A ideia do senador Marcelo Crivella era reformar 782 casas no morro da Providência às vésperas da eleição municipal de 2008. Para isso, contava com o apoio do Exército. O script, porém, não previa a morte violenta de três jovens FOTO: BERT KOHLGRAF
O exército, o político, o morro e a morte
Das manchetes ao esquecimento: o caso Providência faz dois anos
Cristina Tardáguila | Edição 46, Julho 2010
Às seis horas da manhã de 14 de junho de 2008, os amigos David Florêncio, Wellington Gonzaga e Marcos Paulo Campos desceram do táxi, na praça Américo Brum, no alto do morro da Providência – a favela mais antiga do Rio de Janeiro. Chegavam de um baile funk.
Os rapazes, moradores da comunidade, falavam alto e riam, chamando a atenção dos comerciantes que abriam suas lojas ainda com o céu escuro. Do outro lado da praça, um grupo de militares do Exército – que havia seis meses patrulhava a área como parte da estratégia de segurança do Cimento Social, um projeto de reforma de casas populares –, também se virou para acompanhar o burburinho.
Como o táxi continuava estacionado, um dos soldados ventilou a hipótese de que os jovens dariam calote no motorista. Resolveram averiguar a situação. Onze homens fardados e armados com pistolas e fuzis caminharam em direção ao veículo.
Foi quando um dos militares enxergou um objeto bojudo e suspeito na cintura de um dos rapazes e fez sinal aos colegas. Como em uma coreografia ensaiada, o grupo levou as mãos aos coldres e passou a gritar, produzindo uma torrente confusa de ordens. Os jovens entenderam que precisavam se encostar no muro para serem revistados.
Protestaram. Argumentaram que eram moradores da favela, que os militares os conheciam havia tempo e que eram pessoas “de bem”. Um dos três ainda emendou: “Vocês não mandam aqui!”
Os soldados seguiam berrando para que os jovens abrissem as pernas, levantassem os braços e se colassem à parede. Diante da cena, o taxista, que recebera pela corrida, partiu acelerando o carro.
Dez minutos se passaram e o bate-boca seguia inflamado. A essa altura, moradores e transeuntes compunham uma plateia aturdida. Alguém de dentro da padaria gritou: “Mostra logo para eles que vocês não têm nada e pronto.”
Como se estivessem em câmera lenta – resultado provável do consumo excessivo de álcool durante a noitada –, os rapazes finalmente levaram as mãos à nuca. O movimento fez com que a camiseta de um deles se levantasse revelando a natureza do objeto bojudo e suspeito: era um celular.
De acordo com testemunhas, alguns soldados se entreolharam. O excesso contra os jovens de celular os deixara claramente desconfortáveis. Um dos militares subiu a voz. Disse que, ainda assim, os três seriam levados para “averiguações” na base militar recém-instalada no bairro do Santo Cristo, aos pés do morro da Providência – o que deflagrou um novo embate verbal.
Os rapazes xingavam, faziam gestos obscenos e os soldados davam o troco na mesma moeda. No meio da confusão, um dos jovens se desvencilhou do cerco militar e saiu correndo, seguido pelos dois amigos. Tentavam entrar no beco que os levaria para casa – uma viela escura de menos de 2 metros de largura que desembocava num emaranhado de barracos.
Com as armas em punho e sob o olhar estupefato dos espectadores, os militares iniciaram uma perseguição. O tenente Vinícius Ghidetti, um capixaba de 25 anos, casado e com um filho de 2 meses, comandava a operação. Enquanto corria, levantou o braço e atirou para o alto. O disparo fez com que moradores se jogassem no chão, passantes se escondessem atrás de muretas e os curiosos – que já somavam mais de cinquenta pessoas – escapassem para dentro das lojas.
Os três rapazes foram capturados e levados de volta à praça. Zé do Guaraná, um paraibano que vive na Providência há quatro décadas e é dono de uma loja de materiais de construção, ainda guarda detalhes. “O Marcos Paulo tentou se distanciar do grupo, mas um soldado negro e alto puxou ele de volta e ficou dizendo: ‘Não! Não! Você fica aqui também'”, contou.
Durante uma hora, os rapazes permaneceram sentados no chão, sob o bulício revoltado dos moradores, à espera do jipe oficial que os levaria para a base militar, onde seria checado se tinham pendências com a Justiça. Foi nessa situação que Bárbara Gonzaga, uma jovem magra de cabelos frisados, viu seu irmão, Wellington, pela última vez.
“Quando cheguei perto, um soldado me disse: ‘Pode se despedir dele. Pode se despedir'”, contou, numa manhã recente, na sala de sua casa, no coração da Providência.
Às 7h30, David, Wellington e Marcos Paulo entraram no jipe. Os presentes ouviram quando os militares disseram que em breve os três estariam de volta. “Quando o jipe desapareceu pela ladeira, fiquei desesperada. Senti uma coisa muito ruim”, lembrou Bárbara.
A informação de que três jovens tinham sido detidos levou um átimo para cruzar a favela. Desde a chegada dos 290 militares ao morro da Providência, dezoito episódios de desacato – média de quase um por semana – haviam sido registrados. O clima amistoso entre Exército e moradores parecia ser mais uma quimera das autoridades, própria para consumo externo, do que a realidade cotidiana da favela.
David, Wellington e Marcos Paulo eram vizinhos. Quem os visse juntos, poderia tomá-los por irmãos. O corte de cabelo era igual – curto, raspado a máquina –, a altura era semelhante e as roupas, parecidas.
O mais velho era David. Tinha 24 anos e cursava à noite o último ano do ensino médio. Durante o dia, trabalhava numa lan house. Aos 19 anos, Wellington concluía o 2º ano do ensino médio na mesma escola. Fazia bicos como contínuo, entregador de pizza e garçom. Ambos tinham passagem pela polícia. Quando ainda não tinham completado 18 anos, Wellington fora apreendido por associação ao tráfico e David, por porte de arma e corrupção de menores. Marcos Paulo tinha 17 anos e a ficha limpa. Estava na 7ª série.
Às 8 horas, o tenente Vinícius Ghidetti chegou à base militar do Santo Cristo trazendo consigo os três jovens. Ali, encontrou-se com o capitão Laerte Ferrari, a quem relatou o ocorrido. Ghidetti sugeriu a seu superior que enquadrasse os rapazes por crime de desacato a autoridade.
O capitão Ferrari mandou o tenente ignorar o episódio e soltar os jovens. Ghidetti bateu continência sem disfarçar a contrariedade. Naquele momento, lembrou-se do que lera no documento confidencial elaborado pelo Exército durante o período de planejamento da operação na Providência. “Nenhuma fração da Força Terrestre pode ser derrotada e o Exército Brasileiro não pode ser desmoralizado.”
Meses depois, Ghidetti explicou a razão pela qual decidira não acatar a ordem do seu superior. Livrar os jovens de uma repreensão que lhe parecia merecida poderia afetar o moral e o prestígio da tropa junto aos moradores da favela. Foi assim que, segundo afirmou em juízo, decidiu que David, Wellington e Marcos Paulo mereciam uma lição.
Horas antes, assim que o jipe saiu de seu campo de visão, Bárbara Gonzaga correu para avisar sua mãe, Lílian, sobre Wellington. Lílian, de 43 anos, que na hora fazia a faxina da Vila Olímpica da Gamboa, largou o serviço e foi uma das primeiras pessoas a chegar à base militar onde estavam seu filho e os dois amigos.
Da cancela, era possível enxergá-los ainda no pátio. “Eu vi os soldados obrigando os meninos a sentar e levantar milhares de vezes, só de maldade. Gritei pra eles liberarem os garotos, mas eles me ignoraram.” Segundo Lílian, seu filho estava arranhado e com a blusa rasgada.
Benedita Monteiro, avó de David, uma cearense de 70 anos e de pele vincada, ainda dormia quando soube que seu neto predileto havia sido capturado pelo Exército. Teve tempo apenas de calçar os chinelos antes de sair a sua procura. “O que vocês fizeram com o meu menino?”, perguntou ao primeiro homem fardado que cruzou no caminho. “Não se preocupe, tia. Eles foram fazer uma averiguação e já voltam”, respondeu o soldado.
Ao chegar em frente à base do Santo Cristo, ela foi recebida com hostilidade. “Os militares atiçavam uns bichões enormes contra a gente”, disse. Bichões, explicou, eram cachorros.
Maria de Fátima Barbosa, de 50 anos, criara Marcos Paulo desde que ele tinha 6 anos. A avó do menino falecera e ela, como vizinha, assumira para si a responsabilidade. “Desde então, cuidei dele como se tivesse saído de mim”, contou. Também estava deitada quando soube do ocorrido. Mandou sua filha mais velha ir atrás da história.
Por volta das 9 horas, cerca de cinquenta pessoas se aglomeravam no portão da base militar para exigir a libertação dos rapazes. Gritavam, xingavam e pediam clemência. O tenente Vinícius Ghidetti ignorou os protestos. Reuniu sua tropa e mandou que subisse num caminhão onde já estavam os jovens.
Os rapazes se equilibravam na boleia do veículo quando Ghidetti avisou: “Vou escrever ‘CV’ na testa de vocês”, referindo-se à sigla do Comando Vermelho, a facção criminosa que domina a Providência. Segundos depois, aprimorou a ideia. Disse que os largaria num morro controlado por um grupo rival. Para bom entendedor, aquilo tinha o peso de uma sentença de morte.
Ghidetti mandou chamar um colega que conhecesse a geopolítica da violência local. Foi informado de que a favela da Mineira – a dois passos do Sambódromo, como se pode constatar pelos desfiles de escola de samba – era controlada pela Amigos dos Amigos, a ADA, inimiga intestina do Comando Vermelho.
Ordenou ao motorista que deixasse a base pelos fundos, de modo a evitar a multidão. Cruzou novamente com o capitão Ferrari, que se surpreendeu com o fato de os rapazes ainda estarem por ali. O capitão quis saber por que sua ordem não fora cumprida.
Ghidetti explicou suas razões: soltar os rapazes na base pareceria concessão à pressão das famílias, o que seria vexaminoso. Ele os liberaria “um pouco mais à frente”. O chefe se deu por satisfeito e autorizou a passagem do veículo.
Em dez minutos, o caminhão do Exército chegou ao morro da Mineira. Segundo o relato de Ghidetti, no trajeto ele chegou a perguntar aos jovens se estavam arrependidos por terem desacatado a tropa, mas, como “não obteve respostas satisfatórias”, determinou que o motorista seguisse para as vielas da favela.
Não tardou para que o veículo fosse parado por traficantes armados. Em seu depoimento ao Conselho Especial de Justiça, Ghidetti classificou o encontro com os criminosos como “contato fortuito”. Segundo disse, jamais havia falado ou visto qualquer um deles. A prova seria o fato de terem ficado sob a mira dos bandidos até um sargento descer do caminhão e esclarecer que não haveria conflito.
De acordo com o relato de pelo menos três integrantes do pelotão, Ghidetti começou o diálogo com os traficantes avisando que trazia “um presentinho”. O tenente nega veementemente a frase. Diz também ser falsa a informação de que teria feito um acordo com a facção Amigos dos Amigos para “vender” os jovens, como chegou a ser divulgado à época.
Entretanto, reconhece ter informado que os rapazes eram da Providência e mereciam um “susto”. De acordo com o testemunho de alguns soldados, a conversa foi encerrada com um aperto de mão entre um dos chefes do crime organizado local e o tenente Ghidetti, que se despediu dizendo: “Valeu.”
Assistindo à cena, apavorados, os jovens tentaram fugir, mas foram capturados com facilidade. Não tinham escolha. De um lado, havia as armas dos criminosos. Do outro, as do Exército Brasileiro. Ficaram com os traficantes.
A tropa tomou o caminho de volta. Ao chegar à base, os familiares ainda protestavam. Ghidetti mandou que seus soldados informassem que os rapazes tinham sido soltos no centro da cidade. Ao pelotão, pediu discrição sobre o episódio.
Anoitecia e ainda não havia notícias de David, Wellington e Marcos Paulo. As famílias tinham passado o dia peregrinando por hospitais, delegacias e andando a esmo pelo centro da cidade.
Uma vizinha de Maria de Fátima, a tutora de Marcos Paulo, recebeu o telefonema de uma prima, moradora do morro da Mineira. Ela dizia que três garotos “de fora do morro” tinham sido vistos por lá. Alguém da família de Wellington resolveu ligar para o tal objeto bojudo e suspeito. Do outro lado da linha, uma voz atendeu: “Já perdeu. Tá morto.” A notícia se espalhou rapidamente pela comunidade.
Minutos depois, mais de 100 pessoas se concentravam na praça Américo Brum. Os militares pediram reforço e subiram em um coreto para se proteger da multidão, que atirava pedras e garrafas. Revidaram com tiros para o alto.
A vereadora Líliam Sá, do Partido da República, cujo rosto podia ser visto nos cartazes que dominavam o entorno da praça, foi chamada às pressas, mas acabou também sendo alvo do gás de pimenta lançado pelos soldados. A confusão varou a madrugada.
O delegado Ricardo Dominguez, responsável pela 4ª DP, lanchava com seus trigêmeos quando foi avisado de que o posto policial estava tomado por familiares de três jovens da Providência que estavam desaparecidos. Ouviu que as pessoas insistiam em envolver o Exército no desaparecimento.
Dominguez, um homem alto, de cabelos bem penteados e pele levemente rosada, entendeu a gravidade do assunto. Ao chegar à delegacia, começou as investigações. Foi pessoalmente à sede do Comando Militar do Leste, a instância máxima do Exército na capital.
Ali, deu de cara com os onze membros do pelotão do tenente Vinícius Ghidetti, que começavam a amargar uma detenção administrativa por haver desobedecido à ordem para soltar os rapazes. Interrogou-os um por um ao longo da madrugada. “Era tarde quando obtive a confissão do tenente. Sem qualquer sinal de remorso, ele me contou que havia deixado os jovens na Mineira para que os traficantes lhes dessem um susto”, lembrou. “Mas, até ali, não havia corpos. Não se falava em homicídio.”
Naquela noite, o Disque-Denúncia recebeu sete informações importantes sobre o caso. A partir delas, foi possível reconstituir as últimas horas de David, Wellington e Marcos Paulo.
Para morrer, basta que o indivíduo cruze a fronteira entre duas facções criminosas rivais. Na esquina das ruas Emília Guimarães e Van Erven, diante de vários moradores da Mineira, os três jovens foram baleados depois de serem brutalmente espancados e torturados. Os corpos foram jogados numa caçamba de lixo da praça Doutor Roberto, que a Comlurb recolheu sem saber o que continha.
Nas primeiras horas da manhã seguinte, o delegado Dominguez recebeu um telefonema de um colega do posto policial de Duque de Caxias. Foi informado de que três corpos tinham sido encontrados em Gramacho, no maior aterro sanitário da América Latina, uma montanha fétida que recebe diariamente 9 mil toneladas de dejetos urbanos.
Dominguez ligou para um dos familiares dos rapazes. “Quando atenderam, me identifiquei e perguntei onde estavam. Disseram-me que estavam protestando em frente à base militar do Santo Cristo. Na hora, hesitei. Não queria causar mais tumulto, mas resolvi dizer: ‘Olha, desculpa, acharam os corpos.'”
De acordo com o laudo do Instituto Médico Legal, Wellington tinha “19 PAFs”, sigla para perfuração por arma de fogo. Um dos tiros estraçalhou seu olho direito. As mãos foram amarradas com fios de náilon que abriram sulcos profundos nos pulsos. Um plástico transparente envolvia o pescoço e a cabeça, de onde escorriam pedaços do cérebro. “Nota-se destruição total da massa encefálica e tronco-cerebral, descolada da dura-máter”, escreveu o legista, referindo-se à membrana mais extensa, espessa e fibrosa do cérebro.
David levou 26 tiros e foi amarrado com fios de telefone e cordas de sisal. As pernas tinham diversas fraturas, e o crânio fora fatalmente atingido. O menor Marcos Paulo morreu com dois disparos à queima-roupa.
A Associação de Moradores da Providência e organizações não governamentais dispararam telefonemas para a imprensa e para políticos locais, com o intuito de engrossar o protesto iniciado na porta da base. De lá, o grupo marchou até o prédio do Comando Militar do Leste gritando palavras de ordem. “Ah! Ah! Quem matou vai pagar”, “Justiça! Justiça!” No meio do caminho, os manifestantes cruzaram com um jipe do Exército, que se viu obrigado a dar marcha a ré e se retirar do local.
No dia seguinte, às seis da tarde, os jovens foram enterrados. Uma hora depois, o Rio de Janeiro testemunharia um dos protestos populares mais violentos de que se tem notícia. Cerca de 300 pessoas atacaram a sede do Comando Militar do Leste com paus, pedras, cartazes, garrafas e até coroas de flores trazidas do cemitério.
Do alto do edifício, os soldados apontavam suas armas para a multidão. Usaram bombas de efeito moral, balas de borracha e gás lacrimogênio para conter o tumulto. O trânsito de algumas ruas e a saída do terminal rodoviário que liga o Centro à Baixada Fluminense foram interrompidos. Houve quebra-quebra de carros, queima de ônibus e saques. A desordem só chegou ao fim no meio da madrugada.
David, Wellington e Marcos Paulo não puderam ser enterrados no cemitério do Caju, o mais próximo de suas casas – no Rio, cemitérios também se dividem entre facções criminosas. O Caju é área exclusiva da Amigos dos Amigos. Os três corpos foram levados para o São João Batista, na Zona Sul da cidade.
Segundo a avó de David, Benedita Monteiro, o enterro dos três – que custou 6 mil reais – foi pago pelos traficantes da Providência. “O dono do morro ligou para a irmã dele, que é quem está no lugar dele enquanto ele está preso, e disse que o movimento não podia agir como se nada tivesse acontecido.” Era hora de mostrar apoio às mães e, sobretudo, repúdio total ao Exército e à rival ADA. Os parentes de Wellington e Marcos Paulo negam essa versão.
Os meninos foram enterrados em caixão de madeira de lei. Um cortejo os acompanhou até o cemitério: sete ônibus, dezenas de kombis e inúmeras motos com cartazes afixados em que se lia: “A minha infelicidade é ter votado em você, Lula e Cesar Maia” e também: “Crivella, anjo mau”.
No início do ano anterior, 2007, parlamentares do PRB, o partido do vice-presidente José Alencar e do senador Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus, tinham uma audiência agendada com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tratariam de assuntos de praxe, como coligações e cargos.
Na primeira brecha, Crivella pediu a palavra. Tirou da pasta uma fotografia do morro da Providência alterada por Photoshop. Nela, via-se a favela com barracos decadentes ao lado de casas remodeladas, com fachadas refeitas e telhados novos. “Presidente”, disse o senador, “a Providência pode ficar assim.”
Crivella vendia diretamente ao governo federal o diamante de sua próxima campanha eleitoral: o projeto Cimento Social. A proposta previa a recuperação de 782 casas da favela. Tetos e janelas seriam trocados e paredes, repintadas. Os barracos seriam revestidos com placas pré-moldadas de 1 centímetro de espessura feitas com uma argamassa patenteada pela Universidade de São Paulo que duraria “mil anos”.
Pelo projeto, as novas estruturas resistiriam “ao impacto de balas de até 7,5 milímetros de calibre, a uma distância mínima de 20 metros”. Também se previa a implantação de um sistema de esgoto, a instalação de centros comunitários, creches, postes de iluminação e a criação de um sistema de proteção para a rede elétrica e telefônica. Por último, a área seria reflorestada.
Numa tarde recente, Crivella falou da reunião ocorrida há três anos. Segundo disse, o presidente Lula comprou a ideia “no ato” e convocou engenheiros do Ministério das Cidades para ouvir a proposta do senador.
Dias depois, Crivella sobrevoaria de helicóptero a favela carioca em companhia de Ambrosino de Serpa Coutinho, engenheiro da Secretaria de Habitação do Ministério das Cidades. Em 2008, Crivella foi lançado candidato do PRB à prefeitura do Rio, com o apoio do presidente Lula.
No meio do caminho do Cimento Social, havia Cesar Maia, um obstáculo barulhento e de peso. O então prefeito passou a dizer que a remodelação das casas na Providência não passava de promessa eleitoreira feita às vésperas de um pleito relevante. Queria impugnar a licitação pública das obras.
A reação do Palácio do Planalto foi imediata. Em vez de ser submetido aos trâmites usuais de um projeto público – envio de carta-consulta e cumprimento de todas as etapas burocráticas previstas em lei –, o governo federal acolheu a ideia de Crivella por meio de uma emenda parlamentar apresentada pelo próprio senador.
Em vez de o contrato de repasse de verbas, no valor de 12 milhões de reais, ser firmado entre o Ministério das Cidades e a prefeitura – como seria o usual – estabeleceu-se um acordo de cooperação técnica entre o Ministério das Cidades e o da Defesa. Desse modo, foram dispensados o envolvimento da prefeitura carioca e a fiscalização da Caixa Econômica Federal, a quem compete controlar o uso de recursos públicos em obras de habitação popular.
“Usar o Exército na proteção dos canteiros era a única alternativa viável”, explicou Crivella, numa tarde de maio no plenário do Senado, em Brasília. “As polícias do Rio não tinham gente suficiente nem interesse político para executar aquilo”, acrescentou.
Quando relembrou o caso da Providência, Crivella lançou o olhar para longe, e ficou assim, como se tomado pela tristeza. Depois de um silêncio, disse que a morte dos três jovens era “uma desgraça”. Perguntado sobre quem teria dado a ordem final autorizando a ocupação da favela pelas tropas durante as obras do Cimento Social, ele respondeu sem titubear: “O Lula. O presidente Lula.”
Desde a Grécia Clássica se discute se os militares devem ou não atuar dentro das fronteiras do país que defendem. Em A República, Platão sustenta que não, sob pena de comprometer a própria existência do Estado. Na Roma Antiga, os generais evitavam entrar na cidade com suas tropas. Acampavam além do Rubicão, um riacho fora dos muros, como um ato de respeito ao Senado e à polis, que tinha sua organização e dinâmica próprias. Quando em 49 a.C, o general Júlio César resolve violar o entendimento tácito, o resultado é conhecido: a República se transforma em Império, e o cidadão romano é alijado do poder.
Em países como os Estados Unidos, as Forças Armadas costumam ser mantidas à distância dos assuntos internos. Em setembro de 2006, quando o então presidente George W. Bush quis enviar tropas militares a uma Nova Orleans destruída pelo furacão Katrina, precisou de uma manobra política para convencer os congressistas a alterar uma lei que datava do século XIX. Desde então, o Exército tem autorização para atuar dentro das fronteiras nacionais em situações de emergência decorrentes de desastres naturais, epidemias ou ataques terroristas. E só.
Pela Constituição brasileira, se o país não estiver em guerra ou vivendo sob estado de sítio ou de defesa, Exército, Marinha e Aeronáutica podem ser requisitados para agir nas questões de segurança pública mediante a assinatura de um decreto presidencial, mas somente se os órgãos responsáveis pela ordem – as polícias federais, civis, militares e os Corpos de Bombeiros militares estiverem “indisponíveis, inexistentes ou insuficientes”.
No livro O Uso Político das Forças Armadas e Outras Questões Militares, o coordenador do Centro de Estudos de Direito Militar, o promotor militar João Arruda, mostra que, entre 1994 e 2004, o Exército atuou em operações que descaracterizam sua função, como a destruição de plantações de maconha ou a expulsão dos sem-terra da fazenda do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
“O que se tem observado nos últimos anos é a banalização do emprego das Forças Armadas para enfrentar problemas policiais (…) estão transformando os militares em uma versão atualizada de capitães do mato.”
Durante o governo Lula, foi criada a Força Nacional de Segurança Pública, constituída por policiais militares e federais. Um dos objetivos era estabelecer uma força que substituísse o Exército nas tarefas cada vez mais constantes a que era chamado a participar. Entretanto, em dezembro de 2007, quando se decidiu que a manutenção da ordem nas obras do Cimento Social ficaria a cargo do Exército, a opção não foi sequer cogitada.
Na ocasião em que os militares ocuparam a Providência, não existia qualquer decreto ou solicitação formal assinada pelo presidente Lula. Na melhor das hipóteses, havia uma autorização verbal. O Congresso tampouco fora informado. E as polícias do Rio não tinham decretado falência nem tinham sido declaradas incapazes. Mesmo assim, as tropas começaram a agir. O acordo de cooperação interministerial que validaria a operação só seria assinado quase dois meses depois.
À época do assassinato dos jovens, o Centro de Comunicação Social do Exército emitiu notas sucessivas à imprensa alegando que a presença das tropas se enquadrava nos preceitos de uma “ação subsidiária”. É a expressão usada quando soldados ajudam nas campanhas de vacinação e em dias de eleição.
No início de maio, o general Luiz Cesário da Silveira Filho, número 1 do Comando Militar do Leste à época das obras do Cimento Social, participava de um evento promovido pelo oficialato carioca. Entre apertos de mão, lembrou-se de quando foi avisado por telefone pelo comandante geral do Exército, Enzo Peri, que o senador Crivella o procuraria para tratar do projeto da Providência.
“Ele me pediu que o recebesse bem e assim o fiz”, disse. “Mas, quando o senador me contou seus planos, avisei: lá tem drogas e o Exército não convive com o ilícito.” Segundo o general Cesário, o político pareceu não se importar com o aviso e insistiu que era possível fazer a obra sem nenhum tiro se a associação de moradores fosse envolvida na empreitada. “Na hora, sugeri que ele voltasse à Brasília”, lembrou o militar.
Nos meses que se seguiram, o general produziu alguns informes sobre o risco de uma operação militar no morro da Providência. Ele sabia que, pela posição geográfica e pelos altos índices de criminalidade na área, a operação acabaria tomando contornos de ocupação militar. Mesmo assim, recebeu ordens superiores para tocar a missão.
Nove dias depois do crime, o presidente Lula se encontrou com a avó e as duas mães dos rapazes e prometeu indenizar as famílias rapidamente. Na semana seguinte, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, anunciou a possibilidade de a União conceder uma pensão vitalícia no valor de um salário mínimo às vítimas. O valor foi considerado risível pelas famílias, que mantiveram uma ação indenizatória contra o Estado correndo na Justiça. No Superior Tribunal de Justiça, a praxe tem sido decretar indenizações de cerca de 500 salários mínimos em casos semelhantes.
Nos dois anos que se seguiram, no entanto, só foram cumpridos dois de cinco mandados de prisão emitidos contra criminosos do morro da Mineira. O governador Sérgio Cabral chegou a justificar a morosidade da polícia, alegando que os policiais não “faziam mágica”.
Em agosto de 2008, a Justiça Federal determinou que a União pagasse um salário mínimo às famílias de David e de Wellington – como Marcos Paulo nunca foi formalmente adotado, sua mãe de criação foi excluída – como antecipação de tutela, figura jurídica que antecede a sentença. Em abril, ciente de que os familiares ainda não haviam recebido nada, o juiz solicitou comprovação do cumprimento de sua determinação. Até o mês passado, não recebera resposta.
Pouco antes, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio embargou as obras do Cimento Social por suspeita de viés eleitoreiro em favor do senador Marcelo Crivella. Até aquele dia, o 194º da operação, só trinta das 782 casas prometidas haviam sido reformadas.
Crivella disse ter tirado 800 mil reais do próprio bolso para concluir parte das obras abandonadas. Segundo ele, o projeto chegou à marca de 100 residências renovadas. Quem visita o morro, no entanto, tem dificuldade em apontar mais de vinte.
O senador também comprou um terreno na parte baixa da Providência e contratou operários para, em três dias, construir um minicondomínio. No total, gastou 100 mil reais. Cercou o espaço com grades de ferro, ergueu três casas de dois pisos num terreno plano em forma de T e instalou um portão para carros numa viela estreita demais para a passagem de veículos.
A construção foi batizada de “Vila Zé Alencar e Dona Marisa”. Ali, moram as famílias dos três jovens assassinados. A irmã de Wellington, Bárbara, riu quando perguntei se as paredes eram mesmo resistentes a tiros. Ela se levantou e apontou para o ar-condicionado. “Eu fiz esse buraco com a ajuda de uma faca de cozinha”, disse. Com a ponta dos dedos, mostrou que a parede se esfarela ao toque.
Era final de tarde quando Fátima, que criou Marcos Paulo, comentou: “Gente, todo mundo se esqueceu de nós… Agora a única coisa que importa é essa tal de UPP [Unidade de Polícia Pacificadora].” Olhando para três policiais que conversavam na esquina de sua casa, ponderou: “Eu só queria que me dissessem por que eu devo acreditar que essa polícia pacificadora aí vai dar certo…” Apesar dos fuzis e das pistolas, as UPPs são compostas por policiais militares que recebem treinamento específico e são amparados pela Constituição para atuar na garantia da segurança pública.
Há dois anos, o tenente Ghidetti está preso numa cela do 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca, Zona Norte do Rio. O primeiro ano serviu para ele cumprir a única sentença que já recebeu, no caso, da Justiça Militar – 365 dias de cadeia por insubordinação ao capitão Ferrari. O segundo ano tem sido de espera ao pronunciamento da Justiça Federal. Recentemente, soube que será julgado por triplo homicídio num tribunal do júri. A data ainda não foi marcada.
Ghidetti nunca deu entrevistas, mas enviou para esta reportagem uma carta na qual conta como foi a sua infância e adolescência. Numa folha de papel pautado, ele descreve, em letra de forma, a rotina de um jovem pobre, ambicioso e dedicado à vida militar. Em Nova Venécia, cidade do Espírito Santo onde foi criado, ex-professores falam dele como um menino de boas notas que queria ser astronauta.
Marcelo Crivella, candidato à reeleição para o Senado, está em primeiro lugar nas pesquisas, com 40% das intenções de voto. Mais uma vez, conta com o apoio do presidente Lula.
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