John Limbert (o segundo de baixo para cima) volta do cativeiro em que discutia história com os captores e até lhes corrigia a gramática persa FOTO: TIME & LIFE PICTURES_GETTY IMAGES
O diplomata
Um ex-refém dos aiatolás continua a apostar em conversa
Claudia Antunes | Edição 80, Maio 2013
O vídeo foi gravado em abril de 1980, cinco meses depois da ocupação da embaixada americana em Teerã por jovens partidários da República Islâmica. Cinco minutos de imagens desbotadas mostram o aiatolá Ali Khamenei – hoje líder supremo do país, na época vice-ministro da Defesa – entabulando conversa com um dos 52 reféns. Aos 37 anos, o diplomata John Limbert está com o cabelo crescido e lembra um Beatle. Tem o nariz longo e fino e usa óculos de aros grossos quadrados, como era moda. Mas o que sobressai no seu rosto são os bigodes, castanhos e bastos.
É uma conversa excessivamente polida. Khamenei leva o turbante negro e a barba longa, apenas começando a embranquecer. Espiado pelos estudantes, ele inquire o refém sobre as condições do cativeiro. Numa pronúncia perfeita da suave língua persa, Limbert responde que não, o problema não está na alimentação, no alojamento ou na higiene. “O problema é que estamos aqui.”
O americano ainda menciona o taaruf, o elaborado código de etiqueta persa: “Quando insistimos em ir embora, vocês nos dizem: ‘Não, não, vocês devem ficar.’” Khamenei, sem desfazer o sorriso, responde que isso depende dos “governantes despóticos” do mundo. “Espero que mudem de ideia, nos entreguem aquele criminoso [o xá Reza Pahlevi, então refugiado no Egito, depois de uma breve passagem pelos Estados Unidos], e que você volte para casa descansado e em paz.”
Passados 33 anos daquele encontro insólito, o bigode do embaixador John Limbert o torna facilmente reconhecível quando ele chega a um café a uma quadra da Casa Branca. O atendente o cumprimenta pelo nome e ele encomenda dois cappuccinos, antes de tirar o paletó de lã cinza – a temperatura próxima de zero, atípica para o início de abril, atrasou por alguns dias a floração das cerejeiras, atração turística da primavera em Washington.
Comento sobre o vídeo e Limbert ri: “Você viu com legendas?” Ele explica: “O que eu estava dizendo a Khamenei é que aquela ação era uma violação de todas as regras, de toda a tradição de sua própria cultura e herança.”
Os sequestradores fizeram outras gravações semelhantes, para mostrar que os reféns foram tratados com hospitalidade. Mas não foi bem assim. Além do fato de terem sido aprisionados, houve execuções simuladas e espancamentos, e todos sofriam o medo constante de serem mortos. Limbert ficou nove dos catorze meses em confinamento solitário.
“Passei muito tempo no Irã antes disso, e, apesar de ter conhecido muita gente que discordava da política americana – eu mesmo discordava –, nunca tinha me sentido pessoalmente ameaçado”, diz ele. “Por isso acho que o filme Argo criou desconforto entre os iranianos, porque mostra muitos deles de uma maneira que não gostam de ser mostrados, e os obriga a confrontar esse capítulo de sua história.”
Limbert – que há sete anos se aposentou e assumiu uma cátedra na Academia Naval – tem sido muito solicitado a relembrar o sequestro desde o lançamento de Argo, em 2012. Com alguma liberdade ficcional, o filme reconstitui a história de seis funcionários da embaixada que se refugiaram na missão do Canadá até serem retirados do Irã pela CIA, disfarçados de cineastas.
Mas o vídeo com Khamenei não apareceu na internet por causa de Argo. Ele foi postado – no site do líder supremo – em novembro de 2009, no aniversário de trinta anos da invasão da embaixada. Coincidência ou não, foi também na semana em que Limbert, convocado da aposentadoria pelo presidente Barack Obama, assumiu como subsecretário de Estado para assuntos do Irã. Ele estava no cargo quando Brasil, Turquia e Irã assinaram, em 2010, a Declaração de Teerã – apresentada como um passo inicial para dirimir as suspeitas sobre o programa nuclear iraniano.
Ao chegar ao café, o embaixador trazia na mão seu último livro, Negotiating with Iran: Wrestling the Ghosts of History [Negociando com o Irã: Dominando os Fantasmas da História]. Nele, tenta extrair de eventos passados – o golpe apoiado por Washington que derrubou o premiê nacionalista Mohammed Mossadegh, em 1953; a crise dos reféns – sugestões práticas que, “somadas a paciência e sorte”, possam ajudar no restabelecimento de relações entre os dois países.
No prefácio, Mark Bowden, autor de Guests of the Ayatollah [Hóspedes do Aiatolá], descreve a reação de Limbert ao sequestro: “Ele se aferrou a seu papel de diplomata. Argumentava com seus captores, e corrigia sua gramática – em inglês e persa – e seu entendimento da história – americana e iraniana.”
O embaixador contou um desses episódios. “Um dia os estudantes me trouxeram um gravador cassete. Queriam saber de que tipo de música eu gostava. ‘Tragam-me música clássica iraniana’, eu disse. Perguntei se gostavam, e disseram que não, que eram revolucionários islâmicos e isso era música decadente. Depois, quando eu colocava para tocar, eles arrumavam desculpas para vir escutar. Porque afinal é parte da identidade deles. Então eu os provocava: ‘Têm certeza de que não gostam dessa música?’”
Não é fácil defender o diálogo no ambiente inóspito que opõe o “Grande Satã” e os “mulás fanáticos” – nem em Teerã, nem em Washington, onde os principais rivais do Irã no Oriente Médio, Arábia Saudita e Israel, têm influência muito maior do que a diáspora iraniana nos Estados Unidos. Esta, de cerca de 1 milhão de pessoas, é majoritariamente contra o regime islâmico, mas não quer guerra contra seu país de origem.
Num debate recente na Universidade da Califórnia, Limbert ironizou a situação. “Deixem-me fazer uma revelação”, anunciou. “Não sou um grande fã da República Islâmica.” A plateia caiu na gargalhada, mas ele ponderou: “Bem, tem gente que diz que sou.”
O jovem John Limbert foi influenciado pela retórica idealista do governo Kennedy, que criou programas para levar o soft power americano ao Terceiro Mundo da época, onde a Guerra Fria pegava fogo. Conheceu o Irã em 1962, quando seus pais trabalhavam lá para a Usaid, a agência de desenvolvimento internacional. Voltou para dar aulas de inglês, nos Corpos da Paz. Enquanto preparava seu doutorado em história, lecionou na Universidade de Xiraz, cidade famosa pelos jardins e os poetas.
Foi então que conheceu sua mulher, Parvaneh, professora de persa. Dos apenas três diplomatas que falavam bem a língua local quando a embaixada foi invadida, dois – a exceção era Limbert – tinham aprendido com ela.
Os agentes da CIA na missão só falavam inglês, e entendiam mal um cenário imprevisto. Em agosto de 1978, cinco meses antes da fuga do xá, a agência dizia que o Irã não estava “em situação revolucionária ou mesmo pré-revolucionária”. O presidente Jimmy Carter tinha passado o Réveillon de 78 em Teerã: brindou ao país como uma ilha de estabilidade naquela região turbulenta.
Ninguém anteviu a união das oposições religiosa e nacionalista contra a dinastia que ascendera com apoio britânico, nos anos 20. Depois, Carter desconsiderou as advertências contrárias a que recebesse o xá fugitivo. Manifestantes já tinham invadido a embaixada em fevereiro de 1979, mas o governo provisório iraniano colocou-os para fora; em 4 de novembro, os americanos acharam que aconteceria o mesmo.
Toda política externa é política interna, e o que mudou a história foi o cálculo do aiatolá Ruhollah Khomeini. Enquanto multidões gritavam “Morte à América”, ele apoiou a ação dos Estudantes Seguidores da Linha do Imã. Desautorizou o premiê Mehdi Bazargan, que condenara a violação da lei internacional e dos costumes diplomáticos. O sequestro foi usado por Khomeini para impor sua hegemonia sobre as demais forças revolucionárias.
Quando os reféns foram soltos, o xá estava morto, de câncer. Carter fracassara em reeleger-se e tinha passado o cargo a Ronald Reagan. A República Islâmica estava quase isolada. O Iraque invadiu o Irã no fim de 1980 e apenas dois países da região, Síria e Líbia, ficaram do lado de Teerã. Os americanos apoiaram Saddam Hussein. O xiismo – a corrente do islã majoritária no Irã – virou sinônimo de radicalismo (embora, mais tarde, tenha sido um sunita saudita o criador da Al Qaeda).
Na manhã de 5 de abril, enquanto Limbert falava do passado, começava no Cazaquistão mais um encontro de negociadores iranianos e do grupo conhecido na diplomacia como P5+1 – as cinco potências do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha.
Ele não pareceu animado: “Se continuarmos falando só da questão nuclear, vamos fracassar. Os dois lados se encurralaram na própria retórica e sentem que, por razões de política interna, não podem ceder. Nós falamos de obrigações, e eles falam de direitos. Qualquer proposta é vista pelo outro lado como uma tentativa de trapacear.”
O Irã assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, e seu programa é fiscalizado pela agência atômica da ONU. A dúvida é se estaria desenvolvendo a bomba em lugares não revelados à agência. Desde 2006, o país é alvo de sanções. Há três anos, americanos e europeus aprovaram punições extras, “paralisantes”, que atingiram suas exportações de petróleo. Mesmo assim, ou por causa disso, as negociações não andam.
Limbert saiu frustrado do governo Obama: “A Academia Naval tinha me dado uma licença de seis meses, prorrogada por três, e, para ser franco, as perspectivas não eram boas.” O embaixador acredita que o presidente foi sincero quando estendeu a mão ao Irã. “O problema é que não há um sistema que apoie isso. O que as pessoas sabem fazer é punir, insultar, ameaçar – e isso aqui e em Teerã. Mudou o presidente, mas o velho modo de pensar não acabou.”
Decisões cruciais não passavam pelo cargo que Limbert ocupava, mas pelo Conselho de Segurança Nacional. Ali se decidiu, por exemplo, dar continuidade à operação secreta de ataque às instalações nucleares iranianas com um vírus cibernético.
O embaixador estava na Alemanha quando foi “surpreendido” pela decisão da então secretária de Estado Hillary Clinton de rejeitar imediatamente o acordo negociado por Brasil e Turquia, em maio de 2010. “A reação diplomática padrão seria dizer: ‘É interessante, precisamos examiná-lo melhor, esclarecer alguns pontos.’ Mas não, a secretária descartou. Eu falava com uma rádio em língua persa, e eles me perguntaram o porquê. Não tinha resposta. Só podia imaginar que era uma questão de timing. Então citei um verso iraniano: Oh, amor da minha vida, você finalmente chegou, mas por que agora?”
O acordo, afirma Limbert, atendia de “85% a 90%” de uma proposta que os Estados Unidos tinham endossado sete meses antes – e que o Irã, na ocasião, rejeitou. Também seguia sugestões da carta enviada pouco antes por Obama ao presidente Lula e ao premiê turco Recep Erdogan. “O problema é que, quando saiu, ‘ora, isso cria um problema para nós, porque não estávamos esperando’”, disse, com mordacidade discreta.
Para ele, a prioridade do governo Obama era a política interna americana. O Congresso trabalhava havia meses num pacote contra o Irã, e Hillary tinha pedido que esperasse até que ela obtivesse a concordância da China e da Rússia para aprovar novas sanções na ONU. Em maio, a barganha já estava adiantada demais.
(Celso Amorim, chanceler brasileiro na época, ligou para Hillary quando o avião em que voltava de Teerã fez escala em Madri. Ouviu dela: “Tudo bem, mas nós vamos aprovar as sanções.” No livro Conversas com Jovens Diplomatas, Amorim diz que desde março de 2010 ficou claro que Hillary não estava mais interessada num acordo. Ele deduz que a secretária não sabia da carta de Obama: ela ficou em silêncio quando a mensagem foi mencionada num telefonema.)
Dias depois da entrevista com Limbert, conversei com o jovem expatriado iraniano Ali Vaez numa conferência sobre política nuclear do Fundo Carnegie para a Paz Internacional. Vaez é analista do International Crisis Group, que lida com prevenção de conflitos, e tinha acabado de chegar do Cazaquistão. Ele descreveu negociações emperradas, que só deverão recomeçar depois da eleição presidencial iraniana de junho. O consolo foi ter havido uma discussão afiada entre os negociadores-chefe iraniano e americano (ao menos eles se falaram).
Em resumo, o objetivo do P5+1 é evitar que o Irã acumule um estoque grande de urânio enriquecido (que, em tese, poderia ser usado para a bomba). O grupo oferece em troca um alívio pequeno das sanções, mas Teerã quer mais. Em meados de abril, John Limbert assinou um relatório que exorta Obama a redobrar a ênfase diplomática no caso. Os 35 signatários incluem pesos pesados como Michael Hayden, ex-diretor da CIA.
Para o embaixador, o impasse tem também um custo pessoal: nem seus dois filhos puderam voltar à terra da mãe. No café perto da Casa Branca, perguntei se ele achava que a República Islâmica ainda tem vida longa. “A esta altura, espero ter aprendido a ter humildade intelectual. Não gosto de previsões. Mas parece-me que sua base de apoio está ficando menor: a repressão aumenta e a relação com os intelectuais é péssima.”
Enquanto recolhia o casaco, Limbert buscou um verso persa adequado ao momento. Escolheu um do poeta Saadi, do século XIII: Você não vê o gato? Quando está acuado, ele pode rasgar os olhos de um leopardo com suas pequenas garras. “Há muita sabedoria aí.”
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