ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
O eterno dutrinha
Glória e decadência de uma arena
Juliana Arini | Edição 151, Abril 2019
“Meus joelhos são biônicos”, diz Ruiter Jorge de Carvalho, enquanto sobe as escadas que levam ao sótão de sua casa em Cuiabá, convertido em sala de ginástica. “Foram quatro cirurgias, acabei ficando com duas próteses.” Atrás de aparelhos de musculação, duas fileiras de estantes guardam mais de trinta troféus. Todos de Ruiter, como é conhecido o principal camisa 10 da história do Mixto Esporte Clube, um dos mais antigos times de futebol de Mato Grosso, fundado em 1934.
Apesar das próteses, o ex-jogador goiano, de 76 anos, 1,73 metro e 80 quilos, ainda é um homem robusto e ágil. Ele iniciou a carreira em 1958, quando tinha 15 anos, no Jataiense, time de sua cidade natal, Jataí (GO). No ano seguinte, foi contratado pelo Mixto.
No alvinegro, atuou intermitentemente até 1978, com breves escapadelas para equipes admiradas no Centro-Oeste brasileiro. Jogou no Prudentina (time fundado em 1936 em Presidente Prudente, SP), no Barretos Esporte Clube (criado em 1960 na cidade paulista do mesmo nome), no Operário Futebol Clube (que surgiu em 1949 em Várzea Grande, MT) e no União Futebol Clube (fundado em 1913, em Mogi das Cruzes, SP).
Em 1982, Ruiter deixou de vez o futebol e passou a trabalhar como comentarista esportivo no rádio e na tevê. Formado em economia, foi funcionário da Secretaria de Estado de Fazenda, mas já se aposentou. Hoje, prefere cuidar com a esposa de seu rebanho de quase uma centena de cabeças de gado (Nelore e Caracu), em Poconé, no Pantanal.
Na coleção de relíquias, Ruiter apanha um troféu com a escultura em bronze de uma bola de futebol do tamanho de uma laranja. “Esse é de quando comecei no Dutrinha, um dos locais mais importantes da minha carreira.”
Dutrinha é o apelido do estádio Presidente Eurico Gaspar Dutra, assim nomeado em homenagem ao ilustre cuiabano que foi presidente da República entre 1946 e 1951. Eram grandes as expectativas do povo de Cuiabá com a primeira arena esportiva moderna da cidade, que no início da década de 50 tinha pouco mais de 56 mil habitantes – hoje são 607 mil, na estimativa do IBGE.
Não eram menores as expectativas de Dutra, que em 1950 havia inaugurado o Maracanã para a primeira Copa do Mundo no Brasil. Ao visitar as obras em Cuiabá, entretanto, o ex-presidente ficou decepcionadíssimo com as dimensões modestas do estádio e desistiu de ir à inauguração, em 1952. O Dutrinha, que custou cerca de 1 milhão de cruzeiros, não chegava a comportar 7 mil pessoas nas arquibancadas – no Maracanã, que pode ter custado mais de 230 milhões de cruzeiros, cabiam mais de 150 mil torcedores.
Apesar disso, o Dutrinha tornou-se o estádio-símbolo de Mato Grosso e atingiu sua época de ouro nas décadas de 60 e 70, junto com o Mixto Esporte Clube. “Nunca vou esquecer da primeira vez que vi o gramado do Dutrinha”, conta Ruiter. “Eu tinha 17 anos, era um menino recém-chegado do interior de Goiás e achei que era um estádio grandioso, um verdadeiro Maracanã. Sempre será assim para mim.”
Depois, veio a decadência. Em 1975, o Dutrinha parou de receber jogos profissionais, que passaram a ser realizados no novo Estádio José Fragelli, o Verdão (Cuiabá é chamada de “Cidade Verde”). Posteriormente, o Verdão foi demolido para dar lugar à Arena Pantanal, inaugurada em 2014 para a segunda Copa do Mundo no Brasil.
Há quatro anos, o Dutrinha também deixou de abrigar jogos não profissionais e foi interditado, por falta de segurança. Ficou abandonado. No auge das fortes chuvas que atingiram Cuiabá em 2018, parte de um de seus muros veio abaixo. Abriu-se um intenso debate sobre o futuro do estádio.
Só no início deste ano a prefeitura resolveu reformá-lo e destinou 460 mil reais para os trabalhos, que deveriam ser executados em 120 dias. A ideia era ter ao menos uma reinauguração simbólica no aniversário de 300 anos de Cuiabá, em 8 de abril, uma vez que as obras não estariam prontas. A festa oficial seria realizada na Arena Pantanal.
Entretanto, em 21 de março, o governo do estado decidiu acatar um pedido do Ministério Público Estadual e recusou ceder a Arena ao prefeito, com a justificativa de que haveria jogos importantes no mesmo dia e nos dias seguintes, e que o gramado poderia ser danificado, impedindo a realização das partidas. Sem o Dutrinha e sem a Arena, a prefeitura transferiu a festa para uma área de eventos do Sesi, o Serviço Social da Indústria.
A desativação do velho estádio é uma das grandes mágoas de Ruiter. “A população nunca o abandonou, mas ele foi esquecido pelo governo”, lamenta. “Meu sonho era que reformassem de verdade e ampliassem, como foi feito com o estádio do Santos, o Vila Belmiro. Essa reforma que estão fazendo agora não acrescenta nada.”
Aqui está!” O ex-jogador saca uma folha de papel com a escalação de seu primeiro jogo no Dutrinha, em 23 de abril de 1959. “Foi o meu primeiro título pelo Mixto”, diz. “Dez anos depois jogamos contra o Pelé, cheguei a fazer um gol nele, apesar do 5 a 1 que tomamos do Santos. Aquele foi um dos meus grandes dias no Dutrinha.”
A partida do Mixto contra o Santos de Pelé ocorreu durante as festas em homenagem aos 250 anos da capital. O jogo deixou os cuiabanos excitados e eufóricos. Ruiter recorda que, como não cabia todo mundo no Dutrinha, para ver Pelé jogar as pessoas subiram em árvores e até no telhado do Colégio Ginásio Brasil, onde fica hoje a sede dos Bombeiros.
A proximidade com a torcida no Dutrinha marcou Ruiter. “Os torcedores ficavam praticamente ao nosso lado. Sentíamos a vibração deles de uma forma inexplicável.” Ele conta que, quando terminavam as partidas, os jogadores não iam embora de carro. Saíam a pé pelas ruas de Cuiabá, ao lado dos torcedores. “Até tomávamos cerveja juntos, no botequim em frente ao estádio.”
Enquanto vasculha os guardados, Ruiter encontra em um álbum de folhas azuis uma imagem amarelada que o mostra erguendo a Taça Jules Rimet. “Essa foto também foi feita no Dutrinha. Eu desfilei no estádio com a Jules Rimet, em 1970.” A taça do tricampeonato da Seleção Brasileira, obtido na Copa do Mundo do México, foi levada a várias cidades do país para que a população pudesse admirar o glorioso troféu. “Isso foi na época em que os artilheiros dos times dos estados podiam carregá-lo”, diz Ruiter. “Hoje só os campeões mundiais podem ter essa honra.”