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O fim da polarização
Nada de PT ou PSDB: a verdadeira força hegemônica da política brasileira é o pemedebismo.
Marcos Nobre | Edição 51, Dezembro 2010
A partir das eleições de 2006, a disputa pelo título de “melhor governo da história deste país” foi politicamente decidida a favor de Lula, contra a era FHC. Já o debate acadêmico, em sentido contrário, parecia se encaminhar para entronizar (para o bem ou para o mal, dependendo da avaliação) o Plano Real como marco de um novo período da história brasileira. Foi quando o cientista social André Singer, num artigo publicado em 2009 na revista Novos estudos do Cebrap, resolveu comprar a briga e estabelecer o lulismo como momento inaugural de uma nova era. Segundo suas análises, o governo Lula construiu um programa político ao longo de dois mandatos, cuja base social estaria na massa popular desorganizada que conquistou, nesse período, substanciais melhorias em seu padrão de vida. Lula teria realizado uma operação política de troca de sua base eleitoral e de apoio entre as eleições de 2002 e de 2006. Conforme a tese, ele abandonou a base tradicional na classe média em favor de um “subproletariado”, caracterizado por um profundo e disseminado conservadorismo. Foi nesses termos que Singer deu corpo e densidade à expressão até então vaga do “lulismo”, levando a discussão a outro patamar.
Em textos mais recentes, Singer deu a esse suposto conservadorismo de massa profundidade histórica, em registro local e internacional, por assim dizer. O lado nacional conecta a nova base social de Lula a uma corrente social subterrânea que o levaria a Getúlio Vargas e à “herança populista dos anos 1940/1950” e que estaria ligada, no presente, a um “povo lulista que deseja distribuição de renda sem radicalização política”, como afirmou em artigo publicado na Folha de S.Paulo.
Já é suficientemente inquietante a aproximação com um paternalismo avesso à democracia. Tanto mais que Singer nem mesmo distingue entre o Getúlio Vargas da ditadura do Estado Novo e o presidente eleito da década de 50. Mas a complicação fica ainda maior quando aproxima o lulismo do New Deal dos Estados Unidos da década de 30, como fez em ensaio publicado na edição de outubro de piauí. Essa comparação com um momento passado da história norte-americana pretende, na verdade, apontar para o futuro – para o Brasil que teria sido inaugurado pela era Lula e que teria como imagem a formação da nova classe média dos Estados Unidos depois do período do presidente Franklin D. Roosevelt.
A comparação com o New Deal parece deslocada por várias razões. A começar pelo fato de que, nos Estados Unidos, ele se seguiu a nada menos do que a crise de 1929. Ao contrário de Obama agora, Roosevelt chegou três anos depois da maior catástrofe econômica da história do capitalismo em tempos de paz e encontrou o terreno propício – não obstante a derrota histórica nas eleições legislativas de 1938 – para alcançar um novo grande acordo social. Sem falar no fato elementar de que o patamar de desenvolvimento social, econômico e democrático dos Estados Unidos pré-1929 não tem base de comparação com o Brasil de 2002. E, tudo somado, um vaivém entre o New Deal, Lula e o Estado Novo nem de longe pode ser considerado como uma operação inofensiva.
Seja como for, está ausente a referência à democracia e a uma cultura política democrática – tanto no caso dos Estados Unidos como no caso do Brasil. Como se a presença ou ausência da tradição e da prática democráticas não fosse elemento estrutural para pensar qualquer aproximação ou comparação entre situações sociais e históricas distintas. De maneira crua, o que se tem na argumentação de Singer é o suposto de que aumentar a renda da população pobre tem resultados conservadores. Um pressuposto, aliás, que não é demonstrado. Surge como um economicismo de novo tipo. Não apenas por ignorar o papel das instituições e de uma cultura política democrática – fenômenos “superestruturais”, como se costumava dizer no velho jargão marxista –, mas por reduzir a política ao reflexo de uma população que compra e consome.
Com essa redução, desaparece do horizonte também a crítica. Desaparece todo o universo de obstáculos à efetiva democratização da sociedade que caracteriza a política do país. Desaparece a imagem de uma sociedade amputada por uma representação política excludente, como é o caso da brasileira. Supor conservadorismo sem examinar as condições políticas concretas do desenvolvimento da democracia naturaliza esse mesmo conservadorismo.
A situação é outra quando se olha tanto o período FHC como o período Lula do ponto de vista mais amplo do processo de redemocratização iniciado nos anos 80. Dessa perspectiva, tanto o marco representado pelo Plano Real quanto aquele representado pelo governo Lula se apresentam como momentos de inflexão em uma linha de desenvolvimento que os precede e, em boa medida, os determina. Ao mesmo tempo, é apenas essa ampliação do horizonte que permite enxergar a cultura política mais duradoura que caracteriza a sociedade brasileira, juntamente com sua forma mais relevante e estrutural de obstrução democrática. A essa cultura política herdada dos anos 80 dou o nome de “pemedebismo”.
É possível ver o desenvolvimento da política do país desde então como uma sequência de tentativas de lidar com esse fenômeno fundamental, seja para combatê-lo, seja para neutralizá-lo, seja para dirigi-lo. De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o “lulismo” foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente.
A pemedebização não tem a ver apenas com o crescimento ou a eventual hegemonia de um partido dentro de um governo. Tem a ver com uma lógica. A título de exemplo, basta pensar que uma figura como Aécio Neves pode perfeitamente ser pensado nesse registro. Se tiver a oportunidade e as condições políticas para isso, certamente ele será um símbolo do pemedebismo, mesmo que nunca se transfira partidariamente para o PMDB e continue no PSDB.
O pemedebismo significa uma lógica, portanto. Lógica que, sim, se formou e se consolidou a partir da configuração concreta do PMDB na década de 80, nas condições específicas em que se deu a redemocratização. Mas que se autonomizou em relação ao partido, mesmo que este continue ainda hoje a ser o seu fiel depositário na política brasileira.
Para entender esse movimento, é preciso voltar três décadas e puxar o fio da meada desde lá. O que é um exercício bem distante de ser óbvio no momento atual, em que a euforia da irresistível ascensão do país à condição de potência mundial deixa ver com dificuldade o fato elementar de que períodos de crise não foram a exceção, mas a regra, no quarto de século que vai de 1978 a 2003.
Com a reforma partidária de 1980, o MDB, já então PMDB, ganhou o importante problema de saber como não se esvaziar, de como manter dentro da mesma legenda correntes, tendências e mesmo partidos inteiros que tinham poucas afinidades além da unidade da luta contra a ditadura. Com o pluripartidarismo, parecia que o sentido do MDB também havia se esgotado.
Ocorre que não só o MDB guardava um capital político de altíssimo valor. Dispersar forças naquele momento poderia significar também colocar inteiramente nas mãos dos militares a transição democrática. Pois a antiga Arena tinha se tornado o PDS e conseguira manter a maior parte de seus quadros. Se a oposição se dispersasse naquele momento, o Colégio Eleitoral de 1985 poderia eleger um nome civil do PDS como presidente da República, em lugar de Tancredo Neves.
Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendências tão heterogêneas, a nova sigla aperfeiçoou um sistema interno de regras de disputa que já funcionara durante a década de 70 e que, a partir de 1983, precisava também incluir figuras de uma nova ordem de grandeza: governadores de estado. Esse sistema pode ser descrito de maneira simples como um sistema de vetos. (Coisa muito diferente – e ainda mais complicada – seria a de circunscrever a “base social” desse pemedebismo, de tão impressionante longevidade e vitalidade na política nacional, uma tarefa que não cabe aqui).
É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje. Pretende, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar, garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão, ganhará o direito de vetar qualquer deliberação ou decisão que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se organizou a partir da década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de união nacional.
Foi uma resposta tipicamente conservadora ao brutal descompasso entre uma democracia sem instituições e a altíssima participação popular nos anos 80, especialmente visível no período da Constituinte. Em lugar de democratizar aceleradamente as suas instituições, a política brasileira, liderada pelo PMDB, construiu um sistema de filtros, obstáculos e vetos que procurava represar e atender seletivamente à verdadeira enxurrada participativa que se viu naqueles tempos, inédita na história do país.
O essencial da cultura política inaugurada pelo PMDB na década de 80 é o fato de que, desde o declínio da ditadura militar, sua identidade deixa de se construir por oposição a um inimigo, real ou imaginário, e passa a ser construída com base em um discurso inteiramente anódino e abstrato, sem inimigos, cujo sentido mais importante é garantir o sistema de ingresso universal e de vetos seletivos.
Reafirma-se, então, a visão realista de que a democracia não passa do exercício da capacidade de bloquear o oponente, não de enfrentá-lo abertamente no espaço público. Pressupõe que maiorias não se formam positivamente em favor de políticas determinadas, mas sim porque se mostram capazes de desviar, contornar ou neutralizar vetos. No mais, é uma cultura política que aceita mecanismos de participação e deliberação democráticos. Desde que não ameacem seriamente o sistema de vetos.
Mas essa lógica, digamos, inclusiva do pemedebismo tem seus limites. A política simplesmente deixa de funcionar quando a polarização desaparece. Quando todos estão, por assim dizer, incluídos, quando estão aPTos e organizados para vetar, em algum momento vem a paralisia, uma tendência inscrita no próprio pemedebismo.
Na década de 80, a paralisia política coincidiu com a desorganização econômica. Produziu uma Constituição que contém muitas e diferentes constituições dentro de si – o que, por razões que não vêm ao caso aqui, acabou por ser positivo para a sua consolidação. E culminou com uma inflação inteiramente fora de controle e com a humilhante derrota de Ulysses Guimarães na eleição presidencial de 1989.
A desorganização econômica tinha nome e sobrenome conhecidos. Chamava-se inflação, “inflação inercial”. Teve papel central na manutenção do pacto de desigualdade brasileiro dos anos de nacional-desenvolvimentismo, entre as décadas de 30 e 80. Nos limites rígidos de uma economia fechada e, na maior parte do século XX, de regimes autoritários e/ou coronelistas, a inflação auxiliou na promoção de desenvolvimento econômico rápido e intenso sem alterar fundamentalmente os padrões desiguais de distribuição de renda. Um pacto que pretendia se sustentar na melhoria geral dos padrões de vida. Não foi por acaso que um dos primeiros atos da ditadura militar de 1964 tenha sido o de institucionalizar a inflação sob a forma da “correção monetária”.
Em um determinado momento, entretanto, a inflação deixou de ser o mecanismo mais eficiente para a manutenção do pacto de desigualdade que caracteriza a história brasileira, revelando divisões e disputas potencialmente desagregadoras no interior dos próprios estratos sociais privilegiados. Esse foi não apenas o momento em que a inflação se tornou hiperinflação. A hora histórica coincidiu também com o declínio da ditadura militar, com a redemocratização e com o esgotamento do modelo chamado nacional-desenvolvimentista. Foi esse nó social que coube ao pemedebismo não desatar.
A coincidência histórica de hiperinflação e redemocratização moldou um sistema político programado para o quanto possível impedir a formação de blocos hegemônicos capazes de impor perdas definitivas a terceiras partes. E não é difícil ver que a tarefa de superar simultaneamente a hiperinflação e o modelo nacional-desenvolvimentista sem regressão autoritária não é factível em uma configuração política como essa.
Para mostrar isso, basta lembrar que, até 1994, governos estaduais tinham no Brasil relevantes instrumentos para fazer política econômica, independentemente do chamado governo central. E que os tímidos ensaios de abertura econômica da década de 80 – como a abertura para o investimento, por exemplo – foram feitos na margem e por políticas específicas de ministérios e órgãos da área econômica.
Dito de outro modo, a resposta pemedebista canônica é a do adiamento permanente de soluções definitivas. Normalmente considerada como o período do “ajuste estrutural” à nova etapa do capitalismo mundial, a década de 80 foi, na verdade, a do adiamento do ajuste mediante a manutenção da hiperinflação e do fechamento da economia. Não é de estranhar, portanto, que esse adiamento estrutural leve, mais cedo ou mais tarde, à paralisia.
O que explica também, do lado oposto, que a década tenha se encerrado com a opção antipemedebista por excelência, com a eleição de Fernando Collor. A paralisia pemedebista trouxe seu oposto para o centro da arena política: Collor, com uma única bala, queria matar a inflação e o nacional-desenvolvimentismo. No fundo, a oscilação entre os extremos da paralisia pemedebista e do cesarismo alucinado de Collor colocou as bases para o surgimento da nova versão do pacto de desigualdade brasileiro representado pelo Plano Real.
A reorganização que veio com o Plano de 1994 não alterou substancialmente a lógica pemedebista – o que, aliás, não surpreende, se lembrarmos que o próprio FHC se formou na política partidária dentro do MDB/PMDB. Mas o novo modelo de gerenciamento político do período FHC deu ao pemedebismo direção e sentido, submetendo essa cultura política a um sistema bipolar que o conteve em limites administráveis.
Em lugar dos dois extremos – pemedebismo ou Collor – FHC colocou a ponta seca do compasso em um novo centro político, estabelecendo a partir daí dois polos no sistema, um liderado pelo PSDB, o outro pelo PT. Além dos aliados históricos de cada um dos lados, a regra seria construir uma coalizão de “A a Z” sob a liderança do polo no poder.
Como já deve estar claro a esta altura, controlar a inflação significava ao mesmo tempo controlar a tendência pemedebista da política brasileira. É nesse sentido que a aliança PSDB/PFL foi, literalmente, a outra face da moeda, do Real. Controlar a inflação não dependia apenas de um aprendizado técnico-econômico com os sucessivos fracassos dos planos anti-inflacionários de 1986 a 1991: Cruzado (I e II), Bresser, Verão, Collor (1 e 2). Dependia ao mesmo tempo da construção de um bloco político capaz de superar a crise estrutural de hegemonia da redemocratização que é chamada aqui de pemedebismo. Ou seja, há um vínculo interno entre a “inflação inercial” e a “política inercial” que se cristalizou sob a forma de sistema político a partir da década de 80.
Ao se aliar ao PFL e, posteriormente, a quem mais estivesse disponível, o governo FHC estabeleceu um campo de forças em que ao PT só restariam duas possibilidades: permanecer indefinidamente na oposição ou fazer um movimento em direção ao centro político, com uma nova e mais “flexível” estratégia de alianças.
No caso de um movimento do PT em direção ao centro, a condição propriamente partidária imposta pelo modelo era uma só: o partido conseguiria vir a governar o país se, além dos parceiros históricos, viesse a se aliar ao PMDB. O que efetivamente aconteceu no governo Lula, ainda que somente depois do cataclismo do “mensalão”. “Mensalão”, aliás, que marca o ponto de chegada e o apogeu da engenharia política do Plano Real. Foi quando, pela primeira vez em 25 anos, uma crise política não afetou a economia.
Mas a história ainda não chegou a 2005. Para chegar ao primeiro mandato de Lula é preciso ainda lembrar de pelo menos mais uma das mudanças estruturais decisivas introduzidas pelo Plano Real e que marcou o ocaso do poder dos governadores de estado, tradicionais candidatos a gerentes do condomínio político pemedebista brasileiro. O primeiro movimento de neutralização veio com a própria estabilidade da moeda, que teve um efeito devastador sobre a dívida pública. Sem o permanente adiamento representado pela inflação, os governadores se viram em dificuldades orçamentárias intransponíveis e, do outro lado, encontraram no governo federal um duro negociador na reestruturação das dívidas estaduais.
O segundo movimento foi concomitante. Retirando do âmbito dos estados praticamente toda e qualquer possibilidade de praticar política fiscal e monetária – o que era comum no período inflacionário – o governo federal garantiu o monopólio da irresponsabilidade fiscal, julgada então necessária para alcançar a estabilização econômica pretendida. A mesma irresponsabilidade que negou aos estados. Não por acaso, foi o tempo mais quente da chamada “guerra fiscal”, em que os governadores lançaram mão dos parcos e únicos recursos que lhes restaram para obter investimentos em troca de isenções e benefícios tributários e fiscais.
A concentração dos principais instrumentos de política fiscal e monetária nas mãos do governo federal foi essencial para neutralizar essa que foi uma das principais fontes de alimentação do pemedebismo na década de 80. E seu episódio inaugural e mais marcante ocorreu antes mesmo da posse de FHC como presidente: a intervenção no Banco do Estado de São Paulo, o Banespa, realizada às vésperas da posse do governador do estado, até então principal líder do PSDB, Mario Covas.
Depois de perder sua segunda eleição presidencial em 1994, Lula tomou a decisão de fazer mudanças significativas no PT, reorientando radicalmente sua estratégia. Tinha chegado à conclusão de que o Plano Real havia alterado profundamente a lógica da política brasileira, a começar pelo fato de ter resolvido o principal problema nacional, a inflação. Foi nesse momento que começou a ser construída tanto uma maioria partidária disciplinada como uma nova política de alianças partidárias e eleitorais.
O movimento inaugural nessa direção foi a eleição de José Dirceu para a presidência do PT. A partir de 1995 – e não sem conflitos com o próprio Lula, diga-se – Dirceu implementou à risca o plano, isolando ou mesmo expulsando militantes e grupos políticos inteiros que se opunham à nova orientação, construindo um sólido bloco de apoio majoritário, e buscando estabelecer pontes com partidos e figuras políticas até então consideradas como inimigos. O ápice dessa estratégia se deu na eleição de 2002 e seu símbolo é a candidatura a vice-presidente na chapa de Lula do empresário José Alencar, então senador do hoje extinto PL.
Lula ganhou a eleição sem o apoio formal do PMDB. Mas não conseguiu estabilidade para governar até o momento em que cumpriu o destino que lhe tinha sido reservado pelo arranjo imposto pelo Plano Real. Não que Lula não tenha tentado fugir a essa camisa de força herdada. Ao contrário, escolheu inicialmente construir novas alianças apenas com a miríade de pequenos e médios partidos à disposição e fazer acordos individuais com parlamentares do PMDB, não com o partido como um todo, ou pelo menos com a porção dele que pudesse ser atraída para a base do governo.
Nesse momento de seu primeiro mandato, Lula operava ainda como árbitro do PT e não como presidente da República. O governo estava dividido essencialmente entre facções do partido que continuavam a se digladiar por espaço como antes. E Lula continuava a ocupar a posição de “último recurso” que sempre ocupou nas disputas internas do partido, interferindo diretamente apenas quando o seu próprio prestígio estava em causa.
Essa situação fez com que as figuras de José Dirceu e de Antonio Palocci se sobressaíssem e passassem como que a canalizar todas as disputas internas ao governo em duas facções concorrentes. Dirceu apoiado no PT, Palocci como porta-voz de outras forças partidárias dentro do governo e do mercado financeiro. Por essa época, as negociações políticas eram extremamente delicadas, já que Lula não autorizava (nem desautorizava, ao mesmo tempo) ninguém a negociar em seu nome.
Foi essa instabilidade estrutural que o levou a recusar, em 2004, o acordo com o PMDB construído durante meses por José Dirceu. Entre outras coisas, porque isso significaria também, nesse contexto, dar poder demais a Dirceu na disputa interna. O resultado foi o abismo do “mensalão”. E a consequente aliança formal com o PMDB, em 2005, momento em que Lula finalmente assumiu a Presidência da República e o papel de articulador político de seu próprio governo.
E, quando parecia que o scriPT traçado em 1994 estava sendo seguido à risca, Lula deu o troco. Em lugar de apenas se limitar a trazer o PMDB e o estritamente necessário para a sustentação política do governo, passou a ampliar sistematicamente o centro político estabelecido a partir do Plano Real e a tornar quase impossível a vida de um oposicionista. Com taxas de aprovação popular jamais vistas, Lula investiu contra a lógica da polarização que organizava todo o sistema. Manteve-a apenas nos limites do necessário para alcançar os efeitos eleitorais pretendidos. Mas, de fato, roubou o chão do polo liderado pelo PSDB.
Lula esteve em condições de ampliar de tal maneira o centro político que a polarização praticamente desapareceu. Deu à oposição a alternativa de aderir ou de se encantoar na extrema-direita. Ou seja, não lhe deu alternativa. Ou lhe deu uma alternativa ainda mais estreita do que aquela que lhe tinha sido imposta por FHC.
Esse movimento solapou de tal maneira as bases do sistema político do Plano Real que é difícil imaginar como elas poderiam ser hoje recompostas. O acordo selado em torno do centro político se tornou de tal maneira amplo que toda e qualquer polarização parece artificial. Artificialismo, entretanto, que tem sua utilidade eleitoral, sem dúvida. E que explica também por que a eleição de 2010 ficou entre o chocho e o abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas.
Em uma sociedade que – por muito boas razões, diga-se – não acredita em consensos, o primordial é tentar garantir não ser atropelado por um dos propalados “consensos” do momento. Como por toda a América Latina, as eleições da última década significaram a ascensão de pobres e remediados à condição de representados políticos.
O que talvez seja específico do caso brasileiro é a maneira como ocorre a “inclusão”. Também no caso da representação do que André Singer chamou de subproletariado, tento mostrar aqui que é o mesmo mecanismo característico da cultura política brasileira que se encontra em ação: o de igualar “estar incluído” com “ter poder de veto”.
Lula representa quem nunca teve verdadeiramente representação, não porque simbolize um conservadorismo que seria próprio aos excluídos políticos, mas porque é o fiador de que não haverá retrocesso nesse avanço democrático à brasileira. Ao contrário da ladainha conservadora, ser representado não é apenas ser objeto de políticas públicas; é igualmente acreditar que não será atropelado por mais um dos muitos “consensos” que o país produz de quando em quando.
É por tudo isso que penso que André Singer tem razão em dizer, no ensaio de piauí, que “durante um tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio histórico de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil”. Como me parece ter razão ao acrescentar em seguida: “Em que grau e velocidade, a luta de classes dirá.” Ocorre que a determinação do “grau e velocidade” depende também de análises políticas concretas, que sejam capazes de mostrar as tendências do sistema. Depende de uma análise política capaz de vincular esse movimento à própria lógica da democracia brasileira, com os potenciais e os obstáculos ao seu aprofundamento. Do contrário, a posição do lulismo como pretenso momento inaugural de uma era perde o gume analítico e seu eventual poder explicativo.
O que tento mostrar aqui é que há uma tendência à paralisia no sistema político brasileiro cuja lógica chamo de pemedebista, cujas raízes devem ser buscadas na década de 80, no início da redemocratização brasileira. Tento mostrar também que essa tendência intrínseca impõe dificuldades estruturais à produção de polarizações consistentes e duradouras. E que o momento atual é de enfraquecimento da polarização, um momento em que a paralisia pode suplantar uma vez mais o sistema bipolar instituído pela lógica política do Plano Real.
No caso da reviravolta política de Lula examinada aqui, por exemplo, o alargamento do centro político e o enfraquecimento da polarização tiveram por consequência trazer para o primeiro plano justamente o pemedebismo, até então subordinado e subterrâneo. E essa novidade é um elemento determinante do “grau e velocidade” em que poderão se dar ou não as transformações no país.
O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira. Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade.
Uma contraprova do caráter determinante dessa cultura política de fundo pemedebista está em que, desde o primeiro mandato, Lula caminhou justamente por onde não encontrou vetos: nos aumentos reais do salário mínimo, na ampliação dos programas sociais, nas reformas microeconômicas do crédito. Mas isso estava ainda longe da política desenvolvimentista do segundo mandato, que induziu a criação de oligopólios nacionais com pretensões de internacionalização.
Na nova política, os grupos escolhidos pelo governo como vencedores tinham todas as razões para comemorar, assim como os demais tinham motivo de sobra para se recolherem, evitando possíveis represálias. Além disso, o crescimento econômico expressivo e praticamente contínuo tornou os reais perdedores apenas residuais. Seja por que razão for, o fato é que a nova orientação desenvolvimentista não encontrou resistência social e política relevantes. E, coincidência ou não, esse desenvolvimentismo movido a subsídios, desonerações e subvenções só deslanchou com a entrada definitiva do PMDB no governo, depois do “mensalão”.
Tão ou mais importante que isso, a chegada do PMDB ao governo Lula trouxe ainda um elemento novo ao modelo de liderança bipolar herdado da engenharia política imposta por FHC. Lula criou onde e como pôde políticas sociais compensatórias. Só que repartiu de maneira desigual os seus dividendos políticos.
O PT ficou com a formulação, com o controle dos projetos e com o crédito de paternidade (ou maternidade, como se queira). E o PMDB recebeu a maior parte da execução das políticas – justamente a parte que contempla o poder local e abastece a política miúda. O programa Luz para Todos, não por acaso criado por Dilma Rousseff quando ministra das Minas e Energia, pode ser visto como caso exemplar dessa lógica lulista de repartição de dividendos políticos.
É justamente essa lógica de repartição de dividendos políticos que está ameaçada de agora em diante. E não apenas porque a própria repartição terá de ser negociada. O sucesso do Plano Real e a popularidade de Lula conseguiram ainda contrabalançar, conter e direcionar em alguma medida o pemedebismo. Mas são eventos passados e irrepetíveis.
Quanto mais se radicalizou a polarização entre PT e PSDB, tanto mais o pemedebismo se impôs. Não se trata de dizer sem mais que a polarização é falsa e que não há diferenças entre os dois polos. Mas, quanto mais o pemedebismo avança, mais a polarização é amplificada artificialmente, servindo à manutenção de uma lógica política profunda que não é nem petista nem tucana.
Durante dezesseis anos, o sucesso do Plano Real e os altíssimos índices de aprovação do governo Lula permitiram manter sob certo controle a tendência do sistema à pemedebização. Parece que não mais. A possível oposição se encontra hoje entrincheirada justamente em governos estaduais, o lugar político menos propício para enfrentar as coalizões de “A a Z” que caracterizam os governos desde FHC. Além disso, um Congresso ainda mais fragmentado serve de caldo de cultura política ideal para a expansão do pemedebismo.
A ironia e a tragédia da história estão em que o pemedebismo encontrou na “blindagem” da economia contra “interferências políticas” o elemento que lhe faltava para voltar a disputar a hegemonia política, para sair de sua posição de relativa subordinação de mais de quinze anos para um novo protagonismo. Note-se, aliás, que o fiel depositário do pemedebismo, o partido que lhe deu origem, procurou mesmo se mostrar fiador dessa “blindagem”, filiando quadros tão importantes e incongruentes entre si como Henrique Meirelles e Delfim Netto. O resultado regressivo desse processo é visível a olho nu: uma política que tende a se descolar da sociedade, uma política que tende a se fechar sobre si mesma. E que, no limite, pode levar à paralisia.
Tornado aliado em sentido enfático nas eleições de 2010, o PMDB vai levar a disputa entre situação e oposição para dentro do governo. É por isso também que o tamanho nominal da bancada parlamentar que apoia o governo tem menos importância do que as matérias específicas em pauta, do que o estado da disputa interna ao governo. Ou seja, a mais importante disputa política será entre o PMDB e o pemedebismo, de um lado, e o PT e seus possíveis aliados, de outro.
Não será uma briga bonita de ver. As fábricas de dossiês vão se multiplicar como nunca. Já durante a eleição de 2010, a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, foi a primeira baixa, o prenúncio do que virá. Sua queda dá uma pálida ideia de como serão os embates futuros.
A primeira das duas batalhas decisivas será uma vez mais a eleição municipal – a mesma, aliás, que esteve na origem do “mensalão”, é importante lembrar. Depois de 2012, a segunda batalha acontecerá na data limite para parlamentares trocarem de partido sem penalidades, na segunda metade de 2013. Enquanto isso, o PMDB fará de tudo para colocar sob sua órbita de influência o maior número possível de parlamentares de outros partidos.
A primeira escaramuça – que de maneira alguma será decisiva – acontecerá na eleição para a presidência da Câmara e do Senado, no início de 2011. Sendo que a figura de José Sarney é aqui emblemática: o atual presidente do Senado e candidato à recondução ao cargo foi justamente o presidente no auge do pemedebismo da década de 80. Sabe muito bem o que significa estar nas mãos de um Congresso que funciona segundo essa lógica.
Não é nem um pouco fácil imaginar o lugar que poderá ter a oposição durante o governo Dilma. Há quem confie em supostas leis da política e ache que é assim mesmo, que a oposição vai se reorganizar e acabar aparecendo. Mas não são muitos esses otimistas científicos.
No momento, resta à oposição formal hibernar. Aliás, tudo indica que também a disputa pela liderança do PSDB será duríssima. Aécio Neves decidiu ir para o tudo ou nada contra a pretensão de Serra de presidir o partido. Se perder para o grupo paulista, Aécio não permanecerá no PSDB senão o tempo suficiente para encontrar um solo alternativo para suas pretensões presidenciais.
Mas, mesmo quando conseguir se reorganizar, a oposição pode, no máximo, servir de massa de manobra na disputa entre PT e PMDB. E manter a esperança de que o pemedebismo afinal vença e venha a produzir a paralisia que lhe é própria. Isso seria capaz de dar novo fôlego à oposição, talvez em aliança com o próprio PMDB. Mas também esse não é um cenário alentador para a democracia brasileira. Porque, no fundo, o jogo político não vai se dar entre situação e oposição, mas entre a crise de um sistema organizado em polos e a pemedebização.
Uma eventual hegemonia do pemedebismo tenderia a levar a uma situação semelhante ao estado de paralisia política dos anos 80. Em termos concretos, poderia comprometer seriamente a Copa do Mundo ou as Olimpíadas, por exemplo, já que as obras de infraestrutura são as primeiras a serem afetadas por uma crise política profunda. Marcaria o retorno da concomitância entre crises políticas e abalos na economia.
Seja como for, se não é possível prever os resultados de uma regressão política dessa magnitude, é pelo menos possível dizer que, no médio e longo prazo, sua efetiva ocorrência exigirá uma reorganização de grandes proporções. Porque o sistema político não sobrevive sem polarização. E a polarização dos últimos quinze anos não tem mais densidade suficiente para organizar e estruturar o sistema.
Um sistema em estado de não polarização é o elemento do pemedebismo. E, se um cenário regressivo não se deixa ver hoje em toda a sua possível amplitude e gravidade, pelo menos suas marcas mais gerais são bem visíveis: um tempo de bonança, desigualdade e pequena política. Ou até que uma nova polarização se produza para superar uma vez mais a paralisia pemedebista.
Agradecimento
Maria Cristina Fernandes não tem nenhuma responsabilidade pelo que escrevi acima, mas sem suas sugestões e críticas o texto simplesmente não seria o que é.