CREDITO: TAINAN ROCHA_2020
O espaço mínimo que me cabe de vida e trabalho
Dirceu Villa | Edição 171, Dezembro 2020
VÉSPERA DE NÃO
preso à minha classe, eu vejo as grades da prisão:
a reprovação do crédito, a reprovação da renda, os
bairros assinalados onde sobreviver, as roupas que
se gastam no corpo, e que prosseguem nele, gastas.
o espaço mínimo que me cabe de vida e trabalho, a
voz que não se projeta além dos confins prescritos
na certidão de nascimento, a educação consentida
que indique com clareza os limites de circulação, os
embates que herdei na ferocidade domada do sangue,
na consciência do destino, no cuidado da ração e no
domínio da força em exercício, estoico de incontáveis
perdas no silêncio mordido, no sorriso, véspera de não.
ESPETÁCULO DE TI DIANTE DE REIS
ezekiel desperta. abutres abrigados em ternos
escuros, caros, e ninhos desfeitos na cabeça.
observam asas no céu entre as nuvens e jorra
sangue preto do chão em bocas ávidas, vultos.
braço estendido, longo maligno, projétil. e se
curvam multidões: uma fenda voraz cava até
o firmamento. uniformes apertam pescoço e
peito, poucas palavras para muito efeito [não
a voz: o vazio]. os olhos doentes do chefe, a
doença do estado: súbito, o chão não é sólido,
os sentidos, ludibriados, e pássaros caem aos
bandos. doente, o azul; os rios envenenam os
peixes. uma torre erguida no centro da nova
cidade, paredes de ouro. o alvo na cabeça da
narceja; trato intestinal como sob micro-ondas;
crianças acordam no escuro, ganindo na igreja.
UMA BRUXA
entre janela e cortina, através, flutua escura contra,
uma visita, à madrugada, de fraqueza e de cansaço;
o pó negro de seu robe abanando quando pede, lá
de fora, lá do frio, convite à entrada. tamborila seu
tecido de leve no vidro [me deixa entrar] a sombra
em zigue-zague, voo votivo, ela vai. pano imposto à
lua, que cobre e envenena; longa Ascalapha odorata, o
verbo invocando, olhos em asas, língua espiralada:
babah babelah baalaoth, aponta alto e baixo, oculta sob
sensível urdidura ajardinada – ouvir a voz ao invés
de ver o vulto: vice-versa. insetos sabem, o tempo é
curto, o som é mudo, o medo: doce [me deixa entrar].
JARGÃO DE PIA E BARRIL
a torneira da cozinha fala, ela é eloquente,
escande seu discurso em corte exato, já não
diria seco, mas conciso, pontuado de estilo
queixoso e insistente, recortado como um
uivo distante desses cães que não se cansam,
e a voz como que flutua; sim [flutua] mas
não ao navegar, boiar ou mesmo deslizar a
estatura de seu verbo numa página espraiada,
não: um glóbulo mergulha num gole, algo que
golpeia a superfície sem feri-la, troca mágoas
levemente, o abraço rápido se fende e envolve,
sucinto de soluço, o ardor fluido que lagrima.