ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
O dedilhado misterioso
Um ano agitado para o mestre do violão gaúcho
Gustavo Zeitel | Edição 169, Outubro 2020
O violonista argentino Lucio Yanel, de 74 anos, parece aturdido na tarde do dia 8 de setembro. O mau tempo havia adiado o show que ele faria num drive-in durante a Semana Farroupilha, mas os ensaios para as suas lives do mês continuavam. Uma das composições repetidas é o clássico La Chucara. Como quem desfia um tecido, Yanel repassa o tema, na sala de casa, em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. O dedilhado misterioso do violão rebenta em um bailado sedutor. “Estou em um nível de mediunidade. Há um canal aberto por onde alguém assovia, e eu saio tocando”, afirma o músico.
Por ter inventado uma nova forma de tocar o instrumento, Yanel é tido como um divisor de águas na história do violão gaúcho. “Aqui, tocavam Bach e Vivaldi, mas não se encontrava um solista sequer nos ritmos folclóricos. O violão só fazia a base”, diz. O violonista incorporou a linguagem erudita à música da região, elegendo o dedilhado como ferramenta de execução e impondo a cadência rítmica como base principal.
Não à toa, o movimento privilegia gêneros específicos, como as danças tradicionais sul-americanas desenvolvidas a partir do passado colonial. As origens da chacarera, por exemplo, remontam ao início do século XVIII. O chamamé, palavra que significa “improviso” em guarani, está ligado a variações da polca paraguaia e rompe fronteiras ao ser difundido, até hoje, em Mato Grosso do Sul. Já a milonga, que se popularizou nos subúrbios de Buenos Aires e Montevidéu, é oriunda da Andaluzia, na Espanha.
Sob a influência do argentino, outros instrumentistas deixaram as palhetas de lado, e o violão dedilhado ganhou o centro dos palcos. Yanel tornou-se um mestre para as novas gerações de músicos, como Yamandu Costa, seu aluno mais famoso. Para 2021, está previsto o lançamento do documentário Dois Tempos, uma espécie de road movie que registrou a viagem feita pelos dois no ano passado rumo à Festa Nacional do Chamamé, em Corrientes, na Argentina. No filme, Yanel ata as duas pontas da vida ao atravessar a fronteira, a bordo de um motorhome, rumo à sua cidade natal.
Federico Nelson Giles – nome verdadeiro de Yanel – teve o primeiro contato com o violão aos 9 anos, após um jogo de futebol. Do campo de várzea de Corrientes, viu um amigo se aproximar com o instrumento. Yanel tomou o violão emprestado e descobriu o som dos primeiros acordes.
Filho de uma professora primária e um maquinista de trem, o menino causava espanto entre as pessoas da família por viver agarrado ao violão, como “um bicho de luz em volta de uma lâmpada”, ele conta. A vocação desenvolveu-se em técnica apurada sem que o rapaz colocasse os pés numa escola de música.
O violonista cresceu sem ídolos. Com o tempo, passou a admirar os trabalhos de Eduardo Isaac, Thiago Colombo e Marco Pereira. Em 1964, tocou ao lado de Raulito Barboza, um famoso acordeonista argentino, e dois anos depois acompanhou a cantora Mercedes Sosa. “Ela chegou para mim e disse: Usted es un artista.”
Lucio Yanel – nome artístico que adotou por sugestão de uma gravadora – tocou na noite das principais cidades da Argentina, sobretudo em peñas, bares com espetáculos musicais. “Era uma época em que se tinha tempo. As pessoas desfrutavam da arte e havia muitos teatros”, diz. Em 1971, Yanel veio ao Brasil pela primeira vez. Morou sete anos em São Paulo, onde foi dono do teatro Cano 13. Mas, para os critérios do regime militar, estava ilegal no país e teve de retornar a contragosto à Argentina. No final da década, tocou em longos churrascos com o compositor Astor Piazzolla.
O clima mudou com o fim da Guerra das Malvinas, em 1982, quando a economia argentina, que já não era potente, ficou destruída. Quando Yanel decidiu voltar ao Brasil, um amigo lhe pediu que levasse algumas partituras a um conhecido em Passo Fundo, Algacir Costa. Era para Yanel ficar uma noite apenas na casa do músico gaúcho, mas acabou morando com a família por cerca de quatro meses.
Entre uma canção e outra, um mascote rodeava o argentino: Yamandu Costa, filho do anfitrião e hoje um dos principais violonistas do mundo. Yanel não acredita que tenha sido um guia para o guri, a quem deu aulas. “Eu dizia A, ele respondia B, C, D.” Mas sabe que foi e é uma inspiração. Yamandu Costa o chama de “maestro”.
Em 1983, já estabelecido em Porto Alegre, Yanel fez parceria com Atahualpa Yupanqui, o maior nome do folclore argentino. “Ele me deu essa honra. Mostrou uma letra e disse para eu fazer uma melodia.” Assim nasceu Me Anda Buscando una Bala. Desde então, já gravou mais de quinze álbuns, dentre os quais se destacam Guitarra Pampeana (1986) e Mistérios do Chamamé (2009). “Não existe concepção de álbum. Eu assino com a gravadora, sento e toco.” Também não há um violão especial para tocar os ritmos folclóricos. “Quem comprar um violão de 10 milhões de dólares, certamente terá um som melhor”, diz.
Este tem sido um ano agitado para o violonista, mas ele não ensaia todos os dias. Atualmente, seu foco está voltado à esposa, que sofre do mal de Alzheimer. Sempre que possível, Yanel faz serenatas para Sueli de Fátima Teixeira. “Tenho certeza que ela me escuta.” Em maio passado, o músico lançou, em CD e DVD, o registro da turnê Entre Fronteiras, de 2012, que fez ao lado do quarteto Yangos, formado por César Casara, Cristiano Klein, Rafael Scopel e Tomás Savaris. No repertório, ele desfila composições próprias, como Sueños de Ayelen, criada há quarenta anos como berceuse para sua filha.
Apesar de ter elevado o violão gaúcho a um nível refinado, Yanel não escapa das dificuldades dos colegas de profissão. A música instrumental sofre com a indiferença do mercado, e ele não entende por que os brasileiros não se interessam pela música da América Latina. O músico espera reunir semelhanças e diferenças entre os ritmos e as gerações no documentário de sua viagem com Yamandu Costa, Dois Tempos – mesmo nome do álbum gravado há quase duas décadas com o pupilo. Ao ser indagado sobre o que os dois faziam no tempo livre do festival, Yanel é categórico: “Engordávamos.”