, diz Carsalade. “Elas se adaptam ao crescimento não planejado das famílias e, ao longo do tempo, às diferentes necessidades que vão surgindo.”
A casa da esquina foi se adaptando às idas e vindas de seus diferentes ocupantes. Casarões deixou-a logo depois de se formar, em 1972, quando voltou à cidade natal. Sete anos depois, uma tragédia pessoal – a morte de sua primeira mulher em um acidente de carro – deixou-o desgostoso com Conselheiro Lafaiete. Refez a vida como geriatra em Belo Horizonte e se casou novamente. Mas só voltaria ao bairro de Santa Tereza no início dos anos 1990, quando viveu por alguns anos com a tia na casa da esquina lendária. Mudou-se para um apartamento em 1996.
Ainda em vida, Maria de Freitas passou a casa para uma das tias de Casarões e para a mãe dele, que transferiu sua parte para o filho. Depois, ele comprou a parte da tia. Em 2008, divorciado e pai de três filhos, Casarões começou a se relacionar com sua nova companheira, a advogada Daniela Arruda. “Em 2011, reformamos a casa e nos mudamos para lá. Pintamos de azul”, ela recorda.
Agora que a união chegou ao fim, Casarões não sabe ao certo se permanecerá no encontro das ruas Paraisópolis e Divinópolis. “É uma boa pergunta. Não sei. Estou no limbo”, diz ele, pausadamente, com a experiência de quem aprendeu que talvez a vida lhe faça dobrar outra esquina. Ou fugir para outro lugar, para outro lugar.
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