William Alexander Morgan é aplaudido por Fidel Castro em Havana em 1959. Um enigma para o FBI, a CIA e os rebeldes, Morgan disse que se juntou à revolução porque "a coisa mais importante para homens livres é proteger a liberdade de outros homens" FOTO: RAMIRO LORENZO
O comandante ianque
Uma história de paixão, revolução e traição
David Grann | Edição 72, Setembro 2012
Por um momento, ele sumiu na noite de Havana. Ficou invisível, exatamente como era antes de ir para Cuba, durante a revolução. Uma explosão de holofotes o iluminou: William Alexander Morgan, o grande comandante ianque. Estava parado, de costas para a parede crivada de balas, no fosso vazio que circundava La Cabaña – um forte de pedra do século XVIII, no alto de um penhasco com vista para o porto de Havana, agora transformado em prisão. Manchas de sangue ainda secavam no chão de terra onde seu amigo havia sido baleado instantes antes. Morgan, com 32 anos, piscou para as luzes. Estava diante de um pelotão de fuzilamento.
Os homens armados encararam o sujeito a quem tinham ordem de matar. Com quase 1,80 metro, Morgan tinha braços e pernas fortes, de um sobrevivente da selva. Com maxilar saliente, nariz afilado e cabelos loiros em desalinho, tinha o olhar desafiador dos personagens de filmes de aventura. Suas fotos haviam sido estampadas em jornais e revistas do mundo inteiro. As mais sedutoras – feitas enquanto combatia nas montanhas ao lado de Fidel Castro e Che Guevara – mostravam Morgan com a barba desgrenhada, segurando uma submetralhadora Thompson. Mesmo sem barba e vestindo roupas de prisioneiro, seus executores o reconheceram como o misterioso Americano, outrora saudado como herói da revolução.
A cena se deu no dia 11 de março de 1961, dois anos depois de Morgan ter ajudado a derrubar o ditador Fulgencio Batista, levando Fidel ao poder. A revolução já havia se dividido e seus líderes se devoravam uns aos outros. Ainda assim, ver Morgan diante de um pelotão de fuzilamento era um choque. Em 1957, quando a maioria das pessoas acreditava que Fidel lutava por democracia, Morgan viajou da Flórida para Cuba e se enfurnou na selva, juntando-se a um grupo de guerrilheiros. Alguém o definiu como uma espécie de “Holden Caulfield [1] com uma metralhadora na mão”. Era o único americano do exército rebelde e o único estrangeiro – além de Che Guevara, que era argentino – a alcançar o mais alto posto daquela organização: o de comandante.
Depois da revolução, com a ilha posta no centro das batalhas da Guerra Fria, o papel de Morgan despertou fascínio ainda maior. Um americano que conheceu Morgan disse que ele era espião de Fidel, e a revista Time o chamou de “o sagaz agente duplo americano de Castro”.
Agora Morgan estava sendo acusado de conspirar para derrubar Fidel. O governo cubano alegava que durante todo esse tempo ele estava trabalhando para a espionagem dos Estados Unidos – que era, na verdade, um agente triplo. Morgan negou as acusações, mas até mesmo alguns de seus amigos se perguntavam quem ele realmente era e por que tinha ido para Cuba.
Antes de ser levado para fora de La Cabaña, um preso lhe perguntou se tinha algo que poderia fazer pelo companheiro. Morgan respondeu: “Se você sair daqui vivo, o que eu duvido, tente contar minha história.” Naquele momento, ele se deu conta de que algo além de sua vida estava em jogo: o regime cubano distorceria seu papel na revolução – isso se não o banisse do registro público –, e o governo americano esconderia documentos sobre ele em arquivos secretos ou, no mínimo, “limparia” esses documentos, ocultando passagens inteiras. Ele seria apagado – primeiro do presente, depois do passado.
O chefe do pelotão de fuzilamento gritou: “Atenção!” Os soldados ergueram seus rifles belgas. Morgan temia por sua mulher, Olga – que ele havia conhecido nas montanhas – e por suas duas filhas pequenas. Até então, ele sempre tinha conseguido dobrar as forças da história, e fez um último apelo para falar com Fidel. Morgan acreditava que o homem que ele um dia chamara de “fiel amigo” jamais o mataria. As armas dos carrascos, no entanto, já estavam engatilhadas.
O PRIMEIRO TRUQUE
Morgan chegou a Havana em dezembro de 1957. Vendida como o “playground das Américas”, a cidade oferecia uma tentação atrás da outra: a boate Sans Souci, onde dançarinas requebravam em palcos ao ar livre ao som do chá-chá-chá; o hotel Capri, com suas máquinas caça-níquel cuspindo dólares; e o Tropicana, onde convidados como Elizabeth Taylor e Marlon Brando assistiam a espetáculos extravagantes protagonizados pelas Diosas de Carne.
Na época um sujeito meio gordo de 29 anos, Morgan tentava parecer apenas mais um em busca de diversão. Vestia um terno branco de 250 dólares, uma camisa branca e sapatos novos. “Eu parecia um turista cheio da grana”, disse ele depois.
Apesar do disfarce, relatos de um amigo próximo dão conta de que ele evitava os encantos da vida noturna da cidade. Numa rua de Havana Velha, Morgan parou em uma cabine telefônica para encontrar seu contato, um cubano chamado Roger Rodríguez. Estudante de cabelos negros e farto bigode, Rodríguez pertencia a uma célula revolucionária e já tinha sido baleado durante uma manifestação política.
A maioria dos turistas se mantinha alheia aos problemas de Cuba, onde era frequente viver sem água potável e eletricidade. Em Nosso Homem em Havana, de 1958, Graham Greene admitiu ao recordar sua experiência na ilha: “Aproveitei a atmosfera permissiva da cidade de Batista, mas nunca fiquei tempo suficiente para tomar conhecimento de sua triste realidade, das prisões arbitrárias e das torturas.” Morgan, no entanto, estava bem informado a respeito de Batista, que tomara o poder com um golpe, em 1952. Sabia, por exemplo, do quanto o ditador gostava de ficar no palácio do governo, se empanturrando de comida e vendo filmes de terror, e de como torturava e matava dissidentes, cujos corpos às vezes eram despejados em terrenos baldios, com os olhos arrancados e os testículos esmagados recheando suas bocas.
Os dois continuaram caminhando e começaram uma conversa reservada. Morgan, que raramente estava sem um cigarro e vivia envolto em fumaça, não falava espanhol. Rodríguez falava um inglês precário. Os dois haviam se conhecido em Miami, onde se tornaram amigos. Morgan achou que poderia confiar nele, por isso contou seus planos de se enfiar na Sierra Maestra, um conjunto de montanhas na remota costa sudeste da ilha, onde revolucionários pegaram em armas contra o regime. Ele pretendia se juntar aos rebeldes comandados por Fidel Castro.
O nome do inimigo mortal de Batista tinha a aura do proibido. Em 25 de novembro de 1956, Fidel, um advogado de 30 anos, filho bastardo de um grande proprietário de terras, empreendera uma ambiciosa invasão à ilha, partindo do México com outros 81 guerrilheiros, incluindo Che Guevara.
Depois que seu velho barco encalhou, Castro nadou com seus homens até um pântano, atravessando um emaranhado de vegetação. O Exército de Batista logo emboscou o grupo, e Che foi baleado no pescoço. Apenas doze rebeldes sobreviveram, incluindo Che, ferido, e Raúl, irmão mais novo de Fidel. Exaustos e mortos de sede – um deles bebeu a própria urina –, eles fugiram para as selvas da Sierra Maestra.
Morgan contou a Rodríguez que vinha acompanhando o progresso dos insurgentes. Depois que Batista anunciou por engano que Castro havia morrido na emboscada, Fidel autorizara que Herbert Matthews, correspondente do New York Times, fosse escoltado até seu acampamento na Sierra Maestra. Amigo de Ernest Hemingway, o repórter estava fascinado pelo líder rebelde de barba selvagem e charuto preso à boca. Matthews concluiu que Fidel tinha “fortes ideais de liberdade, democracia e justiça social, e convicção da necessidade de se restaurar a Constituição do país”. Em 24 de fevereiro de 1957, a matéria foi estampada na primeira página do jornal, fortalecendo a aura romântica da rebelião. [2] Matthews depois colocou as coisas do seguinte modo: “Um sino de esperança dobra nas selvas da Sierra Maestra.”
Mesmo assim, por que diabos um americano estaria disposto a morrer pela Revolução Cubana? Pressionado por Rodríguez, Morgan respondeu que queria estar ao mesmo tempo do lado do bem e na mira do perigo, mas queria também outra coisa: vingança. Ele disse que um de seus amigos americanos tinha sido assassinado pelos soldados de Batista durante uma viagem a Havana. Algum tempo depois, contou mais detalhes do caso para outras pessoas em Cuba: o tal amigo se chamava Jack Turner, foi pego contrabandeando armas para os rebeldes e acabou sendo “torturado e atirado aos tubarões por Batista”.
Morgan contou a Rodríguez que tinha feito contato com um outro revolucionário que tentaria arrumar um jeito de levá-lo às montanhas. Rodríguez levou um choque: o suposto rebelde era, na verdade, agente da polícia secreta de Batista. O cubano alertou Morgan de que ele havia caído numa armadilha.
Temendo pela vida do americano, Rodríguez ofereceu ajuda. Não poderia levá-lo até Sierra Maestra, mas o deixaria no acampamento de um grupo rebelde nas montanhas de Escambray, que cortavam a parte central do país. Esses guerrilheiros estavam abrindo uma nova frente de batalha e Fidel lhes dera as boas-vindas em nome da “causa comum”.
Morgan partiu com Rodríguez e um motorista na viagem de 350 quilômetros, mas, como o jornalista americano Aran Shetterly conta em sua biografia The Americano [inédita no Brasil], o carro logo se deparou com um bloqueio militar. Um soldado enfiou a cabeça pela janela e encarou Morgan, vestido com um terno reluzente. Ele sabia o que aconteceria caso fosse pego – como dizia Che, “em uma revolução ou você ganha ou você morre”. Por isso, já tinha pensado num álibi: era um empresário americano atrás de plantações de café. Depois de ouvir a história, o soldado deixou que partissem e os três conspiradores tocaram para Escambray.
Morgan descansou num esconderijo e em seguida foi levado para uma montanha perto da cidade de Banao. Um camponês os guiou por entre cipós e folhas de bananeira até chegarem a uma clareira remota. O camponês fez um som de pássaro que ecoou pela floresta e foi correspondido por um assobio distante. Um sentinela surgiu e os levou a um acampamento cheio de baldes, redes e uns poucos fuzis enferrujados. Não havia ali mais de trinta homens e a maioria deles parecia ter acabado de sair do ensino médio.
Morgan foi recebido com desconfiança. Max Lesnik, um jornalista cubano que fazia a comunicação da organização, logo reuniu o grupo e se lembra de ter perguntado se Morgan era “um agente da CIA”.
Desde a Guerra Hispano-Americana [em 1898], os Estados Unidos haviam se intrometido inúmeras vezes em assuntos cubanos. O presidente Dwight D. Eisenhower apoiava Batista incondicionalmente. Ele espalhara por toda a ilha agentes da CIA, que tentavam se infiltrar entre os rebeldes. Alguns teriam se passado por repórteres.
Os rebeldes precisavam também se assegurar de que Morgan não era um agente da KGB nem um mercenário a serviço da inteligência militar de Batista. Fidel havia descoberto que um camponês integrante de suas fileiras era informante do Exército. Quando foi desmascarado, o sujeito caiu de joelhos, implorando para que os revolucionários cuidassem de seus filhos. Recebeu um tiro na cabeça.
Morgan foi levado ao comandante do grupo, Eloy Gutiérrez Menoyo, sujeito mirrado de 23 anos e fala mansa. Tinha um rosto comprido e bonito, protegido por óculos escuros e uma barba que o deixava com feição de fugitivo. Menoyo emigrou da Espanha para Cuba ainda menino. Seu irmão mais velho morreu aos 16 anos, lutando contra os fascistas durante a Guerra Civil Espanhola. O outro irmão, que também imigrou para Cuba, foi morto a tiros quando liderava um ataque fracassado ao palácio de Batista, em 1957. Menoyo identificou o corpo em um necrotério de Havana, antes de ir para as montanhas. “Eu queria continuar a luta em nome do meu irmão”, disse.
Valendo-se de um tradutor, Morgan contou a Menoyo que queria vingar a morte de um amigo. Disse que tinha servido no Exército dos Estados Unidos, que era bom em artes marciais e combate corpo a corpo, e que poderia treinar os rebeldes inexperientes nas táticas de guerrilha. Para demonstrar seu talento, tomou uma faca emprestada e a lançou em uma árvore a pelo menos 20 metros de distância. A mira foi muito certeira, a ponto de alguns perderem a fala.
Naquela tarde, os rebeldes discutiram se Morgan poderia ou não ficar no acampamento. Ele parecia simpático – “como um cubano”, diz Lesnik. Mas muitos guerrilheiros temiam que fosse um infiltrado e queriam mandá-lo de volta para Havana. O chefe de inteligência do grupo, Roger Redondo, lembra que fizeram o possível para que fosse embora. Puseram-no para marchar sem parar, subindo e descendo as montanhas. Morgan era tão gordo que só podia ser da CIA, brincava um dos rebeldes.
Faminto e cansado, o americano berrava uma das poucas coisas que sabia dizer em espanhol: No soy mulo. Em dado momento, os rebeldes o conduziram a uma região repleta de arbustos com espinhos, que machucavam a pele como se fossem picadas de vespas. Morgan ficou com o peito e o rosto inflamados. Não conseguia dormir direito à noite. “Ele tinha a pele muito branca e agora parecia um pimentão”, lembrou Redondo.
O corpo de Morgan também trazia sinais de um passado violento. Tinha marcas de queimadura no braço direito e uma cicatriz de quase 30 centímetros, que parecia ser de faca, no peito. Tinha ainda uma pequena cicatriz embaixo do queixo, outra próxima ao olho esquerdo e várias no pé esquerdo. Era como se já tivesse sofrido durante anos na selva.
Morgan suportou todas as provações e perdeu 12 quilos. “Fiquei irreconhecível com apenas 75 quilos e de barba”, escreveu mais tarde. “O gringo era durão. Meus homens em Escambray passaram a admirar sua persistência”, disse Redondo.
Várias semanas após a chegada de Morgan, um vigia do grupo notou algo se movendo na mata. Com um binóculo, conseguiu contar seis homens em uniformes cáqui e chapéus de abas largas armados com rifles Springfield. Era uma patrulha do Exército de Batista.
A maioria dos rebeldes nunca tinha combatido de verdade. Morgan depois descreveu o grupo como “um bando de médicos, advogados, agricultores, químicos, estudantes e velhos reunidos”. O sentinela acionou o alarme e Menoyo ordenou que todos assumissem suas posições. Explicou que ninguém deveria atirar sem sua ordem. Morgan se agachou ao lado de Menoyo, segurando um dos poucos rifles semiautomáticos disponíveis. Enquanto os soldados se aproximavam rastejando, um tiro ecoou.
Era Morgan.
Menoyo xingou baixinho enquanto os dois lados já começavam a atirar. Um soldado de Batista foi atingido no ombro e ele despencou montanha abaixo como um pedregulho. Os homens da patrulha apanharam o ferido e fugiram, deixando um rastro de sangue pelo caminho.
Diante do silêncio repentino, Menoyo virou-se para Morgan e berrou: “Por que diabos você atirou?” Quando uma boa alma se dignou a traduzir o que Menoyo havia gritado, Morgan se mostrou perplexo. “Pensei que você tivesse dito para atirar assim que os visse.” Ninguém havia traduzido o comando original a Morgan.
O erro, no entanto, apenas precipitou uma batalha inevitável. Menoyo ordenou que todos limpassem a área, antes que uma multidão de soldados de Batista viesse atrás deles. Menoyo levou consigo um medalhão da Virgem Maria, presente de sua mãe. Morgan aproveitou para esconder suas próprias lembranças – as fotografias de um menino e de uma menina. Os rebeldes se dividiram em dois grupos. Morgan partiu com Menoyo e outros vinte homens, marchando mais de 160 quilômetros pelas montanhas.
Eles costumavam se mover à noite. Ao amanhecer, procuravam um abrigo, comiam o pouco que tinham e se revezavam para vigiar o sono uns dos outros. Seus corpos definhavam de fome e a barba cobria seus rostos. Quando um rebelde de 19 anos caiu e quebrou o pé, Morgan o ajudou, certificando-se de que não fosse deixado para trás.
Certa manhã, um deles tinha ido procurar comida quando viu cerca de 200 soldados de Batista num vale próximo. O grupo entrou em pânico: não teriam chances contra 200 homens alimentados. Morgan ajudou Menoyo a planejar uma emboscada: eles se esconderiam atrás de um bloco de pedras que formava uma letra “U”. “Nós tínhamos que deixar uma rota de fuga, isso era crucial”, disse Morgan.
Os soldados de Batista aproximaram-se do cume. Embora os rebeldes pudessem ouvir o estalo dos ramos sob as botas, Menoyo ordenou que todos ficassem imóveis, sem atirar, certificando-se de que Morgan tivesse compreendido desta vez.
Quando os soldados estavam perto a ponto de Morgan ver o cano de suas armas, Menoyo finalmente fez sinal para que seus homens atirassem. Em meio à gritaria, caos e sangue, alguns rebeldes recuaram, mas perceberam que “Morgan avançava na frente de todos, completamente focado na luta”, escreveu Aran Shetterly. Os soldados de Batista começaram a fugir. “Eles recuaram”, recorda Armando Fleites, um médico que estava com os rebeldes. “Foi uma vitória completa.”
Mais de doze soldados de Batista foram mortos ou feridos. Os rebeldes, que tomaram as armas dos mortos, não perderam um único homem. Pediram que Morgan os ajudasse a aprimorar suas táticas. Um ex-rebelde lembra: “Ele me treinou nas técnicas de guerrilha, me ensinou a manipular diferentes tipos de arma, a plantar bombas.” Morgan iniciou os homens no judô e os ensinou como respirar debaixo d’água usando um caniço oco. “Ele sabia tanta coisa de que a gente não fazia ideia”, diz o rebelde. Morgan sabia até mesmo um pouco de japonês e de alemão.
Aprendeu espanhol e se tornou um legítimo membro do grupo, que foi apelidado de Segunda Frente Nacional de Escambray. Assim como os outros rebeldes, Morgan jurou “lutar e defender com a própria vida este pedaço de território livre”, guardar “todos os segredos de guerra” e “denunciar traidores”. Ele subiu rápido na hierarquia da organização. A cada batalha vencida, a notícia sobre sua curiosa presença na ilha ia se espalhando. Uma rádio rebelde noticiou que guerrilheiros “liderados por um americano” mataram quarenta soldados de Batista. Outra rádio alardeou que Morgan era “um ianque lutando pela liberdade de Cuba”. O Diario Las Américas, publicado em Miami, disse que o americano tinha sido “membro dos Rangers, grupo que desembarcou na Normandia e abriu caminho para as forças aliadas, destruindo instalações nazistas na costa francesa antes do Dia D”.
Agentes da inteligência americana e cubana também começaram a ouvir rumores sobre um certo comandante ianque. No verão de 1958, a CIA registrou boatos sobre um rebelde “identificado apenas como El Americano” que teria desempenhado um papel crucial ao “planejar e executar ações de guerrilha”, e que praticamente havia exterminado uma das unidades de Batista numa emboscada. Um informante infiltrado no grupo revolucionário disse ao FBI que El Americano na verdade se chamava Morgan. Um outro disse que ele havia “arriscado sua vida inúmeras vezes” para salvar a pele dos rebeldes e que era “considerado um verdadeiro herói entre os guerrilheiros”. Os relatórios logo desencadearam uma corrida entre as agências do governo americano – incluindo a CIA, o Departamento de Estado, a inteligência do Exército e o FBI – para descobrir quem, afinal, era William Alexander Morgan e para quem ele estava trabalhando.
O DOSSIÊ SECRETO
J. Edgar Hoover andava sentindo calafrios. Primeiro, foi o seu coração: em 1958, aos 63 anos, ele sofrera um ataque não muito grave. Chefe do FBI, a polícia federal americana, Hoover era obcecado por sua própria privacidade e manteve o incidente em sigilo, mas começou a fazer dieta e exercícios, disciplinando seu corpo com a mesma força de vontade que curara a gagueira da infância.
Entre os problemas que perturbavam Hoover estava a “pequena e infernal República de Cuba”, como Theodore Roosevelt a descrevera. Hoover advertiu seus agentes que o número crescente de seguidores de Fidel dentro dos Estados Unidos poderia “representar uma ameaça à segurança interna” do país, e ordenou que eles se infiltrassem nas organizações simpáticas ao cubano.
Hoover queria transformar o FBI num aparato de espionagem internacional. Tal como havia criado dentro dos Estados Unidos, sua rede era conhecida por lançar mão de métodos pouco ortodoxos, como grampos ilegais, paparazzi, documentos capturados no lixo e fofocas de ex-amantes.
Os braços da inteligência americana ainda não tinham encontrado evidências de que Fidel e seus seguidores fossem comunistas e, dada a brutalidade de Batista, alguns oficiais americanos acabavam enxergando os rebeldes com certa complacência. Mais tarde, o oficial da CIA encarregado das operações no Caribe reconheceria: “Eu e minha equipe éramos todos fidelistas.”
Mesmo assim, Hoover permanecia alerta: de todos os inimigos que havia caçado, os comunistas eram os “mestres do embuste”, como os chamou num livro que publicou em 1958. Um insider da Embaixada dos Estados Unidos em Havana lhe havia informado que a liderança de Batista estava se enfraquecendo. Agora, ele recebia essas notícias sobre um gringo maluco nas montanhas. Seria Morgan um agente soviético? Ou um agente da CIA infiltrado? Ou apenas um patife qualquer?
No fim de 1958, Hoover escalou uma equipe de agentes especiais para descobrir o que Morgan estaria escondendo. Um deles bateu na porta de uma enorme casa em estilo colonial em Old West End, bairro histórico da cidade de Toledo, em Ohio. Um senhor de aparência distinta o cumprimentou. Era o pai de Morgan, Alexander, diretor de contabilidade aposentado de uma empresa que prestava serviços públicos. O filho o descrevia como um “republicano convicto”. Ele era casado com Loretta, uma mulher magra, conhecida na região como “Miss Catedral” por sua devoção à Igreja Católica, cuja paróquia ficava logo no fim da rua. Além do filho, eles também tinham uma filha, Carroll. O pai de Morgan disse ao FBI que não tinha notícias do filho, que ele chamava de Bill, desde que ele desapareceu de casa. De todo modo, ele contou ao FBI muita coisa sobre Morgan, o que, somado a entrevistas de outros parentes e colegas, ajudou Hoover e seus agentes a traçarem um perfil do rebelde ianque.
Morgan deveria ter sido o americano por excelência – um produto brilhante dos valores do Meio-Oeste e de uma classe média em ascensão. Frequentou uma escola católica e, pelo menos no começo, tirava notas altas (seu teste de QI apontou uma “inteligência superior”). Adorava atividades ao ar livre e era um escoteiro dedicado, recebendo a mais alta medalha da organização em 1941. Cheio de energia, parecia estar sempre conversando e era chamado pelos amigos de Gabby. “Ele era tão simpático”, sua irmã me disse. “Ele faria você comprar qualquer coisa.”
Mas Morgan também tinha um lado desajustado. Detestava a escola e vivia escapando das aulas para ler histórias de aventura, especialmente contos sobre o rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda, enchendo sua cabeça de lugares bem mais exóticos que a vizinhança com grama aparada e casas padronizadas que via da janela de seu quarto. A mãe de Morgan dizia que ele tinha “uma imaginação muito, muito viva” e que fazia questão de trazer suas fantasias para a vida real, construindo coisas como um “capacete de mergulho” digno de Júlio Verne. Ele raramente demonstrava ter “medo de alguma coisa” e uma vez teve que ser resgatado quando estava prestes a pular do telhado de casa munido apenas de um paraquedas caseiro.
A inteligência do Exército americano também investigou Morgan e montou um dossiê sobre ele. (O dossiê, com centenas de outros documentos da CIA, do FBI, do Exército e do Departamento de Estado, foi obtido através da Lei de Liberdade de Informação e através do Arquivo Nacional.) Durante a avaliação psicológica do Exército, um analista da inteligência militar afirmou que o jovem Morgan “parecia bem ajustado à sociedade”. Mas, desde a adolescência, ele resistia às estruturas de poder a seu redor e àqueles que pretendiam enquadrá-lo. Como sua própria mãe dizia, ele estava decidido a sair de Toledo e se aventurar sozinho pelo mundo.
No verão de 1943, aos 15 anos, Morgan fugiu de casa. Retornou alguns dias depois, mas logo roubou o carro do pai e se mandou novamente. Foi pego pela polícia avançando o sinal vermelho. Entregue a um centro de detenção, escapou pela janela e desapareceu. Foi parar em Chicago, onde se juntou ao circo Ringling Brothers. Dez dias depois, o pai o encontrou cuidando de elefantes e o levou de volta para casa.
No 1º ano do colegial, Morgan largou a escola e começou a zanzar pelo país, ganhando trocados em subempregos. Fez de tudo um pouco. Foi operador de máquinas de perfuração, caixa de supermercado, caseiro em um rancho, carregador de carvão, porteiro de cinema e marinheiro. Seu pai parecia resignado com a falta de rumo do filho. “Viva todas as aventuras que quiser e nós ficaremos felizes em te receber em casa quando você decidir voltar”, escreveu em uma carta.
Morgan explicou mais tarde que ele nunca foi infeliz em casa, que seus pais deram a ele e a sua irmã “tudo o que queríamos” – e que ele só fugiu porque desejava “ver novas paisagens”. Segundo a mãe, ele sempre teve uma imagem mítica de si mesmo, “sempre quis ser um figurão, alguém realmente importante”, mas acreditava que ele tinha uma natureza “muito afetuosa” e nunca quis “nos magoar ou preocupar”.
Apesar disso, a verdade é que Morgan começou a se relacionar com o “tipo de garoto errado”, como ele diria mais tarde, e sujou sua ficha na polícia. Quando ainda eram menores de idade, ele e seus amigos roubaram o carro de um estranho e amarraram o motorista para que não fugisse. Também chegou a ser investigado por porte ilegal de arma.
Ninguém – nem seus pais, nem o FBI, nem a inteligência militar – jamais conseguiu desvendar o comportamento antissocial de Morgan. Sua mãe se perguntava se algo teria acontecido durante a gravidez, lamentando: “Esse menino não me deu um segundo de paz… Fiquei cheia de cabelos brancos.” O pai disse ao FBI que o filho talvez precisasse de “um desses médicos para a cabeça”. Um psiquiatra, citado pela inteligência do Exército, especulou que Morgan talvez tivesse “embarcado em um longo ciclo de autodestruição a fim de satisfazer uma necessidade neurótica de punição”.
Mesmo assim, era possível ver Morgan, com seus olhos loucamente azuis e o cigarro preso entre os dentes, como o precursor de um novo tipo social: um beatnik, um rolling stone. “Jack Kerouac ainda estava imaginando como seria a vida na estrada quando Morgan já estava lá fora, vivendo-a”, disse um de seus amigos a um repórter. Sua personalidade, “nômade, egocêntrica, impulsiva e totalmente irresponsável”, como os agentes de Hoover a descreveram, também guardava semelhanças com a de um adolescente de classe média a quilômetros de distância. “Como Fidel Castro, embora numa escala menor, Morgan era um delinquente juvenil”, disse em 1960 um jornalista conservador americano.
Hoover e o FBI descobriram que, ao contrário do que a imprensa dizia, Morgan nunca havia servido durante a Segunda Guerra Mundial. Ele até tentou se alistar, mas foi dispensado por ser jovem demais. Somente em agosto de 1946, quando a guerra estava encerrada e ele finalmente tinha 18 anos, foi que pôde ingressar no Exército. Quando foi informado de que seria enviado para o Japão em dezembro, chorou diante de sua mãe pela primeira vez em anos, mostrando que, apesar de toda a casca, ainda era apenas um adolescente. Embarcou em um trem rumo a uma base na Califórnia, onde ficaria antes de ir para o Japão. No caminho, escreveu um telegrama para os pais:
Surpresa: casei ontem ao meio-dia com Darlene Edgerton. Estou feliz, escrevo ou ligo assim que possível. Não fiquem preocupados nem animados demais.
Trajando seu uniforme engomado, ele se sentara ao lado dela no trem. “Ele era alto, bonito e tinha um magnetismo natural”, relembrou Darlene, hoje cega, aos 87 anos. “Para ser sincera, eu estava voltando para casa e ia me casar com outra pessoa quando nos conhecemos e nos demos incrivelmente bem. Paramos em Reno e simplesmente nos casamos.” Eles se conheciam havia apenas 24 horas e passaram dois dias em um hotel antes de pegar outro trem. Quando chegaram à Califórnia, Morgan se apresentou à base e partiu para o Japão. “O que a gente não faz quando é jovem”, disse ela. Com Morgan longe, o casamento acabou em um ano e meio e Darlene conseguiu que ele fosse anulado.
No Japão, Morgan logo começou a sair com Setsuko Takeda, uma descendente de japoneses e alemães que trabalhava como recepcionista numa boate em Kyoto. Ele a engravidou. Quando Setsuko estava prestes a dar à luz, no outono de 1947, Morgan não conseguiu tirar uma licença do Exército. Fez então o que sempre fizera: fugiu. Preso por deserção, implorou para vê-la. Durante o encontro, com a ajuda de um chinês que também estava preso, Morgan rendeu o oficial que o vigiava e pegou sua 45. “Ele ordenou que eu tirasse a roupa e mandou que o chinês me amarrasse”, testemunhou o militar. Vestido com o uniforme e carregando a arma do guarda, Morgan escapou no meio da noite.
Os militares localizaram Setsuko e ela os conduziu até a casa onde Morgan a esperaria. Quando viu o pai de seu filho, ela se jogou em seus braços. “Até que vocês foram rápidos”, disse Morgan aos militares, e pediu um cigarro.
Em 15 de janeiro de 1948, aos 19 anos, ele foi condenado a cinco anos de prisão por um tribunal militar.
Morgan acabou transferido para uma prisão federal em Michigan. Matriculou-se num curso de história americana; estudou japonês e alemão, as línguas que Setsuko falava; assistiu a “aulas de orientação religiosa” e cantou no coro da igreja. Em um relatório sobre seu progresso, um funcionário da prisão escreveu: o capelão notou que o preso estava “fazendo todo o possível para melhorar a si mesmo e ser útil à sociedade”.
Morgan foi liberado em 11 de abril de 1950, antes do fim de sua pena. Ainda nutria alguma esperança de reencontrar seu filho e Setsuko, mas o relacionamento tinha acabado. Ele se mudou para a Flórida, onde conseguiu emprego em um circo como engolidor de fogo e aprendeu a manipular facas. Teve um caso com a encantadora de cobras, Ellen May Bethel, uma mulher franzina e impetuosa de cabelos pretos e olhos verdes. Na primavera de 1955, Morgan e Ellen tiveram uma filha, Anne. Eles se casaram alguns meses mais tarde, e tiveram outro filho, Bill, em 1957.
Ele se esforçou bastante para ser “útil à sociedade”, mas parecia preso a seu passado. No fim das contas, era um ex-presidiário e um soldado desertor – manchas que tentava, em vão, expurgar de seu currículo. A um amigo, Morgan contou que naquela época “não era nada”.
Segundo um informante do FBI, ele começou a trabalhar para a máfia, entregando encomendas para Meyer Lansky, gângster judeu e baixinho conhecido como Little Man. Além de seus negócios escusos nos Estados Unidos, Lanksy tornou-se um chefão em Havana, onde controlava alguns dos maiores cassinos e casas noturnas.
Morgan voltou às ruas de Ohio, onde se juntou a Dominick Bartone, criminoso local famoso no submundo desde os tempos de Al Capone. Corpulento, com cabelos pretos e olhos escuros, Bartone tinha “cara de um bandido caricato”, segundo sua ficha no FBI. Dividia as pessoas entre “pontas firmes” e “trouxas”. Sua ficha criminal incluía condenações por suborno, contrabando de armas, evasão fiscal e fraude bancária. Um de seus maiores comparsas era Jimmy Hoffa, líder de um dos sindicatos mais importantes do país, os Teamsters.
Um dos amigos de Morgan em Ohio me disse que ele definitivamente pertencia ao grupo dos pontas firmes. “Sabe o que significa ter conexão? Morgan certamente era um cara conectado.”
Alguns membros da máfia, entre eles Bartone, começaram a enviar armas para os rebeldes cubanos. Tinham a intenção de manter seus negócios na ilha caso o poder mudasse de mãos. O pai de Morgan achava que o primeiro contato do filho com essa história de Cuba tinha sido na Flórida, em 1955, quando ele teria conhecido Fidel, que estava lá para angariar apoio da comunidade de exilados à invasão que planejava. Dois anos depois, com Fidel já na Sierra Maestra, Morgan largou a mulher e os filhos em Toledo e começou a comprar armas nos Estados Unidos para enviar aos rebeldes. É possível que tenha sido movido por simpatia pela revolução, pela vontade de ganhar dinheiro ou simplesmente para se ver livre das responsabilidades domésticas. O pai de Morgan disse ao FBI que seu filho tinha fugido “de seus problemas desde que era um adolescente”, e que sua aventura cubana era só mais um exemplo disso. Antes de embarcar para Havana, Morgan disse a outro contrabandista de armas que se veriam de novo, na Flórida, “assim que essa maldita revolução terminar”. Mais tarde, no entanto, ele deu sua própria explicação, dizendo que sempre viveu “em busca de alguma coisa maior”.
Até hoje alguns pesquisadores (e mesmo pessoas que conheciam Morgan) especulam que ele foi enviado a Escambray pela CIA. Mas, como documentos recém-liberados revelam, Hoover e seus agentes tinham descoberto algo mais desconcertante. Morgan não estava trabalhando para a agência nem para a espionagem de outro país, nem mesmo para a máfia. Ele estava lá por conta própria.
POR QUE DIABOS ESTOU AQUI
“Chamando comandante William Morgan! Comandante William Morgan!”
Era um de seus homens em Escambray, contatando pelo rádio.
“Na escuta!” Foi a resposta de Morgan. “Envie reforços. Precisamos de ajuda, munição! Se ficarmos aqui, eles vão nos varrer do mapa.”
No verão de 1958, Morgan já tinha enfrentado inúmeras batalhas. “Estávamos sempre em desvantagem, coisa de pelo menos trinta homens para cada um”, disse ele. “Éramos uns gatos pingados, mas sempre muito firmes e ágeis no deslocamento. Ficamos conhecidos como os fantasmas das montanhas.”
Ele testemunhara de perto as crueldades do regime cubano: aldeias saqueadas e queimadas pelo Exército de Batista, amigos baleados na cabeça, um velho que teve a língua cortada e arrancada da boca. “Sei bem o que essas pessoas têm feito”, disse Morgan sobre os capangas de Batista. “Elas matam, torturam, espancam e fazem umas coisas que não podem sequer ser nomeadas.”
Morgan tinha costurado uma bandeira dos Estados Unidos em uma das mangas de seu uniforme. “Eu nasci americano”, gostava de dizer.
As várias facções do movimento – incluindo outros dois grupos em Escambray e as forças de Fidel na Sierra Maestra – eram um emaranhado de ideologias e ambições pessoais. A frente de Escambray defendia uma democracia no estilo ocidental e era fervorosamente anticomunista, posição aparentemente compartilhada por Fidel Castro, que, ao contrário de seu irmão Raúl e de Che Guevara, demonstrava ter pouco interesse no marxismo-leninismo. Na Sierra Maestra, Fidel disse a um repórter: “Não sou nem nunca fui comunista. Se fosse, teria coragem de assumir.”
Em Escambray, Morgan e Eloy Menoyo se tornaram cada vez mais próximos. Ele se dirigia a Menoyo como mi jefe y mi hermano e lhe contou tudo sobre seu passado conturbado. O chefe rebelde achava que Morgan estava amadurecendo tanto como soldado quanto como homem. “Pouco a pouco, William estava mudando”, disse ele.
Em julho, depois de ter sido promovido a comandante, Morgan escreveu uma carta a sua mãe, algo que não fazia havia seis meses, desde que tinha se enfurnado nas montanhas. A carta dizia: “Eu sei que você não aprova nem entende por que estou aqui, mesmo sendo a única pessoa no mundo que acredito que me entenda. Estive em muitos lugares nesta vida e fiz muita coisa que você não aprova nem entende. Nem eu consigo me entender neste momento.”
Na mensagem, falava de seus antigos pecados, admitindo o quanto havia magoado Ellen, sua segunda mulher, e seus filhos ao abandoná-los (“Feri os três profundamente”). “É difícil de entender, mas eu os amo muito e penso neles muitas vezes”, escreveu. Ellen pediu o divórcio alegando abandono. “Não espero que ela ainda me ame ou acredite em mim”, disse Morgan. “E ela deve estar certa.”
Mesmo assim, ele queria que a mãe entendesse que ele já não era a mesma pessoa. “Estou aqui com homens e garotos que lutam por… liberdade”, ele escreveu. “E, se acontecer de eu ser morto, quero que saiba que não será por uma fantasia tola ou, como diria papai, por um sonho impossível.” Um amigo que também contrabandeava armas para os rebeldes disse mais tarde ao Palm Beach Post: “Ele encontrou uma razão de ser em Cuba. Ele queria algo em que acreditar, um propósito maior. Queria ser alguém, não apenas mais um.” Num ensaio um pouco mais filosófico sobre as razões que o levaram a se juntar aos rebeldes, intitulado “Por que estou aqui”, Morgan dizia:
Por que luto aqui, nesta terra estrangeira para mim? Por que vim para um lugar tão longe da minha casa e da minha família? Por que me preocupo com esses homens que estão aqui comigo nas montanhas? Será porque são todos meus amigos íntimos? Não! Quando cheguei aqui, eram estranhos, eu não conseguia nem sequer falar sua língua ou entender seus problemas. É porque procuro aventura? Não existe nenhuma aventura por aqui, somente a boa e velha luta pela sobrevivência. Então, por que estou aqui? Estou aqui porque acredito que a coisa mais importante que um homem livre pode fazer é proteger a liberdade dos outros. Estou aqui para que, quando meu filho crescer, não tenha que lutar ou morrer em uma terra que não é sua só porque um grupo de homens tentou tomar sua liberdade. Estou aqui porque acredito que os homens livres devem unir forças para lutar e destruir qualquer grupo que tente tirar os direitos das pessoas.
Ele reconheceu: “Não posso dizer que sempre tenha sido um cidadão exemplar.” Mas explicou que, “estando aqui, posso apreciar o estilo de vida que é nosso desde sempre”, e contou as coisas excepcionais que viu: “Onde mais um menino de 19 anos marcharia por doze horas com um pé quebrado por um terreno cheio de obstáculos sem reclamar? Onde mais um único cigarro é fumado por dez homens? Onde mais um homem fica sem água para que outros possam ter o que beber?” Observando que as políticas americanas tinham favorecido a ascensão de Batista, ele concluiu: “Por que apoiamos pessoas que destroem em outras terras os ideais que nos são tão caros?”
Morgan enviou seu texto para alguém que, tinha certeza, iria simpatizar com o que escreveu: Herbert Matthews, o repórter do Times, que o considerava “a figura mais interessante na sierra de Escambray”. Matthews publicou um artigo sobre a Segunda Frente de batalha e o “jovem americano rude” que a liderava, citando um trecho literal de sua carta.
Outros jornais começaram a falar das façanhas do “aventureiro americano”, o “intrépido Morgan”. O Washington Post relatou que aos 3 anos ele já era conhecido pela “ousadia”. Foi o que bastou para fazer “estudantes babarem de amor por ele”, como escreveu um jornal. Um empresário de Ohio declarou que ele “mais parecia um caubói saído de algum livro de Hemingway”.
Um dia, na primavera de 1958, Morgan participava de uma reunião de líderes da Segunda Frente quando deu de cara com um rebelde que nunca tinha visto antes: um sujeito pequeno e magro, com o rosto encoberto pelo boné. Só chegando muito perto percebeu que o rebelde, na verdade, era uma mulher. Tinha 20 e poucos anos, olhos escuros, pele bronzeada e cabelo castanho-claro, que cortava bem curto e pintava de preto para se camuflar no meio dos homens. Morgan observava seu encanto e delicadeza enquanto a moça carregava uma pistola com a desenvoltura de um ladrão de banco. “Ela realmente sabia usar aquilo”, diria ele mais tarde.
Seu nome era Olga Rodríguez. Vinha de uma família de camponeses muito pobres da província de Santa Clara que muitas vezes passava dias sem comida. Era dedicada aos estudos e queria ser professora. Inteligente, teimosa e questionadora, era “sempre um pouco diferente dos outros”, como ela mesma se define. Cada vez mais inconformada com a repressão do regime de Batista, Olga se juntou à resistência clandestina. Organizava protestos, montava bombas caseiras. Até que um dia agentes da polícia secreta apareceram em seu bairro, procurando-a de casa em casa com uma foto dela. “Eles vinham me matar”, lembra Olga.
Sem encontrá-la, os policiais espancaram seu irmão e o deixaram na porta da casa dos pais “como um saco de batatas”, diz ela. Em abril de 1958, disfarçada de homem e com uma minúscula pistola calibre 32 escondida na calcinha, Olga se tornou a primeira mulher a se juntar aos rebeldes em Escambray. Ela cuidava dos feridos e ensinava os guerrilheiros a ler e a escrever. “Meu espírito é revolucionário”, gostava de dizer.
Quando se conheceram, Morgan fazia piadinhas espirituosas a respeito de seu cabelo, tirando o boné da moça e dizendo: Hey, muchacho. Ele chegou ao acampamento montado literalmente sobre um cavalo branco e Olga sentiu seu coração fazer “tum, tum, tum”.
“Sou muito romântica e a ideia de que uma pessoa de outro país pudesse se importar com meus compatriotas a ponto de lutar por eles era comovente”, diz ela. Morgan passou a bater ponto em seu acampamento. Ela era diferente de todas as outras mulheres por quem ele tinha se encantado de forma meio intempestiva. Assim como sua mãe, era muito convicta de suas ideias e, segundo Menoyo, foi em grande parte por sua influência que “William se transformou”. Morgan sabia dos riscos de se entregar à emoção em plena guerra. O regime de Batista estabeleceu uma recompensa de 20 mil dólares por sua cabeça. Certa vez, quando os dois estavam juntos, um avião militar passou por eles com o motor desligado, de forma que eles só perceberam do que se tratava quando bombas começaram a cair lá do alto. Escaparam por pouco. Enquanto Morgan lutasse em Escambray não poderia haver passado nem futuro para os dois, só o presente. “Desde o início, eu tinha essa sensação terrível de que as coisas acabariam mal”, diz Olga. A impossibilidade, no entanto, apenas inflamava mais o romance.
Morgan dizia a ela que eles precisavam “roubar tempo”. Num desses momentos, um fotógrafo flagrou os dois numa clareira, ambos vestindo uniformes. Ele está com um rifle no ombro direito e ela se apoia sobre outro rifle, como se fosse uma bengala. Com as mãos livres, acariciam um ao outro. “Quando eu te encontrei, encontrei tudo que poderia desejar no mundo”, ele escreveu para ela. “Só a morte pode nos separar.”
“MORGAN FOI MORTO NA NOITE DE ONTEM DURANTE UM CONFRONTO COM O EXÉRCITO CUBANO”, dizia a mensagem enviada em caráter de urgência pela embaixada dos Estados Unidos em Havana para Hoover, em 19 de setembro de 1958. O regime de Batista, que já tinha vazado a notícia para a imprensa cubana, enviara ao FBI duas fotos de um cadáver sem camisa, todo quebrado e ensanguentado.
A mãe de Morgan ficou destruída com a notícia. Semanas depois, recebeu uma carta vinda de Cuba, com a letra do filho: “No mês passado, a imprensa cubana disse que eu estava morto. Como pode ver, não estou.” O fato de Morgan ter “ressurgido dos mortos” criou uma poderosa ilusão: a de que ele era indestrutível.
Em outubro, Che Guevara apareceu em Escambray com uma centena de soldados de aparência assustadora. Chegaram da Sierra Maestra depois de seis semanas dormindo em pântanos e caminhando em meio ao fogo dos inimigos. A essa altura, as fileiras da Segunda Frente já tinham mais de mil homens. Descrito por um rebelde como “alguém propenso a discorrer sobre assuntos tão diversos quanto Stálin e Baudelaire”, Che fora enviado a Escambray para assumir o comando da Segunda Frente a pedido de Fidel, ansioso para acelerar a ofensiva contra Batista e eliminar qualquer ameaça ao seu controle. Mas muitos rebeldes de Escambray resistiram à usurpação de sua autoridade. Tensões vieram à tona. Che e seus homens foram confrontados por Jesús Carreras, um dos líderes da Segunda Frente particularmente combativo. Depois de exigir uma senha de Guevara, Carreras se recusou a deixar que ele e seus homens passassem.
Morgan e Che, os dois comandantes estrangeiros, desconfiavam amargamente um do outro. O barulhento, divertido e anticomunista americano tinha muito pouco em comum com o médico argentino erudito, asceta e marxista-leninista. Morgan acusou o grupo de Guevara de desviar armas pertencentes à Segunda Frente. Che, por sua vez, desprezava Morgan e seus companheiros. Apelidou-os de comevacas – aqueles que viviam à custa da generosidade dos camponeses. Che e a Segunda Frente chegaram a um “pacto operacional”, mas o atrito permaneceu.
Em novembro de 1958, antes de um ataque decisivo contra o Exército de Batista, Morgan fugiu com Olga para uma fazenda nas montanhas, onde se casaram. Como não tinham anéis, ele pegou uma folha, enrolou e colocou no dedo dela, prometendo: “Eu vou te amar e te honrar todos os dias da minha vida.” Olga respondeu: Hasta que la muerte nos separe.
No fim de dezembro, Guevara e seu grupo fizeram um ataque feroz na província de Santa Clara, obtendo uma vitória decisiva. No mesmo mês, Morgan e a Segunda Frente tomaram a cidade de Manicaragua, centro da produção de tabaco, e depois seguiram até chegar a Topes de Collantes, a 257 quilômetros a sudeste de Havana. Um dos comandantes de Batista avisou: “O quartel-general já não pode resistir. O Exército não quer lutar.” Pouco antes, a Segunda Frente havia emitido um comunicado declarando que a ditadura estava “praticamente esmagada”.
Às quatro da manhã do dia do Ano-Novo, David Atlee Phillips, agente da CIA em Havana, estava na varanda de casa, bebendo champanhe, quando olhou para cima e viu uma mancha de luz – um avião – riscando o céu. Ele se deu conta de que não havia voos partindo naquela hora e telefonou para o chefe dando uma informação de ouro: “Batista acaba de voar para o exílio.”
“Você está bêbado?”, foi a resposta.
Mas Phillips estava certo – Batista estava mesmo fugindo com sua comitiva para a República Dominicana – e a notícia logo se espalhou por toda a ilha: Se fue! Se fue!
De manhã, Morgan estava se preparando para a batalha por Cienfuegos quando o grito chegou a ele e a Olga: Se fue! Se fue! Morgan então ordenou que todos os seus homens partissem para tomar a cidade imediatamente. Todos, incluindo Olga, saltaram para dentro de carros e caminhões rumo a uma cidade onde esperavam uma batalha frenética, mas encontraram o Exército de Batista – outrora invencível – completamente desmantelado. Eufórica, a população local saiu às ruas, buzinando e rufando tambores improvisados. A multidão saudava Morgan aos gritos: “Americano! Americano!” Com uma bandeira rebelde nos ombros, fazendo as vezes de capa, ele disse aos repórteres: “Estou esquecendo meu inglês.” A multidão o agarrava berrando: Victoria! Libertad!
Morgan foi encarregado de tomar conta de Cienfuegos. Ele finalmente se tornara alguém, como disse a um amigo. Em 6 de janeiro de 1959, à uma da manhã, Fidel fez uma parada em Cienfuegos durante sua marcha triunfante rumo a Havana. Era a primeira vez que ele e Morgan se encontravam em Cuba.
Em entrevistas, Fidel reafirmou sua oposição ao comunismo e prometeu convocar eleições em dezoito meses. Em Havana, diante de milhares de pessoas, ele prometeu: “Não podemos nos tornar ditadores.”
“Tenho uma enorme admiração, um enorme respeito por esse homem”, disse Morgan sobre Fidel ao apresentador de tevê americano Clete Roberts. “Respeito sua coragem moral e sua honestidade.” Sobre ele próprio, disse que já estava na hora “de o carinha aqui ter um descanso”.
Morgan tinha passado dois dias sem dormir depois que Batista fugiu e ficou feliz em poder se barbear e limpar a sujeira acumulada em seu corpo. Olga logo aposentou o uniforme, confiante de que “a guerra tinha acabado e nós poderíamos formar uma família e viver em uma democracia”. Em Cienfuegos, trocaram alianças de verdade.
Olga ficou grávida. De repente, Morgan achava que eles poderiam ter tudo: uma casa, filhos, o jornal fresquinho pela manhã. “Tudo que eu quero é uma vida boa e tranquila”, afirmou.
A CONSPIRAÇÃO
Em março de 1959, um americano misterioso apareceu de repente no hotel Capri, onde Morgan e Olga estavam hospedados. O homem, de 40 e muitos anos, tinha cabelos pretos e crespos e usava óculos de lentes grossas. Chamou por Morgan no saguão do hotel, dizendo que precisava vê-lo. Seu nome era Leo Cherne. “Tenho certeza de que ele nunca ouvira falar de mim antes disso”, Cherne lembrou em um depoimento até hoje não publicado.
Culto e discreto, Cherne era um empresário bastante rico que havia aconselhado vários presidentes americanos, incluindo Franklin Roosevelt e Eisenhower. Em 1951, tornou-se presidente do International Rescue Committee [Comitê Internacional de Resgate] [3]. Alguns especulavam que, sob o comando de Cherne, o comitê funcionava como entidade de fachada para a CIA, o que ele negava. De todo modo, sabia-se de seu envolvimento com pessoas da inteligência, e ele era do tipo que gostava de estar a par de tudo o que acontecia no submundo da espionagem.
Cherne disse que por um tempo tinha sido “fortemente atraído” por Fidel, competindo com Herbert Matthews para ver quem tinha “entusiasmo mais cego” pelo cubano. Depois da revolução, foi ficando apreensivo. Com uma frieza perturbadora, Fidel enviou centenas de membros do regime de Batista para o “paredão”.
Foi então que a CIA decidiu acompanhar Fidel mais de perto, chegando a lhe atribuir um criptograma: AMTHUG, um código secreto usado pela agência para se referir a Castro. Morgan deve ter parecido um alvo tentador para recrutamento. Tinha acesso aos altos círculos do poder, falava espanhol e, sendo americano, parecia alguém mais fácil de ser convencido, uma vez que não teria que trair seu próprio país. O apoio de Morgan a Fidel e à revolução era um empecilho, mas, como qualquer oficial experiente sabia, quase todo mundo tem um “ponto fraco”: ganância, inveja, um fraco por mulheres. Tudo o que um recrutador precisava fazer era encontrar o ponto vulnerável e trabalhar nele até incorporar seu alvo ao sistema de informações.
Morgan parecia guardar em si uma centelha de ressentimento prestes a pegar fogo a qualquer momento. Fidel temia as rivalidades e havia negado posições de destaque no novo governo para muitos membros da Segunda Frente Nacional de Escambray, incluindo Menoyo. Adam Clayton Powell, congressista de Nova York, tinha acabado de voltar de uma missão de coleta de informações em Cuba, onde ouvira Morgan – a quem descreveu como um “sujeito doce, mas muito difícil” – criticar o novo regime.
No hotel Capri, Cherne ficou surpreso ao descobrir que Morgan estava instalado em um quarto apertado e parcamente mobiliado. Olga não estava lá, mas homens barbudos armados entravam e saíam a todo instante, como se o aposento fosse um quartel-general improvisado. Morgan usava seu uniforme de rebelde com a estrela de comandante estampada em cada uma das dragonas. O revólver descansava sobre uma cômoda.
Cherne disse que o estava procurando para promover o trabalho do Comitê Internacional de Resgate em Cuba e conseguir uma audiência com Fidel. Morgan ficou desconfiado. Sabia que Havana estava cheia de espiões e suspeitava que Cherne fosse um oficial da inteligência americana.
Talvez por acreditar que seus segredos estariam seguros com um profissional na arte de guardá-los, Morgan confessou a Cherne algo que não revelara nem a amigos próximos, incluindo Menoyo. Admitiu que a história sobre o amigo americano morto por Batista era fabricada – um truque que lhe permitira entrar para a história. “Morgan disse a verdade, confiando que eu nunca a tornaria pública”, lembrou Cherne.
Cherne reparou o quanto o espanhol de Morgan era bom, como ele impunha respeito aos rebeldes que zanzavam no quarto e como ele parecia brilhante, apesar de só ter estudado até a 8ª série. “Raramente conheci alguém tão esperto, em alguns aspectos até mesmo brilhante, e tudo isso instintivamente”, Cherne observou.
Ele logo voltou ao Capri para outra reunião. Desta vez, um barbudo estava esparramado na cama, aparentemente cochilando. Ignorando o rapaz, Morgan disse que queria revelar algo “muito importante”. Ansioso, Cherne olhou em volta e perguntou: “Como você sabe que este quarto é seguro?” Morgan assegurou-lhe que era, mas Cherne apontou para o ar-condicionado, onde um grampo poderia ter sido instalado. “Me desculpe”, disse o rebelde. “Você está certo.” Pegou um rádio de pilha, colocou na frente do aparelho e ligou uma música.
Cherne continuava preocupado com o cubano adormecido. “A alegre disposição de Morgan para assumir riscos era demais para o meu gosto”, relembra. Mas, sentindo que ele tinha informações “irresistíveis”, resolveu deixá-lo prosseguir. Com sua permissão, chegou até mesmo a usar um gravadorzinho que levara consigo. Morgan então confidenciou que Che Guevara e Raúl Castro eram marxistas-leninistas que punham em risco a revolução. Segundo o rebelde, Che havia encomendado sua morte, mas Morgan capturara o agente que deveria matá-lo e, antes de libertá-lo, o obrigou a fazer uma confissão por escrito. “Essa é a apólice de seguro que vai me manter vivo.”
Cherne perguntou a Morgan se Fidel Castro era comunista. Ele disse que não e salientou que muitos cubanos estavam comprometidos com a democracia.
Morgan esperava que Cherne pudesse usar sua influência para conseguir ajuda econômica internacional a cerca de 3 mil famílias de Escambray bombardeadas durante a guerra. Também temia que o governo dos Estados Unidos revogasse sua cidadania, como alguns anticastristas pediam. Foi então que Cherne achou ter encontrado o ponto fraco de Morgan: o comandante ianque queria ter certeza de que, se as coisas ficassem feias, poderia voltar para a América com sua família. Tinha medo de ser deixado do lado de fora, no frio.
Morgan entregou a Cherne uma moeda de 5 centavos emitida em 1946 com um pequeno entalhe na borda. Se ele quisesse mandar alguém para vê-lo algum dia, a pessoa deveria trazer essa moeda como sinal de que era de confiança.
Depois de deixar o hotel com a moeda e sua gravação da conversa, Cherne foi ficando nervoso, com medo de estar sendo espionado. Para que correr um risco tão bobo? Rabiscou o que tinha ouvido num papel e enviou a um amigo de confiança em Havana. “Caso eu não conseguisse escapar”, contou ele.
No dia 20 de março, Cherne foi até a sede da CIA – na época, um complexo de edifícios malconservados no noroeste de Washington. Lá se reuniu com o chefe interino da Divisão para o Hemisfério Ocidental. Na linguagem da CIA, Cherne estava identificado dentro de uma pasta sobre Morgan apenas como “contato HQS”. Servia como olheiro, alguém que identifica pessoas que podem vir a ser recrutadas pela agência. Ele disse para a CIA que Morgan seria uma aquisição valiosa, pois Fidel o tinha em alta conta. Por fim, entregou a moeda de 5 centavos.
Um relatório da CIA concluiu que Morgan tinha “possibilidades KUCAGE”. Em seu livro Dentro da “Companhia”: Diário da CIA, de 1975, Philip Agee, um ex-oficial que se voltara contra a CIA e que supostamente ajudara o regime de Fidel, revelou que KUCAGE designava operações psicológicas e paramilitares altamente complexas. “Operações de ação, e não de coleta de informações”, escreveu Agee. “Operações de coleta precisam ser invisíveis, o alvo não pode saber de nada. Operações de ação, por outro lado, sempre produzem efeitos visíveis. Esses efeitos, no entanto, nunca devem ser atribuídos à CIA ou ao governo dos Estados Unidos.”
No final de março, a CIA autorizou uma investigação mais aprofundada sobre El Americano. Os agentes precisavam de mais “dados biográficos” antes de tentar recrutá-lo. No dia 30 de março, a Divisão Central da agência pediu para ser avisada assim que Morgan fosse “ativado” como espião.
Duas semanas depois, Fidel chegou a Washington para uma visita que anunciou como de “boa vontade”. O presidente Eisenhower se recusou a encontrá-lo, mas, quando ele apareceu em público vestindo seu uniforme verde amarrotado e um coldre vazio, foi aplaudido por americanos que o viam como um herói popular. “Viva Fidel!”, gritavam.
A essa altura – relata Aran Shetterly, biógrafo de Morgan –, outro visitante curioso apareceu no hotel Capri: um renomado caixeiro-viajante da máfia chamado Frank Nelson. A máfia temia com razão que Fidel planejasse fechar seus cassinos e clubes noturnos. Nelson disse a Morgan que um de seus amigos estava interessado nos “serviços” dele.
“Nos meus serviços?”, perguntou Morgan, confuso.
Foi a vez de Nelson passar os olhos pelo quarto nervosamente. Em voz baixa, ele disse: “Meu amigo está disposto a pagar bem se você ajudá-lo.” Fez uma pausa. “Um milhão de dólares.”
A conversa continuou em Miami, onde Morgan encontrou o “amigo” de Nelson em um quarto de hotel. Era o cônsul da República Dominicana, que estava servindo como intermediário a fim de ocultar a identidade dos conspiradores. Um dos idealizadores do encontro havia sido Rafael Trujillo, o tirano que governou a República Dominicana por três décadas, uma figura ainda mais sádica do que Batista. Em 1956, teria orquestrado em Nova York o sequestro de um professor da Universidade de Columbia prestes a publicar uma tese criticando seu regime. Carregado de volta para a República Dominicana, onde havia trabalhado no governo, o professor foi amarrado a um guindaste e colocado lentamente numa tina de água fervente. Trujillo agora queria eliminar Fidel Castro.
O cônsul de Trujillo estava acompanhado pelo ex-chefe de polícia de Batista (ainda na República Dominicana, Batista ajudava a financiar a operação). Também estava presente um homem forte de peitoral largo que Morgan reconheceu de seus dias de crime organizado: Dominick Bartone. Depois da revolução, o bandido tinha procurado Morgan tentando vender vários aviões militares de carga Globemaster para Fidel. Agora Bartone tentava vender esses mesmos aviões para os conspiradores que queriam derrubar Castro. Jimmy Hoffa, seu aliado, tinha sido acusado de desviar 300 mil dólares do fundo de pensão do sindicato Teamsters para viabilizar o negócio. Um dos assessores de Hoffa mais tarde informou o governo de que o esquema “foi pura e simplesmente uma maneira de ajudar alguns dos companheiros de máfia de Hoffa que estavam com medo de perder seus negócios em Cuba”.
Os homens no quarto do hotel representavam interesses ligados à máfia, ao sindicato, a Batista e a Trujillo, um antigo aliado dos Estados Unidos. Essas forças díspares conseguiram se unir em torno de um único e audacioso plano.
Para convencer Morgan, também haviam sondado seu ponto fraco. “Eu sei que você e seus companheiros foram maltratados”, disse Nelson. “Além disso, 1 milhão de dólares é sempre 1 milhão de dólares.”
Para o resto do mundo, Morgan podia até ter se tornado o comandante ianque, mas os conspiradores acreditavam que, no fundo, ele continuava sendo o bom e velho Billy Morgan.
“Daremos tudo o que você pedir”, disse o ex-chefe da polícia de Batista.
Morgan logo voltou a encontrar o grupo. Contou que tinha conversado com Menoyo e que os dois refletiram bastante sobre o que havia se passado em Cuba desde a revolução. Concluíram que ele e os outros membros da Segunda Frente estavam prontos para entrar na conspiração.
Hoover percebeu que algo estava acontecendo. Informantes tinham relatado que Morgan recebera dezenas de milhares de dólares do cônsul da República Dominicana nos últimos meses. O dinheiro costumava chegar dentro de “sacos de papel”. Corriam rumores de que Morgan, que se mudara com Olga para uma casa em Havana, andava recebendo mensagens de um padre que agia não no interesse de Deus, mas no de
Rafael Trujillo. Falava-se ainda que Morgan teria encontrado Johnny Abbes García, chefe da polícia secreta de Trujillo, na Flórida.
Hoover e seus homens procuravam descobrir o sentido dos dados que estavam coletando. O chefe do FBI ficou obcecado por Morgan – um ex-engolidor de fogo! – e pressionou seus homens a intensificar suas buscas, explorando as ligações de Morgan com Dominick Bartone. O mafioso, classificado pelo birô como “armado e perigoso”, tinha sido preso recentemente com seus comparsas no aeroporto de Miami, flagrados ao encher um avião de armas. Os compradores da carga seriam mercenários e exilados cubanos que estavam sendo treinados na República Dominicana.
Enquanto o FBI rastreava seus movimentos, Morgan foi várias vezes a Miami, onde se reuniu com os outros conspiradores. Naquele verão, ele também foi a Toledo visitar seus pais, a quem não via desde o dia em que se mandou para Cuba, um ano e meio antes. Seus pais sentiram que o filho estava tenso. A mãe lhe perguntou em que tipo de confusão ele estava se metendo agora.
Nenhuma, ele garantiu.
Mas ela sentiu no ar que ele estava planejando aplicar, como disse mais tarde, um “novo truque”.
Em 27 de julho de 1959, Morgan visitou Miami novamente, dessa vez com Olga. Grávida de oito meses, ela lhe proporcionava algum disfarce. Ainda assim, ele foi parado por autoridades no aeroporto de Miami e levado a uma sala de espera, onde foi interrogado por dois homens com cabelo escovinha, ternos e gravatas escuras. Eram agentes de Hoover.
Depois de informar a Morgan quais eram seus direitos, os agentes perguntaram o que ele vinha fazer em Miami. Ele primeiro insistiu que estava passeando com sua mulher por uns dias. Mas admitiu sob interrogatório que tinha sido procurado pelo representante de um governo estrangeiro interessado em fazer uma contrarrevolução em Cuba. “O interrogado se recusou a identificar seus contatos”, os agentes escreveram em um relatório.
Morgan disse que estava em uma “situação delicada” e acabou sendo liberado. Hoover ordenou que seus homens monitorassem seus movimentos “com vigilância física e outras técnicas confidenciais”. O FBI informou que a mulher grávida do “investigado” foi vista entrando em um Cadillac azul ano 1959 na porta do hotel Montmartre. Os agentes rastrearam o carro: pertencia a Dominick Bartone.
Em 31 de julho, Morgan ligou para o FBI informando que Olga tinha voltado para Cuba e que ele voltaria em dois dias, em um voo da Pan American. Poucas horas depois do telefonema, no entanto, ele foi embora deixando suas coisas no quarto do hotel. Mais tarde, o FBI descobriu que Morgan tinha embarcado clandestinamente em um pequeno barco de pesca na noite de 6 de agosto. Fora da costa de Miami, pegou um iate de 54 pés pilotado por dois mercenários. O barco não tinha nenhum tipo de identificação e estava abarrotado de metralhadoras, explosivos e outros armamentos. Com Morgan a bordo, o iate partiu para Cuba e, depois de despistar a guarda costeira americana e quase ficar sem combustível, entrou no porto de Havana, em 8 de agosto.
Hoover acreditava que Morgan estava procurando seu lugar ao sol na conspiração. Uma fonte do FBI disse que ele planejava “assassinar Fidel”. Outra fonte disse que o plano era tirar Fidel e Raúl Castro de cena. Várias fontes confirmavam que um bando de mais de mil mercenários e exilados cubanos seria levado de avião da República Dominicana para Trinidad, uma cidade colonial ao pé da serra de Escambray. Quando chegassem, seriam liderados por Morgan. Nessa época, um telegrama da embaixada americana classificou o americano como “um enigma”.
Morgan recebeu de Trujillo um rádio de ondas curtas – uma engenhoca volumosa com dezenas de botões. Ligou o rádio e ouviu uma voz estridente: era o espião de Trujillo, Abbes García, na República Dominicana.
Um informante depois disse ao FBI que Abbes García usava seu rádio depois da meia-noite e costumava se identificar como “Vaca Vermelha”. O codinome de Morgan era Henry – em referência a Henry Morgan, corsário galês do século XVII contratado pela Coroa britânica para saquear ouro de Cuba, então colônia espanhola.
Em um fim de noite de agosto, Morgan ligou o rádio: “Henry falando. Venham… Venham…”
A Vaca Vermelha pegou o sinal e Morgan lhe disse que o plano havia sido ativado: “Nossas tropas estão avançando.”
Abbes García podia ouvir tiros e bombas ao fundo.
“Avante, Henry!”, respondeu empolgado.
Funcionários do alto escalão do FBI, da CIA, da Marinha, do Exército, da Força Aérea e do Departamento de Estado começaram a trocar informações a respeito de Morgan e de seu plano. Telegramas urgentes diziam: “Casa de Fidel em Cojimar foi alvejada… Fontes confiáveis afirmam que um pequeno grupo atacou a casa de Raúl… O paradeiro de Morgan é desconhecido… Telefones cortados nas províncias de Las Villas e Camagüey… Rumores de combates… Forças Armadas em alerta máximo… Esperando algo mais, provavelmente uma invasão… Porto de Havana será bombardeado às quatro da tarde… Espera-se que Castro seja aniquilado.”
Hoover e seus colegas souberam que Morgan e outros membros da Segunda Frente, incluindo Menoyo e Jesús Carreras, se reuniram em Trinidad, onde tomaram uma pista de pouso enlameada, na prática dividindo a ilha ao meio. Trujillo transmitiu uma mensagem de rádio ao povo cubano: “Morte, morte, morte ao demônio Fidel Castro e seu irmão Raúl!”
Na noite seguinte – aniversário de 33 anos de Fidel – Trujillo despachou para Cuba um avião que transportava os primeiros membros da força de ataque. Ao desembarcarem em Trinidad, os soldados ouviram Morgan e seus homens maldizendo Fidel aos berros. Os gritos se tornaram tão altos e intensos que pareciam vir de uma torcida num estádio: “MORTE A FIDEL!”
De repente, uma figura imponente e barbada que também gritava surgiu de trás de uma mangueira, onde estava escondido. Era Fidel Castro.
Morgan armara um truque dentro do truque. Ele não era um contrarrevolucionário – era um agente duplo. Ele e a Segunda Frente haviam atuado em conluio com Fidel. As mensagens de rádio, os telefones cortados, as bombas explodindo, tudo fazia parte da encenação do que ele descreveu como uma “guerra fictícia”.
Morgan e os homens leais a Fidel apontaram suas metralhadoras para os atordoados combatentes da força de ataque. Mais tarde, um dos homens de Trujillo diria: “Eu não deveria ser julgado como conspirador, mas como um imbecil.” Quando o tiroteio terminou, dois membros da força de ataque estavam mortos e os demais tinham sido capturados.
Morgan ajudou a desmantelar o primeiro grande complô contra o regime de Fidel. Em um discurso na tevê de mais de cinco horas que durou até as três da manhã, Castro explicou o que tinha acontecido. Morgan apareceu ao seu lado, sorrindo em seu reluzente uniforme rebelde. Nos meses anteriores, ele e Fidel passaram horas planejando aquela conspiração. Fidel foi visto colocando seu longo braço ao redor de Morgan, o valioso agente duplo. Saudado como um “cubano” por Fidel, Morgan o chamou de “fiel amigo”. “Eles confiavam plenamente um no outro”, lembra Menoyo.
O comandante ianque revelou ao público que, depois de ter sido abordado para liderar a contrarrevolução, ele e Menoyo alertaram Fidel. Castro os orientou a expor os inimigos. “Cada um interpretava seu papel, era melhor do que nos filmes”, disse Fidel em seu pronunciamento na tevê. Morgan e Menoyo foram tão convincentes em seus papéis de contrarrevolucionários que Leo Cherne e outros agentes suspeitaram que eles originalmente tinham participado da conspiração, mudando de lado quando estavam prestes a ser descobertos.
Menoyo e outros envolvidos insistiram que nunca tinham se voltado contra Fidel – que continuava sendo reverenciado em Cuba e reafirmara seu apoio aos princípios democráticos na visita a Washington, em abril. Apesar de suas preocupações com o regime, Morgan declarou enfaticamente que ele e os membros da Segunda Frente “jamais se uniriam” a tipos como Trujillo ou Batista.
Em 20 de agosto, Morgan ligou para os agentes do FBI que o seguiram em Miami pedindo desculpas por ter fugido deles. Ele explicou que não queria trair Cuba, onde tinha tantos amigos. Acrescentou que não tinha quebrado nenhuma lei americana, embora talvez as tivesse “entortado” um pouquinho.
O serviço secreto americano abriu uma investigação sobre Morgan e recomendou que não fossem tomadas medidas contra esse homem de “coragem inquestionável”, já que ele não representava nenhuma ameaça a “segurança e bem-estar do nosso presidente”. Mas Hoover ficou furioso por ter sido enganado e, em setembro, o Departamento de Estado revogou a cidadania de Morgan.
A CIA não fez nenhum esforço para interceder por Morgan. Naquele mês de maio, segundo documentos desclassificados, a agência desistiu de tentar recrutá-lo, depois de ter encontrado evidências de sua juventude delinquente e do seu escandaloso histórico militar. Um memorando interno afirmou: “A agência acredita que qualquer acordo secreto com Morgan é indesejável do ponto de vista da segurança.” No fim das contas, sua natureza genuinamente rebelde fazia de Morgan um sujeito imprevisível demais.
Trujillo – que mais tarde seria assassinado num complô da CIA – colocou a cabeça de Morgan a prêmio com uma recompensa de meio milhão de dólares. Quando Clete Roberts, o apresentador de tevê americano, visitou Morgan, em setembro de 1959, a casa estava cercada de guarda-costas com submetralhadoras Thompson. Ele perguntou a Morgan qual era a “sensação de ter sua cabeça avaliada em meio milhão de dólares”.
Morgan respondeu friamente: “Bem, não é tão ruim. Quem quiser minha cabeça terá de vir buscá-la. Vai ser difícil.”
O governo de Fidel fez de Morgan um “cidadão cubano por nascimento” e prometeu protegê-lo. A Associated Press escreveu que ele havia alcançado “um status quase lendário” na ilha e Cherne disse que ele se tornara “o herói da República”. Sua reputação ficou ainda maior quando ele entregou ao governo os 78 mil dólares que recebera do cônsul dominicano, pedindo apenas que o dinheiro fosse investido na região de Escambray. Quando Morgan andava pelas ruas de Havana, as pessoas esticavam a mão para tocá-lo. Chegaram a fazer uma música celebrando suas façanhas.
Em agosto, Olga deu à luz uma filha, que recebeu o nome da mãe de Morgan, Loretta. Olga lembra que Fidel apareceu na clínica para parabenizá-los. “Ele queria ser o padrinho”, diz ela, mas a honra foi de Menoyo.
Morgan disse que a revolução tinha sido travada em nome de uma ideia muito bonita – a ideia de liberdade – e que ele não estava disposto a trair o juramento que fizera nas montanhas. Embora alguns marxistas-leninistas tenham tentado se “infiltrar” no poder em meio ao tumulto no país, falou, o povo cubano era demasiado individualista para aceitar tal sistema. “O comunismo é baseado na ignorância e na pobreza”, disse ele. “E a primeira coisa que a revolução tem feito é criar escolas e empregos, construir casas e dar às pessoas a terra de que precisam para aumentar sua renda.”
Embora chateado por ter perdido a cidadania americana – “A melhor coisa que já me aconteceu foi ter nascido nos Estados Unidos”, comentou uma vez –, Morgan estava contente com sua família e ansioso para ajudar a construir uma nova sociedade cubana. “Sou um cubano agora”, disse ele. “E acredito na revolução.” Ou, como afirmou mais tarde, “estou apostando minha vida no sucesso da revolução”.
ELES VÃO TE PEGAR!
Morgan não assumiu nenhum cargo no governo de Fidel: “Eu nunca fui um político, sou apenas um soldado.” Mas continuava sendo um aventureiro e, no outono de 1959, iniciou uma nova empreitada nos pântanos cubanos, sob os auspícios do Instituto Nacional de Reforma Agrária. Em troca de um pequeno salário, construiu vários viveiros – incluindo um em Escambray – que forneciam rãs de carne macia e pele valiosa para a produção de carteiras, bolsas e cintos. Morgan começou com poucos animais, mas eles se multiplicaram rapidamente, até que ele se viu tomando conta de um reino de mais de meio milhão de rãs.
Contratou centenas de camponeses para trabalhar nas fazendas, proporcionando o tipo de oportunidade econômica que os rebeldes haviam prometido durante a revolução. Viola June Cobb, uma americana que foi secretária de Fidel, testemunhou em segredo a uma comissão do Senado dizendo que Morgan era “um rapaz de ideais”, que tinha um “tremendo desejo de ser útil” e que, através de suas fazendas, tinha melhorado a vida de cerca de 2 mil camponeses.
Repórteres viajaram aos pântanos para ver o famoso agente duplo. Um artigo da Time o chamou de “improvável criador de sapos”. Mais uma vez ele provava o quanto era versátil. “As coxas de rãs cubanas são as melhores”, dizia.
Em 31 de julho de 1960, Olga deu à luz uma segunda menina, Olguita. Antes de chegar a Cuba, Morgan tinha sido um pai negligente, algo que lhe causava arrependimento. Ele enviou uma carta para Anne, filha de seu segundo casamento, que tinha agora 5 anos:
Quando te vi pela última vez, você era uma garotinha que sentava na janela e gritava: “Papai, papai!” Sei que você sentiu minha falta quando não voltei mais para casa. Sei que olhou pela janela procurando seu pai – isso foi muito tempo atrás, lindinha, talvez você nem se lembre, mas eu me lembro, e vou me lembrar para sempre.
Morgan agora era um paizão para suas meninas e achava que “um homem com família era o homem mais feliz do mundo”.
Mas, depois de frustrar o complô de Trujillo e ajudar a salvar a revolução, ele foi ficando desconfortável com os rumos da ilha. Morgan previra para o FBI que a influência de radicais como Che e Raúl Castro diminuiria em Cuba, mas Fidel colocou Raúl no comando das Forças Armadas e transformou Guevara em presidente do Banco Central, fazendo pressão por um maior controle do Estado sobre a economia.
Em 19 de outubro, o comandante rebelde Huber Matos renunciou ao governo, em protesto contra a influência crescente dos comunistas. Dois dias depois, foi preso e em seguida condenado a vinte anos de reclusão.
Antes disso, em março, a Casa Branca tinha aprovado um plano ultrassecreto para derrubar o regime de Castro. A operação era estranhamente parecida com a conspiração de Trujillo. Uma brigada de mais de mil exilados cubanos – dessa vez treinados pelos Estados Unidos em uma base na Guatemala – invadiria a ilha por mar, desembarcando em uma praia de Trinidad. Aviões B-26 bombardeariam preventivamente a Força Aérea de Fidel para proteger a brigada que, se necessário, escaparia para as montanhas de Escambray. Seria a operação secreta mais ambiciosa da história dos Estados Unidos.
Naquele verão, durante os preparativos para a invasão, a CIA apertou o botão mágico. Fazendo eco mais uma vez aos métodos de Trujillo, a agência recorreu a membros da máfia – incluindo um comparsa de Meyer Lansky – para assassinar Castro. Foram considerados vários estratagemas bizarros, entre eles detonar a cabeça de Fidel com um charuto explosivo, espetá-lo com uma caneta venenosa e contaminar suas roupas de mergulho com os germes da tuberculose.
Morgan se esforçava para encontrar alguma certeza em meio à confusão de complôs e contracomplôs. Já não era tão próximo de Fidel e não sabia dizer se o líder cubano estava reagindo às provocações de Washington, sendo pressionado pela facção mais radical do governo, ou se estava revelando que, sob a aparência do rebelde, existia apenas outro ditador disposto a agarrar qualquer ideologia que consolidasse seu poder.
Certo dia, membros do Partido Comunista tentaram organizar uma reunião em uma das fazendas de Morgan. Ele os expulsou: “Fidel e Raúl sabem que sou contra os comunistas.”
Um amigo da Segunda Frente recorda: “Eu disse para William: ‘Você tem que ter cuidado, está falando demais.’ Mas William gostava de falar.”
A casa de Morgan em Havana tinha sido baleada mais de uma vez – talvez por agentes de Trujillo, talvez por outro inimigo. “Chegaram a matar nosso cachorro”, lembra Olga. Depois disso, Morgan levou a família para um prédio protegido por mais de dez guardas, muitos dos quais moravam com eles. “Parece que a gente nunca pode ficar sozinho”, ele disse a Olga.
Um informante disse à CIA que “cada passo de Morgan era vigiado pelo Exército cubano”. Olga suspeitava que dois dos guarda-costas que moravam com eles fossem espiões do G-2, o serviço de inteligência militar de Fidel. “Eu queria que eles fossem embora”, lembra ela. Morgan tomou precauções, escolheu seu próprio motorista e passou a trabalhar em um Oldsmobile azul equipado com duas metralhadoras e um porta-luvas recheado de granadas.
Ele não tinha a menor vontade de fugir de Cuba. Como diria depois à sua mãe: “Isso seria como trair a mim mesmo, meus amigos e minhas crenças.” Ele continuou por lá, cuidando de seus sapos.
Morgan descobriu certo dia que um de seus companheiros rebeldes, Jesús Carreras, agora um opositor do regime, tinha sido preso pelos militares em Santa Clara. Correu até o quartel e exigiu que os guardas soltassem Carreras. “Eu sou um comandante!”, gritou. Os guardas obedeceram e Morgan levou Carreras embora. Passou a dar ouvidos à advertência de outro colega rebelde: “Cuidado! Eles vão te pegar!” Considerou pedir asilo político para sua família, mas confessou a um repórter: “Eu já troquei demais de país.” A outro jornalista disse: “É muito fácil apanhar um cara de meia-idade.”
A inclinação de Cuba rumo ao comunismo continuou se acentuando, e vários dos amigos de Morgan retornaram a Escambray para pegar em armas contra o regime. Conforme o jornalista Michael D. Sallah relatou, Morgan começou a contrabandear armas para as montanhas no outono de 1960. “Toda semana caminhões subiam com elas”, me disse um trabalhador.
Sua oposição ao regime se tornou pública. “Se alguma coisa acontecer comigo, você vai saber que os comunistas realmente tomaram conta”, disse a um repórter. “Não sei quanto tempo ainda vou durar”, afirmou.
Ainda assim, Viola Cobb, a secretária, diz que Morgan não tinha perdido completamente a fé em Fidel: “Ele tinha esperança de que em algum momento Fidel perceberia que os comunistas estavam tomando conta das coisas e reagiria. Nesse momento, William Morgan, Gutiérrez Menoyo e alguns dos outros o ajudariam a resgatar o país.”
No dia 19 de outubro, dois dias depois que o governo Eisenhower retirou de Cuba seu embaixador, Philip Bonsal, antecipando o fim das relações diplomáticas, Morgan foi convocado para uma reunião no Instituto Nacional de Reforma Agrária. Ele levou consigo uma bolsa feita de pele de rã – um presente para a mulher de um dos funcionários.
Olga e Morgan tinham planos para aquela noite, mas eram sete horas e ele não voltava para casa. “Ele sempre foi pontual”, lembra Olga. Cheia de pressentimentos, ela deixou as crianças com a babá e pediu que o motorista do marido a levasse até o Instituto.
No portão, ela gritou para um guarda: “Onde está William?”
“William teve que ir a algum lugar”, ele disse.
“Preciso ver William. Eu tenho que vê-lo.”
“William disse para você vir com a gente.”
Os guardas do Instituto começaram a cercar o carro e ela gritou ao motorista: “Arranque! Vamos!”
Conseguiram fugir, mas os policiais logo bateram à porta de seu apartamento. “Eu sou a mulher do comandante Morgan”, disse ela, tentando intimidá-los. Os homens simplesmente a empurraram e revistaram o apartamento, aterrorizando as meninas de 2 meses e 14 meses de idade.
Olga ficou sabendo o que tinha acontecido com Morgan: ao chegar ao Instituto, foi cercado por agentes do Estado e levado para a sede da G-2. Jesús Carreras também fora capturado. Ela estava certa a respeito dos dois guarda-costas que moravam com eles: eram mesmo espiões.
Olga não conseguiu permissão para ver Morgan, que estava detido. Por quase um mês, o ex-comandante foi mantido numa solitária. Temia que o governo estivesse tentando envenená-lo e ficou seriamente doente ao provocar vômitos para se livrar das toxinas.
Depois de um mês, Morgan foi transferido para La Cabaña, a prisão com vista para o porto de Havana. Por várias vezes encontrou vidro moído em sua comida. Ainda se sentia muito doente e perguntou a um outro prisioneiro se ele não teria algo para “aplacar a dor”. Quando o homem disse que sim, Morgan implorou: “Me dê você mesmo a injeção.” Não confiava nos guardas. O companheiro de cela conseguiu uma seringa com o médico da prisão e injetou o remédio em Morgan.
Em dezembro, Menoyo visitou Morgan em La Cabaña. “Você é meu chefe e meu irmão”, Morgan lhe disse. Menoyo, que havia perdido seus dois irmãos para a guerra, respondeu: “Você é meu irmão.” Eles se abraçaram.
Pouco tempo depois da visita, Menoyo e outros doze membros da Segunda Frente fugiram do país em três pequenos barcos de pesca, rumo aos Estados Unidos.
No dia 31 de dezembro, Olga foi autorizada a ver o marido. Ratos corriam pelos cantos da sala de visitas. Embora não quisesse perturbar Morgan, ela acabou contando que vinha sendo mantida em prisão domiciliar e tinha pouca água e comida. “Ninguém pode nos visitar. Os bebês estão doentes”, disse. Ele pediu para que Olga fugisse – que tirasse as crianças de Cuba antes que fosse tarde demais. “Se puder, vá para Toledo”, disse ele. “Minha mãe vai te ajudar.”
Naquela noite, ao voltar para casa, Olga esmagou soníferos em um chocolate quente e ofereceu a bebida aos homens que a vigiavam. Às duas da manhã, quando os guardas pareciam dormir, ela pegou suas filhas. Foi até a embaixada brasileira, onde conseguiu abrigo, e disse ao embaixador e a sua mulher:[4] “Por favor, estou realmente encrencada.”
Morgan também tentava se libertar. Estudou a planta de La Cabaña e a rotina dos guardas à procura de falhas no sistema. “Morgan fez todo tipo de plano de fuga”, disse outro prisioneiro à CIA. Em 9 de março de 1961, os guardas pegaram Morgan e o escoltaram até uma sala onde estava reunido um tribunal militar.
Outros onze réus esperavam por suas sentenças, incluindo Carreras. Olga foi julgada à revelia. Algumas semanas antes, Che Guevara publicara um ensaio denunciando os membros da Segunda Frente. “Revoluções, mudanças sociais aceleradas e radicais, são feitas de circunstâncias”, escreveu. O erro da Revolução Cubana, argumentava Che, era ter se envolvido com homens como os comandantes da Segunda Frente. “A presença deles mostrou que nosso pecado foi nos comprometermos com traidores reais ou potenciais, com gente covarde e fraca de espírito.” E continuou: “A conduta revolucionária reflete a fé revolucionária, e aquele que se diz revolucionário, mas não age como tal, nada mais é que um herege. Vamos colocá-los no mesmo balaio.”
No julgamento, Morgan e Carreras foram acusados de conspiração e traição. Mais tarde, Fabián Escalante, que serviu por muitos anos como chefe da contrainteligência cubana, detalhou o processo contra Morgan, alegando que ele era um antigo agente da inteligência americana – um “camaleão” que, em 1960, tinha tentado “organizar para a CIA um bando de contrarrevolucionários em Escambray”.
A CIA tentava sem dúvida nenhuma fomentar uma nova insurgência nas montanhas. No entanto, documentos americanos que desde então foram liberados para consulta sugerem que Morgan nunca foi um agente da CIA. Pelo contrário: um memorando da agência datado de 5 de outubro de 1960 – duas semanas antes de sua prisão – faz “veementes objeções” à ideia de usar Morgan. “William nunca foi agente dos Estados Unidos”, diz Menoyo. “Isso não passa de uma mentira do regime de Fidel para justificar suas ações.”
No tribunal, Morgan queixou-se de que seu advogado havia acabado de tomar conhecimento das acusações contra ele. Com Carreras, ele foi considerado “pseudorrevolucionário” e condenado à morte por fuzilamento.
O prisioneiro que deu o analgésico a Morgan contou: “A prisão inteira ficou surpresa com a notícia de que Morgan e Carreras seriam mesmo julgados. Nem o mais fanático dos rebeldes acreditava que Fidel Castro mataria aqueles homens que desempenharam papel tão grande na Cubana.”
Morgan negou ter sido um agente estrangeiro e disse: “Defendi essa revolução porque acreditava nela.” E explicou: “Se eu for considerado culpado, caminharei para o paredão sem escolta, com força moral e a consciência limpa.”
Um jovem no fundo da sala ignorou os avisos das autoridades e falou em nome de Morgan. Era o rebelde que havia quebrado o pé em Escambray. “William jamais me abandonaria”, lembra ele.
O julgamento durou pouco mais de um dia. O destino dos réus costumava ser sinalizado pela cela para onde eram levados pouco antes do veredicto. “Quem ia para a copiea, uma pequena sala à direita que parecia uma capela, já sabia que ia morrer”, contou um prisioneiro. “Quem virava à esquerda e ia para outra sala era porque tinha pegado trinta anos de prisão.”
A maioria dos acusados foi levada para a esquerda. Olga, na época com 24 anos, foi condenada a trinta anos. Morgan, juntamente com Carreras, foi levado para a direita e condenado a morrer no dia seguinte.
Morgan pediu para falar com a mãe pela última vez, mas o pedido foi negado. Ele tinha escrito para ela uma carta de cinco páginas em papéis com o símbolo de La Cabaña. Para Morgan, a mesma causa que lhe salvara a vida iria agora conduzi-lo à morte. “Me preparei para isso desde que vim para a prisão”, escreveu. “No fim das contas, o que importa não é quando um homem morre, mas como se morre.”
Morgan sabia que sua carta passaria pelos censores do governo, por isso criticou Fidel de modo apenas indireto. “Nenhum homem tem o direito de impor sua vontade e suas crenças aos outros”, escreveu. “Tenho pena dos que me acusam e são responsáveis pelo que está prestes a acontecer. Eles estão cheios de ambição na cabeça e medo no coração, sem saber que nada de bom pode surgir do mal.” Morgan estava pronto para dar a vida por Cuba: “O caminho da liberdade é difícil – e a estrada está coberta com o sangue dos que tiveram que morrer para que os direitos dos homens sobrevivessem.”
“Escrevo essas coisas”, continuou, “do jeito que elas passam por minha cabeça para que lendo isso você saiba melhor que tipo de homem seu filho é. Criar um garoto como eu não foi nada fácil e a gente nem sempre concordou sobre o que era certo fazer, mas eu sempre tive verdadeira adoração por você e por meu pai.”
Ele disse à mãe: “Não chore por mim. Eu sei que você entende que nossas vidas estão nas mãos de Deus e que ele nos chama quando está pronto para nós. Poucos têm a sorte de ter tempo para se preparar para esse encontro. Se essa é a minha hora, então estarei pronto e encararei a morte não com medo, mas com expectativa. Deus te abençoe… Até nosso reencontro, cuide de Olga e das meninas.”
Loretta não poderia aceitar passivamente o destino de seu filho e lançou uma campanha furiosa para salvá-lo. Ela entrou em contato com o FBI e com a Casa Branca, que lhe responderam: “Nós entendemos perfeitamente a sua dor e somos profundamente solidários com sua preocupação pelo destino de seu filho.”
Depois que as autoridades cubanas recusaram seu pedido de falar com a mãe, Morgan perguntou se poderia dizer adeus a Olga. Recebeu outro não. Ele então começou a escrever uma carta para ela, sabendo que a única coisa que poderia separá-los havia chegado. “Não sou um grande escritor de cartas de amor”, disse ele. “Dizer que eu te amo não é suficiente porque palavras nunca poderão expressar o que sinto por você. Desde a primeira vez que te vi nas montanhas até a última vez, quando te vi na prisão, você tem sido meu amor, minha felicidade, minha companheira na vida e em meus pensamentos até a hora em que vou morrer.”
Ele tentou consolá-la, assegurando que não estava com medo nem considerava a morte uma “inimiga”. Embora alguns membros da Segunda Frente tivessem prometido retaliações caso ele fosse morto, Morgan disse a Olga que não queria ver ninguém buscando vingança em seu nome, nem mesmo contra os guarda-costas que o traíram. “Eles são jovens e terão de se acertar com suas consciências”, disse. “Eu não quero ver sangue derramado por minha causa. É melhor que eu morra porque defendi vidas. Só peço que algum dia a verdade seja revelada e que minhas filhas possam ter orgulho de seu pai.” Ele disse que sentia “uma imensa paz de espírito” em saber que ao menos ela e as meninas estavam a salvo.
As coisas, porém, estavam bastante tumultuadas. Pouco antes da aplicação da sentença, Olga descobriu que vários de seus aliados planejavam um ataque de última hora a La Cabaña. Numa espécie de delírio, ela disse à mulher do embaixador brasileiro que precisaria se ausentar por alguns dias. “Cuide de minhas filhas até eu voltar.” A mulher do embaixador, de quem ela havia se tornado amiga, pediu que ela não fosse. “Preciso salvar William”, ela respondeu. Levando sua pistola calibre 32, Olga entrou num carro que a esperava e saiu a toda velocidade.
Enquanto isso, Morgan conseguiu permissão para ver as filhas, levadas à prisão por um parente de Olga. Por alguns minutos, ele foi autorizado a conversar com elas, a abraçá-las. Em sua carta, Morgan disse a Olga: “Um dia, conte às meninas quem era o pai delas, quais eram suas crenças e seus ideais.” Ele também escreveu uma carta para Bill, filho de seu segundo casamento que agora tinha 4 anos. Na carta, ele dizia que Bill deveria “amar a Deus e ao seu país e lutar por ambos”, e que ele sabia que isso era a coisa certa a fazer “por experiência própria, na maior parte das vezes traumática”.
Em sua carta a Anne, ele disse:
Quando chegar a hora de você casar e ter sua própria família, escolha um cara legal, lindinha, alguém que tenha a cabeça nas nuvens, mas os dois pés no chão. E, se o seu escolhido for do tipo que quer conhecer o mundo – ou que sonha com castelos no ar –, deixe que ele veja o mundo, querida, com seus próprios olhos. Você provavelmente nem sequer vai chegar a ler essa carta, mas, se o fizer, lembre que seu pai era desse tipo de gente que se aventura pelo mundo e que isso costuma ser muito difícil para os que amam esse tipo de homem.
Logo depois de Olga deixar a embaixada do Brasil, as forças de Fidel desmantelaram o plano para libertar Morgan, matando ou prendendo muitos de seus participantes. Olga buscou refúgio em um esconderijo em Santa Clara.
Carreras foi levado ao paredão na noite do dia 11 de março. Cinco minutos depois, Morgan – que tinha feito um apelo para falar diretamente com Fidel Castro – foi trazido para fora da prisão. Ele rezou o tempo inteiro, depois tirou o rosário que trazia no pescoço e entregou para um padre, pedindo que o enviasse para sua mãe. Escreveu para ela: “Deixo o amor de Deus e do meu país.”
Através dos holofotes, Morgan conseguia ver os canos das espingardas. Já não havia mais nenhuma esperança de escapar. Não havia mais castelos no ar.
Segundo o relato de um prisioneiro, uma voz gritou: “Ajoelhe-se e implore por sua vida.”
Foi a última coisa que Morgan pôde controlar. “Eu não me ajoelho para ninguém”, disse ele.
Um dos carrascos atirou em seu joelho direito. O comandante ianque tentou ficar de pé, enquanto o sangue escorria. Em seguida, foi baleado no joelho esquerdo. Finalmente caiu no chão e começou a receber tiros no peito e na cabeça. Seu rosto, disse uma testemunha, “ficou completamente estourado”.
“Muitos dos homens no pátio estavam chorando”, disse o prisioneiro que lhe deu o remédio. “A comoção, que quase virou um motim, foi uma homenagem à popularidade de William Morgan.” Olga, presa em seu esconderijo, ainda não sabia da morte do marido, mas sentiu uma presença no quarto. “Eu vi William”, diz ela. “Eu senti ele me dar um beijo. Nenhum som, só o calor de um beijo.”
Menoyo, que soube da morte do amigo quando estava em um centro de detenção de imigrantes em McAllen, no Texas, contou: “Foi como se tivesse perdido uma parte de mim.”
Quando o advogado de Morgan ligou para Loretta para dar a notícia, ela deixou o telefone cair. A filha de Morgan, Anne, estava na casa da avó: “Lembro de ver minha avó caindo no chão, gritando e chorando. É uma lembrança que nunca vou esquecer.”
No dia 12 de março, ainda sem saber da morte de Morgan, Olga pegou um carro com um amigo rumo a outro esconderijo, dessa vez em Camagüey. Eles estavam a caminho quando, de repente, o carro foi cercado por policiais e Olga foi levada a um centro penitenciário de triagem em Havana, onde um sargento a saudou como “a viúva de William Morgan”. Foi assim que ela ficou sabendo. Olga pulou em cima do sargento aos socos e, em seguida, correu para a rua e saiu pela cidade com a polícia em seu encalço. Ela continuou correndo sem rumo definido. “Corri por uma hora inteira”, diz ela, até que a polícia a alcançou.
Olga foi levada para La Cabaña e forçada a caminhar ao longo da parede onde Morgan tinha sido executado. Depois, os guardas a levaram à outra prisão, onde ela ficou trancada em uma cela que tinha apenas uma cloaca. Durante a noite, lagartos rastejavam em cima dela. “Os guardas me bateram com paus”, ela lembra. “Deus, como me bateram.”
Um mês depois, o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, iniciou a invasão a Cuba que tinha sido aprovada por Eisenhower em 1960. Embora o papel dos Estados Unidos fosse evidente, Kennedy queria ter condições para negá-lo; por isso, o desembarque das tropas foi deslocado da cidade de Trinidad para a remota baía dos Porcos – um lugar bem mais discreto, mas que não permitia aos invasores escapar para as montanhas de Escambray. No último momento, Kennedy cancelou uma segunda onda de ataques aéreos, temendo que eles entregassem o envolvimento direto dos Estados Unidos na operação.
A brigada contrarrevolucionária foi bombardeada assim que desembarcou na praia. Pelo rádio, o comandante enviou mensagens de socorro ao governo americano:
“P.M. 12:28: Sem apoio aéreo não vamos suportar. Os tanques não têm munição suficiente.”
Na madrugada daquele mesmo dia, o comandante mandou seu último recado: “Já não tenho com o que lutar… Adeus, amigos!” A brigada foi varrida do mapa: 114 soldados mortos e mais de mil capturados.
Logo que a baía dos Porcos começou a ser atacada, Fidel declarou pela primeira vez que Cuba era socialista. Philip Bonsal, o ex-embaixador americano, disse que Fidel “não conseguia suportar qualquer partilha de autoridade. Sua ânsia pelo poder é um elemento muito mais definidor de seu temperamento do que qualquer ideologia revolucionária que ele tente vender por aí”.
Menoyo foi liberado do centro de detenção do Texas. Na Flórida, fundou a Alpha 66, uma organização paramilitar que pretendia derrubar Fidel. No dia 28 de dezembro de 1964, ele e outros três membros do grupo pegaram um barco na República Dominicana e desembarcaram no extremo sudeste de Cuba. Foram capturados depois de 28 dias de fuga pelas montanhas. Quando os guardas removeram a venda de seus olhos, ele viu que estava na frente de Fidel Castro. “Eu sabia que você viria, mas sabia também que eu iria pegá-lo”, disse Fidel. Menoyo foi jogado em uma prisão e esquecido, como tinha acontecido com Olga.
A ÚLTIMA BATALHA
Não faz muito tempo – durante minhas pesquisas sobre Morgan –, fui até Miami me encontrar com Olga, uma mulher elegante na casa dos 70 anos, de cabelos grisalhos e ombros curvados que a fazem parecer menor que seu 1,60 metro. “Ainda tenho o espírito revolucionário”, ela disse.
Depois de ter sido presa, em 1961, ela passou uma década atrás das grades sob a condição de plantada, termo usado para quem se recusava a ter aulas de marxismo-leninismo e a ser “reabilitado” pelo Estado. Seu corpo foi se transformando em um raio X de si mesmo graças às greves de fome que fazia para protestar contra o tratamento dado aos prisioneiros. Ela era frequentemente deixada seminua em uma solitária, tendo que usar jornais para se aquecer. Sob a luz fraca da prisão, ela leu a história bíblica de Jó. Os constantes espancamentos a deixaram meio cega de um olho e com problemas de circulação. Suas filhas foram criadas por seus pais, em Cuba, e ouviam os professores dizerem que ela e o pai eram traidores. Segundo Olga, “as meninas sofreram um trauma enorme”.
Loretta, mãe de Morgan, nunca tinha visto Olga pessoalmente, mas fez o que pôde para que a nora fosse libertada, entregando petições a membros do Congresso e pedindo apoio à Igreja Católica. Em 1971, em resposta à crescente pressão internacional, Olga foi liberada mais cedo da prisão. Embora vigiada pela polícia secreta cubana, tentou reconstruir sua família. Oito anos mais tarde, ela e suas filhas – já crescidas e casadas – tentaram ir para os Estados Unidos com parentes. Quando o grupo embarcou no avião, policiais prenderam Olga, forçando-a a ficar, o que a deixou à beira da loucura.
Ela continuou tentando escapar. Em 1980, Fidel iniciou o Êxodo de Mariel, permitindo que muitos cubanos emigrassem para os Estados Unidos, entre eles criminosos e doentes mentais. Olga alegou ser prostituta, mas foi reconhecida e barrada pelas autoridades. Ela passou um mês dormindo em uma barraca perto do porto até que, em agosto, quando o último barco estava prestes a sair, um funcionário lhe disse: “Você pode ir esta noite.” Ela embarcou em um barco caindo aos pedaços, levando apenas um pente e uma escova de dentes.
Quando o barco finalmente se afastou do porto, Olga ouviu um estalo tão alto que parecia um pelotão de fuzilamento. Era um barco da Marinha cubana atirando contra eles. Balas estilhaçaram o casco e o barco começou a afundar lentamente. Foi então que ela ouviu outro som: um helicóptero da guarda costeira americana. Um outro barco foi enviado para resgatá-la com os demais passageiros.
Ao chegar à Flórida, sua mente se encheu de lembranças de quando ela e Morgan estiveram lá, durante a conspiração de Trujillo, duas décadas antes. Na sala de imigração, ela disse a um oficial americano: “Eu sou Olga, a viúva do comandante ianque, William Alexander Morgan. Eu era uma prisioneira política.”
Olga logo foi liberada e partiu para Toledo para ver Loretta. “Ela me abraçou como se estivesse abraçando um pedaço de William”, recorda Olga. Loretta, que nunca viu os outros relacionamentos do filho com bons olhos, lhe disse: “Dá para entender por que meu filho te amou tanto.”
Se a vida com Morgan só tinha espaço para o presente, Olga agora parecia viver presa ao passado. A cada segundo ela era obrigada a rememorar o que tinha vivido. “O passado é o passado, mas é sempre o presente”, é o que ela sempre diz.
Olga soube então que, poucos anos depois da execução de Morgan, o pai dele morrera por complicações de saúde que alguns parentes atribuíram à dor de perder o filho. Também falecera de causas nunca esclarecidas o filho do segundo casamento de Morgan. Já sua filha Anne teve uma adolescência rebelde. “Eu sei que puxei ao meu pai”, disse ela. Anne se casou três vezes – “Sou uma moça aventureira” – e teve dois filhos. Ela guarda a última carta que Morgan lhe enviou. “Ainda choro quando leio isso. É o meu pai.”
Em sua última carta a Olga, Morgan implorava para que ela não deixasse “a vida ficar fria e sem graça. Se encontrar alguém que te ame e te respeite, case com ele. Desde que você esteja feliz, eu também estarei”. Em 1985, Olga de fato se casou com um ferreiro, em Toledo. “Ele é um homem muito bom”, ela me disse. Fez uma pausa, depois acrescentou: “O que tive com William foi…” Lutou para encontrar as palavras em inglês, então escolheu uma frase em espanhol: Un gran amor.
Por mais de duas décadas, honrando um pedido da mãe de William, morta em 1988, Olga travou o que ela chama de “último combate”: restaurar a cidadania americana de William e recuperar seus restos mortais, para que “saíssem do frio” e pudessem descansar no túmulo da família, em Toledo. “Ele não merecia morrer sem um país”, diz Olga.
Por anos, os apelos de Olga foram rejeitados. Em 2005, ela enviou uma carta ao presidente George W. Bush, dizendo: “Por favor, senhor presidente, que Deus te faça tomar a decisão certa. Eu imploro.” Apesar de seus quase 70 anos, ela ameaçou fazer uma greve de fome em frente à Casa Branca. Em 2007, recebeu uma carta do Departamento de Estado reconhecendo que a acusação original contra Morgan era insustentável. A carta dizia: “O sr. Morgan nunca deveria ter perdido sua nacionalidade americana.”
Ainda assim, ela me disse que não poderia descansar enquanto Morgan não fosse enterrado nos Estados Unidos. Em 2002, Marcy Kaptur, uma congressista de Ohio, visitou Cuba e recebeu garantias de Fidel de que os restos mortais de Morgan poderiam ser retirados do cemitério Colón, em Havana, onde ele foi enterrado junto com Carreras. Desde então, Olga diz que tem sido impedida de fazer isso. As autoridades cubanas agora afirmam não encontrar os ossos de Morgan. “Estão brincando comigo.”
Em 1986, depois de quase 22 anos na prisão, durante os quais foi torturado seguidas vezes, Menoyo foi para o exílio na Espanha e renunciou a qualquer tentativa de derrubar o regime com violência. “Depois de muito tempo submetido à selvageria e à barbárie, você chega à conclusão de que tem que rejeitar esses métodos, tem que ser o primeiro a recusar o ódio, caso contrário ele irá destruí-lo”, afirmou.
Para a surpresa de Olga e de muitos outros amigos, Menoyo retornou a Cuba definitivamente em 2003, em busca de reconciliação. “No dia que eu perder os meus sonhos”, disse ele, “estarei frito.” Embora Olga ainda fale com carinho sobre Menoyo, muitos de seus companheiros rebeldes passaram a considerá-lo um traidor.
Recentemente, Menoyo sofreu um aneurisma. Quando falei com ele ao telefone pela última vez, sua voz estava fraca e ele ficou sem forças depois de poucos minutos de conversa. Ele assistiu a Fidel se agarrar ao poder até 2006, aos 80 anos, quando finalmente cedeu a Presidência a seu irmão, Raúl, que tinha 75. Menoyo afirmou ainda ter esperanças de ver “o fim deste filme”. Mas ele não acreditava que o regime algum dia entregasse os ossos de Morgan. “Ainda outro dia Fidel andava por aí denunciando William, dizendo que ele trabalhava para a CIA”, disse Menoyo. Ele explicou que, para o regime, acatar o pedido de Olga seria como ceder a um traidor da revolução.
Olga, no entanto, tem fé de que no fim das contas vai vencer. Quando eu a conheci em Miami, ela estava vindo de Ohio para uma reunião do Alpha 66, e afirmou: “Não posso desistir. Se for preciso, vou até o cemitério e carrego os ossos eu mesma.” Ela acendeu um cigarro, seus dedos manchados tremiam. Por um momento, fechou os olhos como se estivesse segurando as lágrimas. Então disse: “Se eu puder fazer isso por ele, nós dois finalmente teremos paz, e seremos livres.”
[1] O jovem protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger.
[2] Episódio narrado na matéria “O homem que inventou Fidel”, de Anthony de Palma, publicada na piauí nº 01, em outubro de 2006.
[3] Organização de apoio a refugiados de guerra criada em 1933 a pedido de Albert Einstein.
[4] O embaixador brasileiro era Vasco Leitão da Cunha, e sua mulher, Virgínia Leitão Quartim da Cunha; ele seria o primeiro chanceler do regime militar, de 1964 a 1966.