Cabeça Branca, em 2017: a PF suspeitava que ele alterara as feições do rosto em cirurgias e tingira os cabelos grisalhos, razão do seu apelido CREDITO: REPRODUÇÃO
O fantasma
A Polícia Federal sai à caça do maior traficante de drogas do Brasil
Allan de Abreu | Edição 174, Março 2021
Era perto do meio-dia quando o portão automático da garagem se abriu. Da casa de paredes com tons ocre e janelas brancas saiu uma caminhonete, o veículo predileto de dez entre dez moradores de Sorriso, cidade de 90 mil habitantes no Norte de Mato Grosso cuja economia é movida pelas extensas plantações de soja e milho. Os vidros escuros da Hyundai Santa Fe branca impediam a identificação dos seus ocupantes pelos agentes da Polícia Federal, em vigília na rua desde a madrugada. A certa distância, os policiais passaram a seguir o veículo. Era início de julho de 2017, pleno inverno, mas o sol queimava a pele e deixava o ar tórrido. A caminhonete percorreu devagar a Avenida Brasil, com suas casas assobradadas de arquitetura moderna, típicas dos novos-ricos da cidade, dobrou à direita na Avenida Blumenau Sul e, em seguida, à esquerda na Avenida Natalino João Brescansin. Contornou a Praça da Juventude e parou na Rua Mato Grosso, em frente à principal padaria da cidade.
Da boleia, saiu um fantasma.
Era a primeira vez em mais de dez anos que policiais federais ficavam frente a frente com o paranaense Luiz Carlos da Rocha, o Cabeça Branca, o mais poderoso narcotraficante que o país já produziu, classificado pela PF entre os dez maiores do mundo. Sofisticado empresário do tráfico, Rocha era um atravessador que exercia com rigor e profissionalismo o transporte de cocaína entre as áreas de produção – na Bolívia, no Peru e na Colômbia – e os grandes mercados consumidores do mundo, Estados Unidos e Europa. A PF calcula que, por mês, ele trazia para o Brasil pelo menos 5 toneladas de cocaína – sem contar o que transportava em outras rotas na América Latina. Fornecia a droga para as maiores organizações criminosas brasileiras, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, bem como para a máfia italiana ‘Ndrangheta, os cartéis mexicanos e clãs sérvios e russos.
As montanhas de dólares que o capo recebia dos compradores eram lavadas com a compra de fazendas, veículos, gado e até um garimpo na Amazônia. Entre os bens de Rocha identificados e bloqueados pela Justiça até 2020 constam 16 fazendas no Brasil e no Paraguai, que somam 40 mil hectares, 40 mil cabeças de gado e mais de 100 veículos. Seu patrimônio já identificado é de 1 bilhão de reais, mas muito dinheiro permanece nas sombras – suspeita-se que esteja escondido em off-shores mundo afora. Segundo a PF, durante décadas Cabeça Branca limpou o dinheiro das drogas por meio de um engenhoso esquema financeiro operado por doleiros amigos, como Alberto Youssef. Na gigantesca lavanderia deste doleiro, as propinas operadas por empreiteiras e políticos, rastreadas pela Lava Jato, misturaram-se às notas borrifadas de pó de Cabeça Branca.
Com pouco mais de 1,70 metro de altura, magro, lábios finos e olhos miúdos, barba e cabelos tingidos de preto, Luiz Carlos da Rocha tinha 57 anos quando foi preso. Naquela manhã em Sorriso, usava chinelos de tiras brancas, camiseta da mesma cor e bermuda jeans clara. Deixou os vidros da caminhonete parcialmente abertos – dentro do veículo estavam sua mulher, Fernanda Benedito da Silva, 23 anos, e o filho mais novo, então com 8 meses – e se dirigiu à padaria. Parecia tranquilo. Assim que cruzou a porta de vidro, três policiais à paisana foram na direção do estabelecimento, pistolas em punho. Cabeça Branca chegou perto do balcão, sem perceber a aproximação sorrateira do trio. Só quando um dos agentes estava a menos de 1 metro de distância, o traficante se deu conta da emboscada. Um dos policiais gritou:
– Polícia Federal! Deita! Deita!
Rocha obedeceu. Dois policiais o algemaram, e ele foi imediatamente colocado em uma caminhonete descaracterizada da PF. A ordem era ir o quanto antes para a vizinha Sinop (MT), a 85 km, onde um avião da corporação aguardava para levar Cabeça Branca a Brasília – os agentes temiam um possível resgate do traficante em terras mato-grossenses. Na estrada, o capo aparentou tranquilidade ao ouvir as perguntas dos policiais:
– Sua esposa não sabe quem o senhor é?
– Não. Palavra que não sabe.
– Mas o senhor é Luiz Carlos…
– Meu nome é Vitor, né?
Na ampla sala da base Montagu,[1] montada em Londrina (PR) para investigar o tráfico internacional de drogas, o delegado Elvis Secco contemplava absorto duas fotografias impressas, afixadas por ele lado a lado na parede, em 19 de fevereiro de 2017. Uma delas, dos anos 1990, mostrava a imagem do traficante Luiz Carlos da Rocha com cabelos alvos empertigados, olhos pequenos, lábios muito finos. A outra foto, de uma carteira nacional de habilitação com data de 2012, era de um homem de meia-idade, barba e cabelos negros, chamado Vitor Luís de Moraes, nascido em Tocos do Moji (MG), ficha limpa na polícia. O delegado olhava fixamente e calado as duas figuras. Havia semelhança nos olhos, no nariz e nos lábios, mas Moraes parecia mais jovem do que o traficante. Secco foi até a porta e, em busca de um parecer coletivo, convocou toda a equipe de agentes para ir a sua sala. As duas imagens, lado a lado na parede, inquietavam o grupo: afinal, o mineiro Moraes era de fato Cabeça Branca?
Não seria mesmo fácil capturar um fantasma, identificar e prender um megatraficante que se escondia da polícia havia trinta anos. Como evitar que, mais uma vez, ele subornasse os policiais e escapulisse?
Alguns meses antes, em 2016, quando começou a investigar Cabeça Branca, a primeira medida da base Montagu foi compartimentar radicalmente a operação: apenas a equipe da central de inteligência sabia de todos os detalhes da investigação. Além disso, o foco seria a prisão de Cabeça Branca, e não a apreensão dos carregamentos de cocaína que ele movimentava; a equipe sabia que a captura do líder levaria à derrubada de boa parte do seu esquema. Por último, a apuração começou com informantes e vigilância – diferentemente de outras operações antitráfico da PF, na Operação Spectrum, como foi chamada, a interceptação telefônica ocorreu apenas nas semanas que antecederam a prisão do capo paranaense. Pela experiência de operações anteriores, o grupo sabia que o grampo não daria em nada, porque havia tempos os traficantes evitavam falar sobre droga e dinheiro por telefone.
Naquele início de 2016, chamava a atenção dos agentes da Montagu o estilo de vida dos irmãos e dos filhos de Cabeça Branca: muitos deles moravam em condomínios de alto padrão e desfilavam em carros de luxo pelas ruas de Londrina sem possuírem empregos formais nem outra fonte de renda conhecida. Um relatório da Receita Federal anexado a uma das ações penais decorrentes da Spectrum mostra que Carlos Roberto da Rocha, o Beto, irmão do traficante, comprou três apartamentos na cidade do Norte do Paraná entre abril e agosto daquele ano. Nesse período, duas das irmãs dele declararam rendimentos anuais muito abaixo de suas movimentações financeiras.
No início da investigação, a equipe da Montagu era formada por cinco agentes. Seis meses depois, mais três policiais foram integrados à investigação, todos escolhidos a dedo por Secco. O delegado sabia que Cabeça Branca tinha dezenas de policiais, promotores e juízes no bolso. Se algum detalhe da apuração, por mínimo que fosse, chegasse aos ouvidos do traficante, a operação estaria arruinada.
Os agentes contataram três pessoas ligadas direta ou indiretamente à família Rocha, entre elas a boliviana Lidia Cayola Mosquera, uma das fornecedoras de cocaína para o capo. Com base nesses informantes, os policiais passaram a seguir a rotina dos filhos e dos irmãos de Cabeça Branca. A expectativa era de que, em algum momento, eles se encontrassem com o traficante – os policiais já suspeitavam que as feições do rosto dele estivessem modificadas por cirurgias plásticas, e os cabelos grisalhos, sua principal marca (e a razão de seu apelido), provavelmente tingidos. Alguns agentes chegaram a embarcar nos mesmos voos que os filhos de Rocha, rumo à Europa e aos Estados Unidos, na expectativa de que se encontrassem com o pai ou com compradores de droga no exterior.
Foram quinze voos em seis meses – viajar para destinos caros e cobiçados da Europa era uma constante entre os filhos. Em junho de 2017, dias antes de o pai ser preso, Rafael Pigozzo Rocha, o segundo de três filhos, planejava uma viagem com a mulher, o irmão mais velho, Bruno César Payão Rocha, e a cunhada para a ilha de Capri, na Itália:
– Deixa eu falar uma coisa, eu tô começando a ver… de fazer as reservas de Capri agora – disse a mulher de Rafael.
– Ahã.
– E… aí, que dia que você alugou o barco?
– Dia primeiro.
– […] E… como que vai ser, você sabe? Tipo, de que horário a que horário? Ele para em algum beach club ou não?
– É livre, tipo, é o dia inteiro, daí você escolhe o lugar que ele para nesses beach clubs na costa ali.
Mas as viagens dos filhos se limitavam a passeios turísticos clássicos, sem contato com estranhos. A equipe também pediu a relação de todos os passageiros desses voos, para saber se algum deles, mesmo com falsa identidade, tinha documentos do Paraguai, Uruguai ou Suriname, países em que Cabeça Branca havia morado. Sem sucesso.
Em junho de 2016, já no curso da Operação Spectrum, um episódio mudaria o rumo da investigação: a apreensão de cerca de 1 tonelada de cocaína em um galpão de Guarulhos (SP). Entre os três presos em flagrante pela Polícia Civil paulista estava Alexsandro Cabral de Carvalho, filho de Rui Carlos de Carvalho, braço direito de Cabeça Branca, morto em 2005. Pelos informantes, os policiais souberam que Alexsandro integrava a equipe logística de Cabeça Branca – posteriormente, uma investigação da Receita Federal concluiu que ele também era laranja do traficante, tendo gastado 1,3 milhão de reais na compra de oito imóveis em Londrina e Guarulhos, em sociedade com outras três pessoas, entre 2013 e 2016.
Em buscas no Facebook, os agentes constataram que Alexsandro Carvalho era próximo da família Rocha. O irmão dele, que mora em Londrina, passou a ter os passos vigiados pela PF. Certo dia, encontrou-se com Wilson Ramid Gomes Roncaratti, que também entrou na lista de alvos a serem seguidos – ele mantinha relações com os Rocha nas redes sociais. Em poucos dias os policiais identificaram o pai dele, Wilson Roncaratti. Ao analisar o trajeto da sua caminhonete por meio de câmeras de controle de tráfego instaladas em postos da polícia rodoviária e em pedágios, os agentes verificaram que Wilson Roncaratti, o pai, passava a maior parte do tempo na estrada, especialmente no trecho São Paulo-Londrina-Ponta Porã. Viajava de 4 a 5 mil km por mês. A equipe da Montagu suspeitava inicialmente que Roncaratti fosse o motorista de Cabeça Branca, o que logo foi descartado, já que ele viajava sempre sozinho. Cada passo que ele dava era vigiado 24 horas por dia, por uma equipe de sete agentes que se revezavam na missão. Quando o alvo ultrapassava a linha da fronteira e entrava em território paraguaio, a equipe aguardava pelo seu retorno a Ponta Porã, o que demorava até uma semana. As idas de Roncaratti coincidiam com períodos em que Bruno e Rafael, os filhos mais velhos de Cabeça Branca, estavam no país vizinho – eles viajavam com frequência de Londrina para o Paraguai. Em uma dessas viagens, a equipe da PF em Londrina solicitou à Polícia Rodoviária Federal que parasse a caminhonete de Roncaratti para fazer uma foto da carteira de habilitação dele – o objetivo era ter todos os dados do alvo.
Na tarde do dia 16 de fevereiro de 2017, Wilson Roncaratti encontrou-se com um homem em um shopping à margem da Rodovia Raposo Tavares, na Grande São Paulo, e de lá os dois seguiram até um sobrado de tons ocre na Avenida Henrique Broseghini, no bairro Parque dos Príncipes, em Osasco. Embora o local não fosse um condomínio fechado, suas ruas eram vigiadas por câmeras e motoqueiros armados. Na primeira vez que passaram em frente à casa, os agentes fotografaram o imóvel. Quando passaram pela segunda vez, mesmo estando em um carro comum, os policiais foram abordados pelos vigilantes e precisaram sair dali.
O delegado Elvis Secco tentou alugar uma casa quase em frente por 5 mil reais mensais, mas o dinheiro requisitado à Polícia Federal em Brasília nunca chegou. As equipes ficavam hospedadas em um hotel nas proximidades e, duas vezes por dia, passavam em frente ao imóvel, cada vez com um carro “frio” diferente para não chamar a atenção – foram utilizados quinze automóveis, a maioria oriunda de apreensões feitas pela PF em outras operações. O objetivo da vigilância era saber quem frequentava o imóvel e registrar as placas dos veículos que estacionavam na garagem ou em frente à casa. Um dos carros era um Volkswagen Jetta prata, em nome de Maria Aparecida da Rocha Araújo, irmã de Cabeça Branca. Nesse momento, a equipe de agentes teve certeza de que o traficante frequentava o endereço. Invadir o imóvel, porém, estava fora de cogitação. Isso só poderia ocorrer caso os policiais se deparassem com o traficante na casa, o que nunca ocorreu.
Foram duas semanas de espreita. Nesse período, os agentes amealharam uma extensa relação de veículos. Ao analisar o trajeto de cada um deles, chamou a atenção dos agentes uma caminhonete Toyota Hilux, que constantemente rodava entre Osasco e Sorriso. Na manhã do dia 18 de fevereiro, a caminhonete saiu da casa na Avenida Henrique Broseghini e seguiu pela Rodovia dos Bandeirantes. Quando o veículo chegou à Rodovia Anhanguera, rumo ao Norte paulista, a equipe da base Montagu contatou a Polícia Rodoviária Estadual em Ribeirão Preto para que abordasse o motorista da caminhonete, simulando um patrulhamento de rotina, e fotografasse a sua CNH. Minutos depois, a foto da carteira do motorista – que se identificava como Vitor Luís de Moraes – estava diante do delegado Secco. Era essa a imagem que ele iria afixar na parede de seu escritório, na base Montagu, em Londrina.
Depois de debater com os agentes as semelhanças e diferenças entre as fotos de Luiz Carlos da Rocha e Vitor Luís de Moraes, o delegado decidiu enviá-las ao Instituto Nacional de Criminalística (INC), ligado à Polícia Federal e sediado em Brasília, junto com outra foto de Moraes, feita em 2006 e que constava dos arquivos do Detran de São Paulo – nessa última imagem, o “mineiro” exibia cabelos negros e o rosto sem barba. Sem dar detalhes da investigação nem identificar as fotos, Secco perguntou ao INC se se tratava da mesma pessoa. Os peritos puseram as três fotos na mesma escala de tamanho para que a distância entre as pupilas ficasse igual em todas elas. Em um primeiro momento, foi constatada “coincidência no formato da face e da morfologia geral de boa parte das estruturas, como nariz, boca e olhos”. Em seguida, criou-se, a partir da imagem de 2006 de Moraes, uma máscara com o contorno de partes do rosto (lábios, sobrancelhas, nariz etc.). Essa máscara foi sobreposta à foto de Cabeça Branca e à imagem mais atual de Moraes. Exceto as pálpebras, modificadas por cirurgias plásticas, e uma pinta no queixo na foto de 2006, havia coincidência no formato dos olhos, do nariz, da testa e das orelhas. “Os resultados dos exames corroboram muito fortemente as hipóteses de que as faces […] pertencem ao mesmo indivíduo”, concluíram os peritos, em laudo datado de 10 de abril de 2017.
Vitor Luís de Moraes, portanto, era Cabeça Branca.
Após a identificação do traficante, o próximo desafio seria entrar nos circuitos fechados de telefonia que certamente ele utilizava. O objetivo era descobrir o número de um desses circuitos – os agentes sabiam que isso bastava para quebrar outros circuitos interligados. Certo dia, Wilson Roncaratti viajou de avião até Sinop, e Secco solicitou a agentes locais que acompanhassem o investigado desde o momento que ele descesse do avião, estando atentos para anotar a hora exata em que utilizasse o celular. Ele fez a primeira ligação pouco depois de chegar em Sinop, o que permitiu que a equipe identificasse a antena ativada pelo seu telefone, próxima do aeroporto. O passo seguinte seria solicitar à Justiça a relação de telefones que utilizaram aquela antena no horário registrado, com uma margem de segurança de três minutos, para mais e para menos.
Para tanto, seria preciso judicializar a operação. Secco, então, foi a Curitiba para se encontrar com o juiz Nivaldo Brunoni, titular da 23ª Vara Federal Criminal da capital paranaense, sorteada para cuidar do inquérito. Ex-promotor de Justiça, Brunoni era próximo do então juiz Sergio Moro e atuou em alguns processos judiciais da Lava Jato – foi dele a ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018. O delegado apresentou todo o histórico da investigação contra Cabeça Branca e solicitou ao juiz a relação das ligações telefônicas feitas da antena em Sinop, naquele dia e horário em que foi utilizada por Roncaratti. De início, Brunoni achou o pedido estranho – investigações antitráfico costumam apreender cargas de droga para só depois prender o alvo principal –, mas após uma reunião com os servidores da 23ª Vara, decidiu dar um voto de confiança ao delegado e concedeu o pedido.
As operadoras de telefonia entregaram à base Montagu um relatório com mil ligações feitas naquele horário, a partir da antena visada. Nos dias que se seguiram, os agentes da base que vigiavam Roncaratti durante suas viagens anotaram os horários em que ele utilizava o celular e, depois, pediam a relação de telefonemas, com a mesma margem de segurança de três minutos. Por fim, a equipe reuniu um gigantesco banco de dados com o número dos telefones em cada local. Em um trabalho minucioso, os policiais cruzaram os registros de cada planilha em busca de números coincidentes. Encontraram quatro, de início. Três deles foram descartados por estarem inativos. O que sobrou era o do circuito fechado de Roncaratti. O delegado, então, solicitou ao juiz Brunoni a interceptação desse telefone. Roncaratti conversava muito com um homem que o chamava sempre de Bichão. Esse homem era Cabeça Branca.
Nos primeiros dias de maio de 2017, os agentes da PF que estavam seguindo a caminhonete de Roncaratti na cidade de São Paulo viram quando, no bairro de Pinheiros, Rafael, o filho de Cabeça Branca, entrou pela porta de passageiros. A equipe da Montagu tentou seguir o veículo, mas deixou que escapasse de sua vista, no caótico trânsito paulistano. Como os policiais sabiam que o grupo gostava de se reunir em shoppings, a PF encaminhou ofício aos estabelecimentos desse tipo na região, perguntando se em algum deles havia estacionado aquele veículo. Dias depois, o Shopping Iguatemi informou que, sim, a caminhonete de Roncaratti havia ingressado no estacionamento às 14 horas do dia 5 de maio. Os agentes correram até o shopping e pediram para ver os registros feitos pelo circuito de câmeras. Ao assistirem às imagens da caminhonete passando pela cancela do estacionamento, conseguiram reconhecer Roncaratti ao lado de Rafael. Os dois se dirigiram em seguida a um restaurante do shopping.
Exatamente cinquenta minutos depois, as câmeras do estacionamento mostraram a chegada, em outra caminhonete, de um homem de cabelos e barba escuros, com um bebê no colo, acompanhado de duas mulheres: uma de estatura mediana e outra mais baixa. Os agentes não tiveram dúvida: tratava-se de Vitor Luís de Moraes – ou melhor, de Cabeça Branca – com a mulher, Fernanda, de quem a PF não encontrou qualquer indício de envolvimento nos crimes do marido, embora ela tivesse conhecimento deles. A mulher de estatura baixa trabalhava como babá do filho do casal. Era a primeira imagem em movimento que a PF tinha do megatraficante em muitos anos. Eles se dirigiram em seguida para o mesmo restaurante onde já estavam Roncaratti e Rafael. Às 16h30 todos saíram do local – Rafael carregando o bebê, seu irmão caçula. Roncaratti entregou a chave da caminhonete a Rafael e foi embora de táxi.
Era quase noite quando Cabeça Branca acompanhou Fernanda, a babá e Rafael com o bebê até a saída do shopping para que tomassem um táxi. O traficante retornou ao estabelecimento, onde a câmera de um dos elevadores captou sua imagem ao lado de dois homens. Os três foram para uma mesa na praça de alimentação e conversaram até as 20h50. Saíram juntos e entraram na caminhonete de Cabeça Branca. Meses mais tarde, os agentes identificariam a dupla que se encontrou com o traficante: Alessandro Rogério de Aguiar, o Ursinho, e Marcelo José Gregolin Anacleto, o Garotão, responsáveis por parte da logística do transporte e exportação de cocaína do capo paranaense.
A partir do circuito fechado de comunicação de Cabeça Branca com Roncaratti, os agentes chegaram a outro, mantido entre o traficante e uma família radicada na capital paulista, os Marques. Analisando as antenas de celular acionadas pelo telefone de um deles, Douglas Sedivalter Marques, desde janeiro daquele ano, constatou-se o uso intenso do celular em um trecho entre São Paulo e Mato Grosso que era o da rota do caminhão que ele dirigia. Os Marques também mantinham contato em rede social com pelo menos duas irmãs de Cabeça Branca. A conclusão era óbvia: Douglas Marques, seus irmãos Diego, Daniel e Herik, além do pai, José Sedivalter, eram os responsáveis pelo transporte da droga do capo do Norte de Mato Grosso até o estado de São Paulo.
Durante 45 dias, os agentes seguiram seis carretas carregadas com um total de 4,2 toneladas de cocaína naquela rota, mas sem apreender a droga – o objetivo da ação autorizada pela Justiça, denominada ação controlada, era entender em detalhes a logística do negócio de Cabeça Branca. Em uma dessas vigilâncias, na segunda semana de maio de 2017, os policiais seguiram a carreta desde Sinop até um galpão em Araraquara (SP), onde o veículo, provavelmente recheado com cocaína, foi descarregado; o local também servia de entreposto para a máfia sérvia, como se descobriu mais tarde. Douglas Marques recebia ordens frequentes de um interlocutor que revezava as ligações em três diferentes celulares, mas que utilizava em todas as conversas o sinal de uma mesma antena, próxima à Avenida Henrique Broseghini, em Osasco. A equipe da base Montagu não teve dúvidas de que essa pessoa era Cabeça Branca.
Aqui, um parêntese. Não é comum um traficante do tamanho de Luiz Carlos da Rocha falar diretamente com seus motoristas, que têm contato com a droga ao transportá-la e, portanto, são muito mais vulneráveis à prisão em flagrante. Mas os agentes acreditam que, como a prisão de Alexsandro Carlos de Carvalho e Robson de Oliveira Silva em Guarulhos desfalcou o esquema de Cabeça Branca, ele próprio teria assumido temporariamente a função da dupla.
– E aí, rapaz? – perguntou Rocha a Douglas, no fim de maio de 2017, que estava em Fronteira (MG), rumo à capital paulista.
– Beleza? — respondeu o caminhoneiro.
– Beleza. E você?
– Eu tô rodando, não cheguei ainda.
– Caralho, que está acontecendo? Que tanto demora assim?
– Faltando 100 km. É só amanhã, hoje ninguém mexe mais não.
– Mas amanhã você acha que está liberado?
– Até meio-dia eu acho que sim.
– Tá bom então. Você me liga amanhã para falar aonde você vai, se no novo ou no antigo, tá?
Na tarde do dia seguinte, Cabeça Branca voltou a telefonar para Douglas, que já chegara em São Carlos, no interior de São Paulo:
– Liberaram eu agora – disse o motorista.
– Tá bom. Quanto [ininteligível] demora pra chegar?
– Faltam 250 km ainda.
– Puta que pariu.
– Vou chegar tarde.
– […] Tá bom, vem embora, meu amigo, vê que hora que cê chega aqui e me avisa. Dependendo do horário, só amanhã cedinho, a gente resolve isso, tá? […] Até mais, fica com Deus. Deus te acompanhe, tchau.
À noite, Douglas telefonou para o patrão e disse que acabara de chegar. A antena utilizada por seu celular ficava em Embu das Artes, na Grande São Paulo.
– Chegou meio tarde, mas vamos amanhã cedo, né? O que você acha? – perguntou Cabeça Branca. – Que horas você quer ir pra lá? (Para a PF, o traficante estava perguntando o horário em que Douglas iria descarregar a cocaína no galpão de Embu das Artes.)
– Ah, é só falar o horário que eu vou.
– Você que fala o horário, só avisa o menino lá.
– De manhã.
– […] Então 8 horas lá no antigo, tá, no velho, tá.
– Tá bom.
Em pouco tempo, os policiais descobriram um terceiro galpão do esquema, em Cotia, também na Grande São Paulo. Dois dos três endereços eram de difícil vigilância – enquanto o barracão de Araraquara ficava em um bairro residencial, onde qualquer veículo estranho seria facilmente notado, o outro, em Cotia, estava em uma rua vazia e sem saída.
Cabeça Branca utilizava o termo “pagamento” para se referir à droga estocada que deveria ser vendida:
– Já faz, é… pagamento de duzentos. É dois pagamentos de duzentos [que] vai fazer. Tá? – disse o traficante. (Para a PF, eram 200 kg de cocaína.)
– Tá bom, diminuir então? Tá beleza – respondeu o funcionário responsável pelo galpão de Cotia.
– Dois de duzentos redondo, tá?
– Tá bom, então.
O patrão pediu para que o funcionário dispensasse pessoas estranhas ao esquema que trabalhavam naquele dia no barracão:
– Eu tô dizendo, quando cê tiver alguma coisa pra fazer você já deixa tudo organizado, cê já fala com o pessoal, já manda o pessoal pro outro lado, dispensa o pessoal.
– Eu vou dispensar, eu tô dando um jeito aqui, só tava esperando cê ligar pra ter certeza, a hora que vai ser, senão, dependendo, se for de tarde, dá pra fazer tudo certinho.
Em meados de junho de 2017, Cabeça Branca pediu para o funcionário entregar uma “foto” para um possível comprador – seria uma amostra de cocaína.
– Eu preciso que você leve uma foto para um rapaz aí pra mim.
O capo ordenou que o rapaz se encontrasse com o cliente em um café de São Paulo. Mas, minutos depois, mudou de ideia e citou outro endereço, em código:
– Acho que eu vou mudar, falar pra você levar […] naquele lugarzinho de sempre, ali onde você leva pra ele.
– Beleza. Pode ser.
– Ali no três mesmo ou você prefere no um?
– No três. Pode ser no três.
Os números, acreditam os agentes, indicavam os galpões do esquema. “Três” era o endereço em Cotia.
Tudo se desenhava para que a prisão de Cabeça Branca ocorresse em São Paulo, onde ele estava, pois no dia 9 de junho de 2017 ele encontrou-se com seu irmão Beto no bairro de Perdizes. Mas, quatro dias depois, viajou para Sorriso, conforme indicavam as antenas dos celulares utilizadas por ele. Seis dias mais tarde, o patrão mandou Douglas Marques, que transportava a droga, ir para Mato Grosso na segunda-feira, dia 12:
– Se organiza pra sair segunda-feira, tá?
– Ah, tá bom – respondeu Douglas.
– […] Eu vou deixar um dinheiro com o rapaz, o rapaz leva pra você aí, tá?
– Beleza.
– Dinheiro pra viagem, tá?
– Tá bom.
No dia 12, os irmãos Douglas e Diego Marques, cada qual no seu caminhão, rumaram para Mato Grosso, conforme indicou aos policiais o sistema de monitoramento nas rodovias. A equipe da base Montagu estava certa de que a dupla ia levar mais cocaína para os galpões no estado de São Paulo.
Cinco dias depois, quando os irmãos estavam em Cuiabá (MT), Cabeça Branca telefonou para Douglas e disse que o carregamento no Norte do estado atrasaria alguns dias. Para a PF, o capo viajara até Sorriso para cuidar pessoalmente dos detalhes do envio do carregamento de cocaína. A droga, de origem colombiana, chegou a Mato Grosso após ser embarcada em pistas clandestinas no Sul da Venezuela – foram pelo menos duas viagens feitas em um bimotor Navajo, com capacidade para transportar até 1 tonelada de cocaína.
– Deu uma atrasada, deu uma enrolada, fica por aí por enquanto, vai enrolar um pouquinho. […] Lá pelo meio da semana que vem, tá?
– Tá beleza. […] Aí eu… cê sabe mais ou menos pra onde vai?
– Vai ser lá na mulher mesmo, acho que vai ser, tá?
– Tá, eu vou subir pra lá então.
Para os agentes, “mulher” era o município de Cláudia, a 170 km de Sorriso.
Cabeça Branca chegou a acompanhar, de longe, o motorista Diego estacionar o caminhão em um posto de combustível de Nova Mutum, em Mato Grosso:
– Ontem eu vi a hora… Eu tava aí, eu tava na cidade. Eu vi a hora que você encostou logo depois do almoço, aí onde cê encostou ontem à tarde.
– É mesmo?
– É, eu vi. Você passou e encostou lá no fundo, né?
– Sim.
– Então, eu tava aí, eu ia falar com você, mas depois achei melhor não falar, que eu tava com a família. […] Deu uma enroladinha, vai ficar pro final de semana, tá?
– Ah é?
– Tá bom? E vai ser… eu acho que vai ser lá… Não vai ser na mulher [Cláudia], vai mudar, vai ser no outro ali, tá?
– No último que eu fiz, ou aquele mais pra frente?
– Não, não, aquele último [ininteligível], aí onde que cê falou que ia ficar na entrada que dá pra ir daí também. (Cabeça Branca evitava dizer o nome da cidade no telefone.)
– Ah, entendi.
– Outra coisa, eu fiquei meio cabreiro também… Não tem nada a ver não, mas é bom cê dá uma olhadinha, uma cuidadazinha aí. Eu vi um automóvel, uma Mercedes preta, placa de Cuiabá, meio estranha aí, parada aí, e dois caras dentro… um moreno… entendeu?
– Certo, vou ficar esperto. (Para a sorte da PF, aquele não era o veículo em que os agentes estavam naquele dia em Nova Mutum, seguindo os passos do caminhoneiro.)
– Não tem problema atrasar um dia… dois dias, não tem problema não. O importante é a gente estar seguro das coisas – disse Cabeça Branca.
O combinado era que os dois caminhões seriam carregados na segunda-feira, dia 26, em Campo Novo do Parecis, também em Mato Grosso. Mas houve um atraso, e o carregamento da carreta de Diego só ocorreu no dia seguinte; o da de Douglas ficou para a quarta-feira, seguindo ordens de Cabeça Branca:
– Amanhã já vou, acho que vou te autorizar para você ir lá pro destino, tá?
– Tá bom.
Enquanto Douglas e Diego rumavam para o Norte mato-grossense, o irmão deles, Daniel Henrique Marques, se encontrava com Wilson Roncaratti no Shopping Butantã, em São Paulo, para receber 75 mil reais, parte do pagamento pelo novo frete dos Marques no trecho Mato Grosso-São Paulo, conforme o próprio Cabeça Branca adiantara a Daniel por telefone:
– Eu vou mandar 75 [mil reais], é… 25 [mil reais] do… Tarta [Tartaruga, apelido de Douglas], 25 do seu e 25 do outro, tá?
– Tudo bem.
Depois de se encontrarem em um café dentro do shopping, ambos foram até a caminhonete de Roncaratti no estacionamento, onde o gerente do capo retirou um pacote com dinheiro e entregou a Daniel.
O plano do delegado Secco era prender Luiz Carlos da Rocha assim que os caminhões iniciassem a viagem de volta a São Paulo, carregados com cocaína. Já no início de junho, Secco tinha em mãos mandados de prisão e de busca e apreensão para todos os endereços possíveis dos alvos, incluindo a casa de Osasco onde o delegado acreditava que Cabeça Branca estaria quando a droga se aproximasse da capital paulista. Mas Rocha decidiu ficar em uma fazenda próxima de Sorriso para, no início da semana seguinte, renovar a sua CNH, que havia vencido recentemente, conforme diálogo dele com um despachante, em que utiliza a falsa identificação de Vitor Luís Moraes:
– É Vitor [quem fala], é aquela carteira minha que você está vendo em Colíder, lembra? – disse Rocha. [Colíder é uma cidade próxima de Sorriso.]
– Ah, tá – respondeu o despachante.
O diálogo ocorreu em 30 de junho, sexta-feira, perto das 13 horas. Cabeça Branca combinou de se encontrar com o despachante na manhã de segunda-feira. Seriam as últimas horas de liberdade do capo paranaense.
Naquele dia 30, os dois caminhões já estavam seguindo para São Paulo, carregados com cocaína. Elvis Secco tomou então a decisão de prender Cabeça Branca em Mato Grosso. Dos oito policiais da equipe, enviou seis para Sorriso e dois para São Paulo. Uma equipe de 150 agentes ficou de prontidão para a fase ostensiva da operação, quando se cumpririam os mandados judiciais. Exceto os oito policiais da base Montagu, nenhum deles sabia quem eram os alvos, uma medida de segurança para evitar vazamento de informação.
Os policiais corriam contra o tempo para resolver um problema grave: eles sabiam em que região de Sorriso morava Cabeça Branca, mas não tinham o endereço exato dele. Na tarde do dia 30, o filho mais novo do traficante ficou doente e a mãe, Fernanda, cujo celular estava grampeado, disse em uma ligação que levaria a criança para ser atendida em algum hospital ou posto de saúde de Sorriso. Era a chance de os policiais obterem o endereço. Como ela não disse a qual hospital iria, os agentes percorreram todas as unidades de saúde da cidade procurando fichas de crianças cuja mãe se chamasse Fernanda Benedito da Silva. Encontraram. A casa de Cabeça Branca ficava na Rua Santa Bárbara, no bairro Vila Romana. Mas ele não estava lá naquele dia – fora para uma de suas fazendas na região.
Havia vinte dias, Elvis Secco coordenava as equipes a partir de Curitiba, onde a estrutura de trabalho era mais adequada e ele tinha mais facilidade para contatar o procurador do Ministério Público Federal Daniel Holzmann Coimbra, que atuava na operação, e o juiz do caso, Nivaldo Brunoni – ambos estavam baseados na capital paranaense. Na manhã daquela sexta-feira, dia 30, o delegado havia falado com o superintendente da Polícia Federal em Cuiabá e solicitou com urgência quatro policiais para Sorriso, a quase 400 km de distância. Foi atendido. A ideia era manter a equipe de prontidão na cidade até a noite de domingo – se até lá Cabeça Branca não aparecesse em casa, o plano era prendê-lo durante o encontro com o despachante em Colíder, na segunda-feira.
Às três da madrugada do dia 1º, sábado, dois agentes em um carro comum estacionado na Vila Romana, próximo à casa do traficante, viram a caminhonete Ford Ranger de Cabeça Branca chegar à casa. Talvez a pessoa no veículo fosse a mulher dele, mas o delegado decidiu arriscar: resolveu que a Operação Spectrum seria deflagrada no dia seguinte, mas só a partir do instante que os agentes vissem Cabeça Branca – nada de invadir a casa e correr o risco de vê-lo fugir. Depois da notícia recebida de madrugada, Secco não dormiu mais. Afinal, qualquer mínimo deslize colocaria por terra todo o trabalho que havia feito durante um ano e meio.
No fim da manhã daquele sábado, às 11h30, alguém saiu da casa dirigindo o Ford Ranger, e os mesmos agentes que haviam visto o veículo chegar de madrugada o seguiram até o Centro de Sorriso, onde a caminhonete parou perto da principal padaria da cidade. Quando os policiais viram um homem de barba e cabelos negros descer do veículo, não tiveram dúvida: o fantasma havia encarnado. Cabeça Branca foi rendido facilmente pela polícia perto do balcão da padaria.
Eufóricos, os agentes ligaram para Secco:
– Pegamos o Cabeça Branca, doutor! Tamo com ele!
O delegado vibrou e, imediatamente, determinou que os 150 policiais cumprissem os nove mandados de busca e apreensão nos endereços ligados ao traficante. Na casa de Cabeça Branca em Osasco, a PF encontrou duas malas de viagem com 3,4 milhões de dólares, em dinheiro vivo, além de joias, uma coleção de relógios Rolex e outra de vinhos caros. No apartamento em que Roncaratti morava em São Paulo, registrado em nome de um cunhado de Cabeça Branca, os agentes apreenderam mais 1 milhão de dólares em espécie – o gerente financeiro do esquema também seria preso em Londrina naquele mesmo sábado, 1º de julho. Roncaratti morreria na cadeia, no início de fevereiro passado, vítima de infarto.
Os policiais já esperavam encontrar muito dinheiro em espécie nos endereços de Cabeça Branca. Conversas entre os funcionários da casa do traficante em Osasco captadas pela PF indicavam que o traficante costumava guardar grandes somas ali:
– O meu patrão deixou um “bolo” lá hoje que eu nem te conto – disse uma das funcionárias.
– Hã?
– Deixou um bolo de dinheiro, minha filha.
– Eita. Ia precisar, né?
– Eu nem toquei, passei longe.
Entre os itens apreendidos estavam onze veículos, um telefone satelital, à prova de grampos, e cinquenta celulares utilizados por Cabeça Branca para criar sistemas de comunicação em circuito fechado – cada um possuía adesivo com o nome e o número de quem ele deveria contatar naquele aparelho. A análise do conteúdo das conversas mantidas nesses telefones em aplicativos como o WhatsApp levaria os policiais a desvendar boa parte dos esquemas mantidos pelo capo nos últimos cinco anos. No galpão de Cotia, foram apreendidos 170 kg de cocaína; no barracão de Araraquara, os agentes encontraram grandes paletes com granito que seriam usados para ocultar cargas da droga para exportação, um esquema da máfia sérvia.
Faltava flagrar os dois caminhões, dirigidos pelos irmãos Marques, recheados com cocaína. Às 13 horas do dia 1º, dois agentes abordaram o veículo de Diego Marques próximo a um posto de combustível em Alto Garças (MT). No fundo falso da carreta carregada com milho, os policiais encontraram 638 kg de cocaína em tijolos marcados com o emblema do West Ham, time de futebol britânico. Mas havia ainda o outro caminhão, conduzido por Douglas Marques. Suspeitava-se de que o veículo estivesse em Campo Novo do Parecis (MT), mas não foi encontrado na cidade. Na manhã do dia seguinte, os agentes seguiram para Cuiabá, pois acreditavam que a carreta iria para lá. À tarde, o caminhão foi localizado no meio do caminho, no estacionamento de um posto de combustível em Nova Mutum. No fundo falso da carreta vazia, havia 620 kg de cocaína em tijolos com a imagem de um cavalo ou de uma tulipa. Parte da droga estava em forma de pasta base, que não é exportada – para a PF, seria vendida a facções criminosas no Brasil. Diego Marques foi condenado a dezessete anos de prisão por tráfico e lavagem de dinheiro e seu irmão Douglas, a dezenove anos, por tráfico, associação ao tráfico de drogas e lavagem de dinheiro; Daniel, irmão deles, a três anos e sete meses de prisão por participação em organização criminosa. Outro irmão, Herik Marques, e o pai, José Sedivalter Marques, não foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público.
Enquanto o caminhoneiro Douglas era preso em flagrante em Mato Grosso, na capital paranaense o delegado Secco se encontrava cara a cara, pela primeira vez, com Cabeça Branca. O traficante tinha o semblante calmo, apesar do abatimento.
– Eu esperava ser preso um dia, mas não nessa fase da minha vida. Eu devia ter saído do país. Como é que vocês me pegaram, doutor? Me diga: o que eu fiz de errado?
– Você não errou. Nós chegamos até você pela sua família. Sabíamos que você mantinha algum contato com seus filhos, irmãos e mãe. Por eles chegamos ao Wilson Roncaratti, que nos levou até você.
– Eu sabia que aquele velho filho da puta deixaria rastro.
Este texto foi adaptado da Introdução e do capítulo 10 (Duas Fotos na Parede) do livro Cabeça Branca: A Caçada ao Maior Narcotraficante do Brasil, a ser lançado neste mês pela editora Record.
[1] O nome da base faz referência a Edwin Samuel Montagu, antigo secretário das Finanças do Tesouro britânico que veio ao Brasil em 1923 para auditar as finanças do país a pedido de banqueiros ingleses que iriam avalizar um empréstimo solicitado pelo presidente Artur Bernardes. O empréstimo não deu certo, mas Simon Joseph Fraser, lorde Lovat, assessor para assuntos ligados à agricultura, interessou-se pelo fértil solo do então inexplorado Norte paranaense e, de volta à Inglaterra, organizou a Companhia de Terras do Norte do Paraná, que comprou 1,32 milhão de hectares na região, construiu uma linha férrea ligando-a a Ourinhos (SP) e dividiu a área em pequenos lotes. Em 1929, surgiu um pequeno povoado no interior da propriedade, batizado de Londrina em homenagem aos ingleses.
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