ILUSTRAÇÃO: ANDREA DESZÖ
O coração do meu mundo ou o papagaio que gostava de bolo de arroz
Às vezes penso que o meu vício de deformar a realidade começou precisamente com a necessidade de ganhar lugar no passado dos meus pais e irmã
Dulce Maria Cardoso | Edição 105, Junho 2015
À Teresa, que nos morreu tão cedo
Soube há pouco mais de dois meses que a minha mãe tem de ser operada ao coração. Quando a minha irmã me deu a notícia, tentou fazê-lo com naturalidade para não me assustar, o médico disse que o cansaço de que a mãe se tem queixado se deve a uma válvula que precisa de ser substituída, depois da operação a mãe sentir-se-á muito melhor, é como se ficasse com um motor novo. O nervoso foi tornando a conversa parecida com um assunto de mecânica, mas confesso que já não estava a prestar atenção ao que a minha irmã dizia, quando sou apanhada por uma má notícia não me permito mais do que um pensamento, a minha irmã detalhava o que o médico tinha dito mas eu estava presa numa frase que me repetia, vai correr tudo bem, vai correr tudo bem. Não decorei o nome da válvula nem da operação mas não é um caso grave, o médico considera um procedimento banal, no entender dele o coração da minha mãe ter-se avariado é tão banal como existirem, por esse mundo, milhões de corações desencontrados no amor, numa morte que inexplicavelmente não leva o corpo. Só que, contrariamente ao desacerto desses milhões de corações, o coração da minha mãe pode ser aberto e consertado. O médico acrescentou que a idade da minha mãe, o bom estado geral da saúde dela, o aperfeiçoamento da técnica, a competência dos profissionais, as instalações hospitalares, tudo isto somado faz com que à minha mãe esteja prometida uma história com final feliz. Não acredito que o médico tenha dito um final feliz, a minha irmã deve ter inventado, inventa-se sempre, a verdade não se deixa apanhar sem artifícios por quem a persegue.
A minha mãe fez 76 anos a 28 de abril, mas em 2015, aqui, neste canto do mundo, ainda se é novo para morrer com essa idade, há muita gente a aproximar-se dos 90 anos, cada vez mais gente a aproximar-se dos 100. Só que as mulheres da nossa família morreram cedo, a mãe da minha mãe, a avó Marquinhas, morreu de doença aos 63 e a irmã da minha mãe, a tia Odete, morreu de doença aos 58 anos, e por isso a minha mãe entende como um milagre ter passado os 70, ainda por cima tendo estado tão doente entre os 28 e os 34 anos e depois de lhe ter sido dito pelos médicos que tinha poucas probabilidades de sobreviver, muito menos de usufruir de uma vida longa.
Como a minha mãe sempre confundiu datas, não sei se foi exatamente entre estas idades que esteve doente. Uma das minhas recordações mais antigas é a de ouvir as vizinhas num suspiro que talvez não fosse maldoso, pobres crianças, tão novas para ficarem sem mãe. Eu não sabia o que era ficar sem mãe mas a minha irmã, nos seus cinco anos de avanço, parecia saber, e começava a chorar. A minha mãe estava internada no Hospital Universitário de Luanda e para mim ficar sem mãe era já isso, não podia ser diferente disso. A minha irmã teimava que eu estava enganada, ficar sem mãe era muito diferente, significava que nunca mais poderíamos vê-la, nunca mais poderíamos falar-lhe, nunca mais poderíamos abraçá-la. Ficar sem mãe também queria dizer que a mãe nunca mais nos faria pão de ló, nunca mais nos levaria o lanche à escola quando nos esquecêssemos, nunca mais nos chamaria da rua, nunca mais nos ajudaria com os banhos, nunca mais nos castigaria, nunca mais faria nada de nada. Se ficássemos sem mãe queria dizer que a mãe tinha ido para o céu e só a voltaríamos a ver quando fôssemos para lá também, o que em geral só acontecia quando se era velho. Continuava sem me assustar muito porque para mim o nunca mais durava minutos. Se me zangava, ameaçava a minha irmã ou outro miúdo, nunca mais falo contigo, e isso apenas queria dizer não falar durante uns minutos ou, se a zanga fosse mesmo feia, durante umas horas. A questão do céu também não me parecia muito problemática porque os aviões andavam no céu, se a mãe fosse para o céu seria apenas necessário apanhar um avião e sair no sítio onde a mãe estivesse, como fazíamos quando apanhávamos o ônibus na rua principal para ir à casa dos tios, que ficava na Baixa, ou ao médico ou tratar de algum assunto.
A minha irmã desistiu de me explicar o que era a morte porque eu não conseguia compreender, para mim ainda não existia a morte, ainda nem sequer existia o futuro. Existia o dia em que estávamos, e o dia era acordar, brincar, comer, fazer a sesta, correr, descansar, lanchar, brincar, tomar banho, jantar, dormir. Conhecia as palavras que correspondiam a estas ações, dizia, tenho fome, tenho sede, quero brincar, quero dormir, e tudo acontecia com simplicidade. Também existiam coisas para as quais não tinha palavras, como o que me fazia dar pulos ao avistar o carro do meu pai no regresso do trabalho ou esconder-me debaixo da cama se acordava com medo a meio da noite. Não tinha palavras para dizer que ficava feliz por ver o meu pai regressar ao fim do dia ou que debaixo da cama me sentia protegida porque era como se o escuro já não me pudesse apanhar. Também não associava palavras às idas ao hospital para ver a minha mãe. Ou, melhor, ao jardim do hospital, porque não era permitida a entrada no edifício de crianças com menos de 6 anos.
Aos domingos, o meu pai levava-me ao jardim do enorme edifício, ou que recordo como sendo enorme, e apontava para uma pessoa numa janela do 2º andar, uma pessoa que a distância tornava muito pequena e irreconhecível, mas que o meu pai garantia que era a minha mãe e que estava a acenar-me. Eu não conseguia distinguir se era a minha mãe e se me acenava, possivelmente já então era míope, não me recordo de alguma vez ter visto o mundo definido nas suas formas e cores, sempre se me apresentou argamassado e disforme, e foi assim que me habituei a vê-lo, que me é confortável vê-lo, raramente uso óculos, a realidade focada é quase sempre insuportável, como a muita fome ou a muita sede.
Por causa da doença, tinham cortado o cabelo à minha mãe e, também por isso, a pessoa que estava na janela ainda me era mais desconhecida. Mas o meu pai afirmava que era a minha mãe e insistia para que eu acenasse de volta. Começava numa birra, chorava por não poder entrar no hospital, implorava ao meu pai para me levar lá dentro, queria ver a minha mãe, não havia visita em que não me atirasse para o chão do jardim, em que não me sujasse na terra vermelha e na seiva das ervas, que não voltasse para casa com os riscos das lágrimas na pele suja de pó. O meu pai acabava por perder a paciência e zangava-se comigo, tornava-se peremptório, eu só poderia chegar perto da mãe quando ela ficasse boa e fosse para casa, e se continuasse a portar-me assim tão mal a mãe ficava triste e a sua saúde piorava, o que atrasaria a ida para casa. Era nessa altura, quando eu me assustava com a ideia de a mãe ficar ainda mais doente, que o meu pai me tornava a explicar a enorme importância do meu aceno, quanto mais eu acenasse mais depressa a minha mãe ficaria boa. Não era pois um aceno qualquer. Tinha de acenar de forma a dizer à minha mãe que estava boa, que me portava bem, que gostava muito dela e tinha muitas saudades.
Fui aprendendo a falar com a minha mãe por acenos e não só lhe dizia o que o meu pai me mandava como lhe contava coisas minhas, o cão da Anita já não me rosnava quando lhe fazia festas, já conseguia subir para os ramos da mangueira mais depressa do que os rapazes, o Luís Manuel fizera um barco em miniatura no qual eu estava expressamente proibida de tocar, as primas tinham-me prometido um bibelô e eu não sabia o que era um bibelô, perguntava a toda a gente o que era mas ninguém me explicava, não fazia mal, um nome assim só podia ser de uma coisa maravilhosa, bibelô. Ia contando a minha vida com acenos até a minha mãe desaparecer e ficar apenas a janela, um quadrado onde nem sequer um cortinado esvoaçava, um quadrado que dava para um escuro tão assustador como o escuro da noite.
Quando a janela ficava vazia, o meu pai pegava-me ao colo para me levar para o carro apesar de eu não estar cansada. Apertava-me contra o peito como se me estivesse a proteger de uma coisa terrível, como se estivéssemos a passar por entre monstros invisíveis. A minha irmã já tinha idade para as visitas normais e nunca ia conosco ao jardim do hospital. Passávamos por casa para apanhá-la e íamos aos gelados no Baleizão. Eu pedia baunilha e chocolate, os sabores que ainda hoje peço, não me lembro de alguma vez ter conseguido pedir outros. A minha irmã ia variando de sabores, o que me intrigava quase tanto quanto o fato de o meu pai preferir cervejas a gelados. A quando do último copo, o meu pai deixava-me pôr os lábios na espuma da cerveja para eu fazer de conta que tinha um bigode, e lembro-me de atravessar a esplanada orgulhosa do meu bigode de cerveja, de ser a palhacita que fazia rir todos. De regresso a casa, o meu pai prometia-nos que a mãe sairia do hospital em breve, para tanto a minha irmã só tinha de continuar a portar-se bem e a ser boa aluna e eu só tinha de comer a comida toda que me punham no prato, não dizer mentiras, não estragar as bonecas da minha irmã nem os brinquedos dos outros meninos, não subir às árvores, não entrar na casa dos vizinhos pela janela, uma lista interminável de proibições e tarefas que indiciava um enorme trabalho pela frente.
Nunca como então pus tanta fé no meu bom comportamento, e a verdade é que a minha mãe voltou para casa, ao contrário do que os médicos e as vizinhas previam. Se a minha mãe tivesse morrido naquela altura talvez eu não tivesse sabido o que era ficar sem mãe porque também não sabia bem o que era tê-la. A doença e outras circunstâncias, tão ou mais dolorosas do que a doença, fizeram com que só muitos anos mais tarde tivesse conhecido a minha mãe no papel de mãe. Da infância guardo a imagem de uma mulher quase sempre doente, que estava muitas vezes zangada com toda a gente, incluindo o meu pai e a minha irmã. Também estava quase sempre zangada comigo mas isso era normal, os adultos zangavam-se comigo por causa das mentiras e da minha obstinação em querer fazer coisas que todos garantiam ser impossíveis.
Só havia dois adultos que raramente se zangavam comigo: o meu pai e o tio Augusto, único irmão do meu pai. Um e outro tentavam domar a minha personalidade, que entendiam ser desajustada do objetivo de ir longe na vida, ambos acreditavam que com os ensinamentos certos eu era das que poderia ir longe na vida, ainda que o ir longe na vida tivesse significados diferentes para cada um deles. Para o meu pai os estudos eram obrigatórios, a minha irmã e eu teríamos de ir para a universidade, a minha irmã seria médica e eu advogada, era fundamental que nunca dependêssemos de um homem para o nosso sustento. O meu tio discordava, os estudos não eram importantes, prova disso era que na família ninguém tinha morrido de fome apesar de nenhum dos homens ter estudado, e sendo eu rapariga estudar só atrapalhava, os homens não queriam mulheres com estudos. O meu tio sugeria que eu aprendesse uma arte com que me entretivesse até arranjar o marido que me tornaria mãe e dona de casa, como todas as mulheres da família e do bairro, uma arte útil como a costura, por exemplo, assim teria uma boa vida e seria feliz, era esse o meu futuro, os estudos, a universidade e a advocacia eram devaneios da ambição desmesurada do tolo do meu pai.
Só quase adulta compreendi quão inteligente e generoso foi o meu pai, quanta coragem teve. Nascido em 1928, numa casa pobre do Amedo, pequena e fria aldeia transmontana, trabalhou muito para me livrar a mim e à minha irmã do futuro das raparigas, para nos livrar da sorte de dependermos de um homem como a mãe dele, a minha avó Eufémia, dependia do pai dele, o meu avô António, que lhe batia todos os dias. O tio Augusto também me ensinou muitas coisas, coisas até de rapaz, como nadar, andar de bicicleta, correr na baía, mas nada do que o tio Augusto me ensinou precisava de futuro para ser compreendido. Não era por o tio Augusto me ensinar coisas de rapaz ou por me ensinar coisas que eu aprendia rapidamente que eu gostava tanto dele, gostava dele porque me deixava cantar ainda que eu desafinasse muito e por dizer que as minhas gargalhadas, já então escangalhadas e excessivas, afastavam a tristeza. O meu pai não gostava de cantorias nem das minhas gargalhadas, e se a sua severidade não lhe mirrava a alma tinha esse efeito nos que o rodeavam. Ou pelo menos em mim.
Não me lembro com exatidão quando decidi que ia ser o que eu quisesse ser, e ainda fui advogada durante quatro anos para provar ao meu pai o enorme e grato amor que lhe tinha. Mas amor algum precisa de prova nem amor algum nos pode fazer infelizes. O meu pai morreu há catorze anos, já eu tinha desistido de ser advogada mas ainda andava desencontrada de mim, ainda me parecia mais fácil aceitar o que me era proposto, ter a quem atribuir a responsabilidade dos meus fracassos. Desde então, espero que o meu pai tenha arranjado maneira de acompanhar o que tenho feito da minha vida e que esteja contente por eu já ter aprendido que de cada vez que falho, isto é, de cada vez que me faço infeliz, só a mim o devo e só a mim peço contas.
A minha mãe vai ser operada ao coração daqui a umas semanas e já sei o que é ficar sem mãe e também já sei como a morte do meu pai me vai matando um bocadinho todos os dias na saudade que tenho. Não, não é saudade, que a saudade pressupõe a possibilidade de um reencontro, o que sinto é outra coisa para que não tenho palavras, ainda não tenho palavras, talvez nunca as tenha, mas está bem que seja assim, há coisas que as palavras só atrapalham. O coração da minha mãe, o coração do meu mundo, vai ser aberto na sala de operações para que lhe seja substituída uma válvula, e se alguma coisa correr mal o coração do meu mundo pode ficar tão parado como o Imaculado Coração que, quando eu era criança, estava na mesinha de cabeceira do lado da minha mãe em cima da toalhinha cor-de-rosa.
Não podia tocar no Imaculado Coração, não fossem as minhas mãos sujas de esgravatar tesouros no nosso quintal e nos quintais vizinhos sujar o manto branco que cobria a Virgem. Raro era o dia em que não encontrava um tesouro, a imaginação enganava-me tanto como agora me engana a memória porque me lembro das minhas mãos impecavelmente limpas e de tocar no Imaculado Coração, quando sei que nunca aconteceu nem uma coisa nem outra. A professora Maria de Jesus garantia-nos que os corações estavam sempre a bater e eu tinha medo de, ao tocar no Imaculado, provocar uma reação qualquer que o fizesse começar a bater, tinha medo que a Virgem perdesse aquele coração parado e passasse a ter um coração como os nossos, um coração parecido com um truque de magia, a mão sobre o peito e pum-pum-pum-pum. Uma vez ou outra ainda falei à professora do Imaculado Coração que existia parado nas igrejas e no quarto dos meus pais, mas a professora limitou-se a dizer que o Imaculado Coração era outra coisa, não era um coração como o que estava desenhado no mapa do corpo humano, eu compreenderia quando crescesse. Era-me dito tantas vezes que compreenderia isto e aquilo quando crescesse que tinha medo de, ao crescer, não ter tempo para mais nada além de compreender a infinidade de mistérios e enigmas que ia acumulando.
A professora não nos dizia o que acontecia quando os corações paravam e nós éramos tão novos que não perguntávamos, ainda tudo existia sem fim, nós, as mães e os corações, os nossos, que eram iguais ao que estava desenhado no mapa do corpo humano e que batia, e o Imaculado Coração, que estando parado tinha raios de luz, uma inscrição em latim e uma coroa de folhas verdes e papudas como o veludo da poltrona da sala, um coração parado que não fazia lembrar sangue, veias e as feiuras do coração do mapa do corpo humano. O que mais me intrigava era a serenidade da Virgem que, vivendo com o coração fora do peito, exibia aquele sorriso apaziguador de quem não estava incomodada. Não devia ser fácil ter o coração fora do peito, não conhecia ninguém que o tivesse, nem mesmo a dona Gilda, que afirmava muitas vezes ter o coração na boca quando se lamentava por ter dito ou feito o que não queria. Durante muito tempo tentei descobrir o coração na boca da dona Gilda, vigiava-a sempre que ela falava, mas como nunca avistei um bocadito sequer de coração convenci-me de que a dona Gilda ainda era mais mentirosa do que eu.
Quando o tédio das brincadeiras da rua me fazia lembrar o enigma do Imaculado Coração, ia às escondidas para o quarto dos meus pais tentar descobrir na cara da Virgem o sobressalto que um coração fora do peito tinha de provocar, havia de distinguir um esgar de medo ou dor, ou pelo menos cansaço, incômodo, se olhasse bem veria qualquer coisa, não podia ser de outra maneira, o coração fora do peito tinha de causar algum transtorno visível. Olhava muito atenta para a Virgem, que nunca abandonava o sorriso beatífico nem a quietude das mãos abertas onde a minha mãe colocava o terço. Aborrecia-me. Não ficaria no quarto dos meus pais mais do que uns minutos mas tinha a sensação de lá ter estado horas, em criança o tempo tinha a enganadora medida do meu tédio e da minha inquietação. Ainda no quarto dos meus pais, mas já distraída do enigma, havia sempre qualquer coisa que me chamava da rua, o assobio do Paulo, o raspar do carrinho de rolamentos do Quitério, os travões da bicicleta do Zé, as contas do jogo de amarelinha da Rosita e da Ana, havia tantas coisas na rua de que eu gostava. Ainda não tinha começado a brincar e já me tinha esquecido do enigma do Imaculado Coração, quando chegava à rua era como se ainda fosse ontem ou já amanhã, tanto fazia, os dias pegavam-se uns nos outros, a minha infância foi uma manhã, uma tarde e uma noite repetidas, na minha infância nada teve princípio nem fim, os dias, a rua, os corações, nós.
A minha mãe já havia regressado a casa há alguns meses, livre de perigo, quando a Isabelinha, minha colega do 3º ano, morreu num desastre de automóvel. A Isabelinha nunca mais voltou à escola. A carteira da Isabelinha nunca mais deixou de estar vazia, nunca mais a Isabelinha nos mostrou o que trazia de lanche, nunca mais lhe vimos os olhos mortiços espevitarem-se quando a pedra calhava de primeira o céu da amarelinha, nunca mais a ouvimos inventar desculpas para não trepar ao muro, nunca mais cantou a linda falua que vem de Belém, de que tanto gostava. Nunca mais. Depois da morte da Isabelinha os meus dias começam e acabam, começam e acabam, o tempo deixou de existir parado, passei a avistar o fim, a saber que os corações são órgãos que podem parar de bater, que tendo o tamanho de um punho fechado batem cerca de 109 440 a 110 880 vezes por dia, bombeiam cerca de 5 litros de sangue, têm quatro câmaras, dois átrios e dois ventrículos, uma metade direita onde circula sangue venoso e uma metade esquerda onde circula sangue arterial, a ciência sabe quase tudo sobre o coração da minha mãe. E sobre o meu também. Sabe até que teoricamente sobrevivo à morte do coração do meu mundo, garante que posso continuar a viver sem o que sempre tive, sem o coração da minha mãe a bater, a ciência não encontra sequer mistério nenhum nisso porque entende que fomos programados para sobreviver.
Quando aprendi a fazer contas na escola apercebi-me de que o meu pai, a minha mãe e a minha irmã tinham existido sem mim durante muito tempo. Trinta e seis, 25 e 5 anos, respectivamente. O que começou por ser surpreendente depressa passou a um amargo sentimento aparentado de traição, nunca tendo eu existido um segundo sem os meus pais e irmã parecia-me inconcebível que eles tivessem conseguido viver tantos anos sem mim. Descobri pela mesma altura que a minha mãe também já tinha tido precisamente a minha idade, também tinha sido uma criança, fato que me pareceu deveras espantoso. A minha mãe ralhava-me constantemente por eu fazer coisas que as crianças fazem, se a minha mãe tivesse sido criança saberia do prazer de andar descalça ou de subir a uma árvore, saberia como era difícil tomar banho com sono, como o pente aleijava no couro cabeludo, como era impossível manter o vestido limpo, como era tentador o bolo acabado de fazer e a tortura de esperar que as visitas chegassem para o comer. Não, a minha mãe não podia ter sido criança, ainda que contasse muitas histórias de quando era criança, histórias que se passavam em cenários que me eram desconhecidos, a Metrópole e o Brasil, histórias que tinham intervenientes que eu nunca tinha visto, avós, tios e primos, histórias onde não havia qualquer menção a mim ou à minha irmã, onde nem sequer o meu pai aparecia. Para me sossegar, perguntava à minha mãe se em criança ela já sabia que me teria, mas a minha mãe respondia-me que ninguém pode saber o futuro. Eu ficava triste porque na minha cabeça os meus pais, a minha irmã e eu existíamos como um só desde sempre, era inadmissível que a minha mãe também não soubesse isso. Às vezes penso que o meu vício de deformar a realidade começou precisamente com a necessidade de ganhar lugar no passado dos meus pais e irmã, que foi o meu desgosto de não existir com os meus pais e irmã desde sempre que me fez torcer o tempo e os acontecimentos para que ao recontar-nos passássemos a ser realmente um corpo de quatro pessoas desde sempre e para sempre. Ao recontar-nos eu podia salvar-nos da lei da vida a que a minha mãe tantas vezes se referia para justificar que pudéssemos existir uns sem os outros. A lei da vida servia para justificar isso e muitas outras coisas, a orfandade dos filhos da dona Alzira, o sangue que todos os meses aparecia nas calcinhas da minha irmã, as amantes do meu pai, a doença da minha mãe. A lei da vida era responsável por quase tudo o que acontecia de assustador. Eu não sabia alterar a lei da vida, mas quando, na festa do 4º ano, disse à professora e aos meus colegas que dali a uns dias iria para o Brasil, para aí continuar os meus estudos, como a minha mãe tinha feito, não penso que estivesse a mentir, creio que estava simplesmente a tentar refazer a história da minha mãe, que foi levada aos 11 anos para o Brasil pelo tio Francisco.
Nunca estudei no Brasil, ao contrário do que jurei na festa do 4º ano que iria acontecer, e só aí fui pela primeira vez em 2005, para participar da Bienal do Rio de Janeiro. A minha mãe também nunca estudou no Brasil, mas é verdade que em 1950 atravessou o Atlântico a bordo do Highland Princess, levada pelo tio Francisco, há muitos anos emigrado no Brasil, para estudar para professora. A minha mãe tinha 11 anos, tranças arruivadas e o exame de admissão do 4º ano, que lhe conferia o título e a competência de professora substituta. Aos 11 anos, em 1950, já não se era bem criança, mas a minha mãe não passava ainda de uma ingênua menina sonhadora que nunca tinha saído de Trás-os-Montes.
Das primeiras vezes que ouvi a minha mãe contar a história do Brasil pensava que o Brasil era um bairro da cidade de Luanda como a Mutamba, por exemplo, apesar de a minha mãe ressalvar que tinha ido de barco, num barco muito grande, que tinha demorado muitos dias e que no Brasil se falava de forma diferente. Ok, o Brasil parecia ser realmente muito longe, tinha de se ir de barco, mas também íamos de barco para o Mussulo. E a Baixa de Luanda também ficava muito longe do nosso bairro. E em Luanda também havia gente a falar de forma diferente, eu própria falava quimbundo quando queria dizer coisas que os adultos não percebessem. Só na escola, ao aprender os continentes, percebi mais ou menos onde ficava o Brasil, para onde o tio Francisco, irmão mais velho do pai da minha mãe, o avô Aníbal, levara a minha mãe. Conhecia o avô Aníbal de fotografia e o tio Francisco nem isso, mas passei a infância a odiar o tio Francisco. Muito antes de os livros e o cinema me terem dado a conhecer vilões, já eu odiava o tio Francisco como se odeiam os vilões dos livros e do cinema. Odiava o tio Francisco por ter estragado o futuro da minha mãe ao aparecer na Fonte Longa, outra pequena, pobre e fria aldeia transmontana, para visitar os familiares e de caminho convencer o avô Aníbal de que os estudos eram muito melhores no Brasil do que em Bragança. Se o vilão do tio Francisco não tivesse aparecido e não se tivesse aproveitado da credulidade do avô Aníbal, a minha mãe teria sido professora como a minha professora Maria de Jesus, que eu tanto admirava. E se tivesse sido professora como a professora Maria de Jesus possivelmente nunca teria ficado doente como ficou, portanto, até da doença da minha mãe o vilão do tio Francisco era culpado.
Tinha sido muito fácil o tio Francisco enganar o avô Aníbal, que não sabia ler nem escrever e nunca tinha ido mais longe do que Mirandela. Para o avô Aníbal, Bragança e Brasil eram a mesma coisa, lugares inalcançáveis a cavalo, e se o tio Francisco garantia que os estudos eram melhores no Brasil e que uma vez concluídos se ganhava muito mais dinheiro numa terra de oportunidades como o Brasil, por que razão ficaria a minha mãe em Bragança, uma terra cuja única oportunidade era a da miséria? A professora da minha mãe ainda argumentou com a distância, as doenças, os perigos e outros detalhes, como a solidão, mas o avô Aníbal, confiando no sangue do seu sangue, vendeu por 45 contos um terreno a que chamavam o Martincel, para dar metade do dinheiro ao tio Francisco e assim custear a estada e os estudos da minha mãe. Deu-lhe ainda uma arca de enxoval, uma carne de fumeiro e vários queijos Terrincho. Foi com isto tudo e com a minha mãe que o vilão do tio Francisco embarcou num qualquer dia de fevereiro de 1950 no Highland Princess. A minha mãe tinha então a mesma idade que eu quando em 1975 entrei pela primeira vez num avião para sair de Luanda. Nos 25 anos que me separam da minha mãe cabem coincidências como esta. Mas, ao contrário da minha mãe, em 1975 eu partia com os meus pais e a minha irmã. Fugíamos da guerra civil, deixávamos tudo, o destino podia ter sido o Brasil, mas foi a Metrópole. Só que isso é outra história.
O Highland Princess parou em Cabo Verde, no Rio de Janeiro e em Santos. A minha mãe contava dos abastecimentos de carvão, das pessoas expulsas em Cabo Verde por não terem bilhete, da festa da passagem do Equador, do calor das camaratas, do cheiro da comida. Na voz da minha mãe, a viagem no Highland Princess parecia uma viagem como a dos filmes da matinê de domingo. Só faltava terem sido assaltados por piratas. Chegada à enorme cidade de São Paulo, a minha mãe não queria acreditar na altura dos prédios nem na largura das avenidas, nos carros, no calor. Nada lhe parecia real. Foi viver com a família do tio Francisco, que era também vilã, apesar de a minha mãe ainda não saber disso. A tia chamava-se Beatriz e era síria. Eu perguntava à minha mãe o que era uma síria, ela explicava-me que uma síria era uma mulher nascida na Síria, e eu continuava sem perceber. Por ser síria e má, imaginava a tia Beatriz entre humana e monstro, talvez até tivesse quatro braços e uma cauda. Havia ainda dois primos que tinham nomes de príncipes, o António Carlos e a Sílvia Helena, mas que quase não entravam na história porque estavam sempre ausentes, eram estudantes. A família vilã vivia na rua Itapirapés, número 54, e tinha um papagaio que gostava de bolo de arroz.
A minha mãe nunca tinha comido bolo de arroz, e quando provou gostou muito. O gosto da minha mãe pelo bolo de arroz acabou por ser responsável pela morte do papagaio.
Mas antes disso, um dia depois de ter chegado a São Paulo, a tia síria cortou as tranças de que a minha mãe tanto se orgulhava. Justificou-se com o calor, com o trabalho de entrançar o cabelo e com o fato de que a minha mãe iria começar dali a dias a ajudar na cozinha de uma pizzaria na rua São Caetano. Como eu não sabia o que era uma pizzaria não conseguia entender bem esta parte da história mas percebia que o vilão do tio Francisco tinha posto a minha mãe a trabalhar em vez de a ter posto a estudar. Por vezes a minha mãe ficava triste nesta parte da história e já não contava do papagaio que gostava de bolo de arroz e dos vizinhos japoneses. Eu também não sabia o que era o Japão, e os vizinhos japoneses para mim eram como os vizinhos de Luanda só que se chamavam japoneses. Havia ainda italianos nas histórias da minha mãe, bondes e filas enormes porque não havia pão, e eu também não sabia o que era nada disso.
Mas sabia o que era um papagaio porque o tio Augusto tinha o Jacó, que imitava as minhas gargalhadas. Só que o papagaio que gostava de bolo de arroz era muito diferente do Jacó porque era um papagaio delator. Por estranho que pareça, a minha mãe ainda hoje jura que o papagaio que gostava de bolo de arroz era capaz de contar à tia síria tudo o que a minha mãe fazia e que a denunciava se em vez de limpar a casa a minha mãe fosse brincar com os vizinhos japoneses. Se digo à minha mãe que é impossível existir um papagaio com essa capacidade, a minha mãe zanga-se e torna a jurar que o papagaio contava tudo à tia síria, em especial se a minha mãe lhe roubava um bocado do bolo de arroz.
Todas as tardes a tia síria trazia um bolo de arroz ao papagaio, todas as tardes a minha mãe roubava um bocado do bolo de arroz, todas as tardes o papagaio fazia queixa, todas as tardes a tia síria batia na minha mãe. Assim aconteceu até que os vizinhos japoneses sugeriram que a minha mãe matasse o papagaio. Se é difícil acreditar num papagaio delator, mais difícil é acreditar na maneira que escolheram para o matar, mas a minha mãe garante que ela e os vizinhos japoneses costuraram o rabo do papagaio com uma agulha e linha. O papagaio ficou a gritar cu-cosido, cu-cosido, cu-cosido durante algum tempo, mas, não tendo conseguido perceber a extravagância do que o papagaio dizia, a tia síria não conseguiu salvá-lo.
O papagaio morreu, a tia síria deixou de trazer bolo de arroz e a minha mãe nunca mais comeu uma migalha sequer de bolo de arroz. Quando diz isto, a minha mãe fica a olhar para mim com os olhos umedecidos, eu quero tanto salvá-la desta história, salvar o papagaio que gostava de bolo de arroz, mas não consigo. É a lei da vida. Passados três anos, a minha mãe regressou a Trás-os-Montes, já demasiado velha para estudar em Bragança. Passados dois anos sobre esses três anos, conheceu o meu pai com quem fugiu, e assim começou outra história.
Contam-se histórias por tudo e por nada e eu conto-as muitas vezes para afugentar o medo. Escrevi esta história porque a minha mãe vai ser operada ao coração e eu tenho medo. A minha mãe pode morrer e eu tenho medo. E não sei pensar nisso.
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