ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
O elo perdido
Um velho roqueiro alemão em Floripa
Rafael Spuldar | Edição 131, Agosto 2017
“Essa música é dedicada ao Trump”, disse Frank Brüggemann ao microfone num português carregado de sotaque, antes de começar a cantar Who Wants to Know, um libelo contra a mudança climática, composto por ele. O vocalista é um alemão de 69 anos que mais parece um gnomo do Hells Angels: baixo, magro, musculoso, tatuado e careca com uma cabeleira comprida, como o Mestre dos Magos da Caverna do Dragão. É o líder de Frank & os Magnéticos, banda de blues pesado com tempero psicodélico formada com músicos de Florianópolis, onde vive há 21 anos.
O quarteto estava reunido na noite de uma quarta-feira chuvosa para ensaiar num estúdio no bairro Santa Mônica. O vocalista era energia pura. Com sua voz rasgada, por vezes uivava e grunhia, soando como Tom Waits ou Bob Dylan. Tocava guitarra com vigor, às vezes errando uma nota ou esbarrando no microfone – um contraste total com a postura cool do resto da banda. Os Magnéticos nasceram pelo menos uma geração depois do vocalista: o baterista, Vini Knabben, tem 26 anos; o guitarrista, Lucas Galego, 27; e o baixista, Gustavo “Gúi” Lopes, 38.
Frank compõe desde os anos 70, mas os Magnéticos são a primeira banda da sua vida. Formada em 2013 com um nome menos palatável – Frank e os Caralhos –, ela só toca músicas do alemão, compostas num inglês imperfeito. As letras remetem à sua vida conturbada. Em Long Time Ago, que abriu o ensaio, ele fala sobre fugir dos pais e de casa; em Jekyll and Hyde, parece evocar um passado de drogas: All these magic potions/Didn’t do me no good after all [Todas essas poções mágicas/Não me fizeram bem, afinal].
O vocalista conheceu os Magnéticos no Taliesyn, um bar de rock no Centro de Florianópolis. O clima anárquico do lugar arrebatou o alemão, que aos poucos se tornou um personagem local. “Ele dançava batendo nas paredes e nas cadeiras e assustava o pessoal mais ‘mauricinho’”, contou Gúi, que, além de baixista dos Magnéticos, é um dos fundadores do bar.
“Eram os anos 60 de novo, tudo o que eu vivi”, disse Frank, evocando o ambiente do bar. Nascido em Schleswig, no norte da Alemanha, rodou a Europa vendo seus músicos preferidos, como Rolling Stones, Led Zeppelin, Pink Floyd e David Bowie. Foi hippie, junkie e acabou preso três vezes – a última na Alemanha Oriental, por porte de ópio.
As memórias do alemão fascinaram seus companheiros de bar, alguns com idade para serem netos dele. Quando ouviram os rocks pesados que Frank compunha, ficaram ainda mais impressionados. “Era como se fosse um elo perdido dos anos 60”, disse Johnny Bosco, ex-guitarrista da banda. Chamaram-no para montar um grupo e tocar suas canções.
“Parece que as músicas saíram de um freezer”, disse o produtor argentino Martín Misenta. “Frank não foi contaminado pelo cinismo da pós-modernidade, dos anos 80. Lembra um punk cantando, mas é sentimental, melancólico.” Misenta gostou do que ouviu e decidiu produzir a estreia do alemão em disco. Com doze composições suas, Frank e os Magnéticos saiu em julho.
Frank Horst Wilhelm Brüggemann mora sozinho, de frente para o mar, numa encosta íngreme no bairro do Ribeirão da Ilha, no sul da capital catarinense. Ele próprio ergueu a casa, tijolo por tijolo, em meio à mata nativa, usando material doado por amigos e vizinhos.
Sua obra daria orgulho ao arquiteto Frank Lloyd Wright. A integração com a natureza é extrema – o banheiro foi construído no meio de rochas, que servem de paredes naturais. Os cômodos são separados entre si, fazendo do quintal um canal de passagem constante. O acabamento é tosco, e os eletrodomésticos já viram dias melhores, mas o clima é de sossego.
Sem trabalho fixo, Frank se sustenta com a renda de um programa federal de auxílio a idosos e portadores de deficiência. Sai pouco e prefere ficar em casa, onde toca guitarra, ouve rádio, lê e observa- os tucanos e gralhas-azuis que pousam no seu quintal. E compõe.
Sua ligação com o Brasil começou em 1971, num ônibus de Amsterdã para Paris, onde conheceu sua primeira mulher, uma sergipana. “Era uma morena bem brasileira, cheia de curvas”, descreveu-a. “Foi amor à primeira vista.” Ficaram juntos por dez anos e tiveram um filho, hoje com 39 anos, com quem Frank perdeu contato.
O romance acabou quando moravam no Rio de Janeiro. “Eu bebia e batia nela”, admitiu Frank, com ar triste. O alemão largou a bebida e viveu de consertar bicicletas e vender artesanato. Em 1992 foi morar em São Paulo com sua segunda mulher, com quem teve uma filha. Em 1996, novamente separado, mudou-se pela última vez e foi para Florianópolis.
A música dedicada a Donald Trump acabou de fora do disco, o que não diminuiu a empolgação de Frank ao ensaiá-la. Os primeiros versos saíram bem, mas na sequência ele inverteu acordes, trocou a letra e confundiu o guitarrista, que perdeu a deixa para um solo. A banda recomeçou a música algumas vezes antes de desistir e partir para outra. “Não sei o que acontece”, disse Frank, nervoso. “Quando vejo, os músicos estão olhando pra mim.”
A insegurança é marca registrada do vocalista. Erros banais, comuns para um iniciante como ele, podem levá-lo às raias do autodesprezo. Frank se lembra do pânico de subir no palco nos primeiros shows. “Só pensava em correr e ir pro banheiro.” Aos poucos, foi aprendendo a lidar melhor com o público, mas ainda não se vê no papel de frontman.
Nem tudo é decepção, porém. No ensaio, o grupo teve momentos inspirados, tocando com fluidez, enquanto Frank dava vazão à sua energia caótica. “Acho que estou começando a entender essa música”, disse ele ao fim de Dead and Gone, uma ode à guitarra. “Música é um negócio esquisito.”
Era quase meia-noite, e ainda sobrava tempo para uma última faixa. A banda fechou com um bis de Misery, música que começa com uma batida surpreendente de reggae. Ao fim do último acorde, Frank desabafou. “Nessa hora, sempre agradeço por ter sobrevivido.” Lucas Galego retrucou: “A gente tá tão mal assim?”