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O fim do fosso?
As eleições no país vizinho trazem sinais de superação da fratura ideológica criada por doze anos de kirchnerismo
Josefina Licitra | Edição 110, Novembro 2015
Duas mulheres conversam na calçada, num bairro popular de Buenos Aires. Acabaram de voltar do mercado: uma carrega uma sacola, a outra puxa um carrinho cheio de verduras.
“Essa inflação está me matando”, diz a da sacola.
“Inflação?”, responde a outra, com cara de espanto. “Em que país você vive?”
“Na Argen.”
“Ah… então é por isso… Nós, na Tina, com 6 pesos fazemos a festa!”
A última frase é uma alusão aos índices do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), um órgão público muito criticado, que em 2013 afirmou que uma pessoa podia se alimentar com 6 pesos por dia, o que na época equivalia a pouco menos de 1 dólar.
A mulher da sacola se irrita com o comentário: “Ah, Norma, tenha dó. Tchau…” E vai embora.
Durante as eleições legislativas de 2013, assim terminava um dos quatro spots da campanha da Frente Progresista, Cívico y Social – uma coalizão de centro-esquerda da qual faz parte, entre outras personalidades políticas, Margarita Stolbizer, candidata à Presidência da Argentina nas eleições do último 25 de outubro. A peça publicitária, chamada Argen & Tina, retratava de modo pueril, mas eficaz, o problema da “polarização”: um dos fenômenos sociais mais curiosos para as gerações de argentinos que entraram na vida política depois da redemocratização de 1983. E um dos maiores estragos culturais que, na opinião de muitos, o kirchnerismo deixará quando seu mais alto quadro político, Cristina Fernández de Kirchner, tiver terminado seu segundo mandato.
“Os prejuízos são muitos e grandes, e sem dúvida um deles está ligado à intolerância com a diversidade de pensamento”, escreveu Stolbizer num e-mail que me enviou durante uma viagem de campanha pelo interior do país. Naquele momento, a candidata não sabia que obteria apenas 3% dos votos, ficando em quinto lugar. “As famílias sentiram esse fosso dentro delas mesmas, em suas relações, na convivência entre as pessoas” continuou. “Não podemos pensar num projeto de país se não reconstruirmos os laços sociais e de solidariedade, o respeito pelo outro e a convicção sobre a importância do pluralismo na vida democrática. Felizmente, apesar de todas as diferenças que me separam dos outros candidatos, em termos de convivência social teremos um futuro melhor do que este governo nos oferece.”
Hoje, depois do pleito, sabe-se que Stolbizer é um satélite no âmbito de um cenário eleitoral que ainda estará indefinido quando este artigo for publicado – uma vez que Daniel Scioli e Mauricio Macri se enfrentarão no segundo turno – mas que, em todo caso, vem obrigando os candidatos a falar abertamente sobre um tema que não costuma entrar nas agendas de campanha. Além da inflação, da segurança e dos direitos sociais, Daniel Scioli e Mauricio Macri trataram da necessidade de resgatar um clima de entendimento social capaz de aplacar a lógica “amigo–inimigo”, bastante acirrada nos últimos anos.
Principal adversário do governo, Macri, da coalizão de centro-direita Cambiemos, afirmou em entrevista para o jornal Perfil que consulta uma “harmonizadora zen” que o ajuda a alinhar seus chacras para impedi-lo de ser “tragado” pelo “fosso”. (O discurso new age funcionou: Macri foi a grande surpresa das eleições, ao receber 34% dos votos, ficando apenas dois pontos atrás de Scioli.) E o candidato da Frente para la Victoria, Scioli, ao longo da campanha já faria seus primeiros acenos para o consenso social. Não só recebeu o ruralista Eduardo Buzzi, dirigente da Federação Agrária – que em 2008 liderou os protestos do campo na queda de braço entre o governo e o setor agroexportador –, como enviou a Nova York Juan Manuel Urtubey – reeleito governador da província de Salta e cotado para ministro das Relações Exteriores de Scioli –, que durante a viagem reconheceu a necessidade de negociar com os “fundos abutre”, marcando assim uma diferença em relação à postura de Cristina Kirchner. E passou a merecer sutis elogios do jornal Clarín, pertencente ao grupo com o qual o kirchnerismo vem se confrontando há sete anos.
Graças a atitudes como essas, o clima político deixou uma única certeza: a saída de Cristina da Casa Rosada significará, para muitos, o começo do fim de uma fratura que definiu os modos de relação social no país. E que encontrou seu nome exato em 2013 – o mesmo ano dos spots de Argen & Tina –, quando o jornalista Jorge Lanata recebeu uma série de prêmios televisivos e em seu discurso de agradecimento falou em “fosso”. “Há um fosso na Argentina que separou amigos, irmãos, casais e colegas de trabalho”, disse. “Uma hora o governo vai acabar, mas o fosso vai permanecer, porque ele não é mais político: é cultural, no sentido lato, tem a ver com a nossa visão de mundo. Tomara que um dia consigamos superá-lo, porque duas meias Argentinas não fazem uma Argentina inteira.”
Para alguns, as palavras de Lanata lançaram luz sobre um estado de coisas que o próprio governo vinha expressando (em fevereiro deste ano, num discurso sobre a manifestação multitudinária contra a morte do procurador federal Alberto Nisman, a presidente foi explícita nesse sentido ao traçar uma linha divisória com a mão e dizer: “Sabem o que mais? Nós ficamos com o canto, com a alegria. E deixamos o silêncio para eles”). Para outros, Lanata apenas explicitou um fenômeno que não é kirchnerista, mas próprio das sociedades democráticas.
“A fratura não nasceu com os Kirchner e, seja como for, vai se atenuar depois das eleições. Se Scioli ganhar, ele sabe que não pode continuar levando o país pelo caminho da radicalização, e portanto vai ter que se conter”, disse Pablo Alabarces, doutor em sociologia e coautor de 678, La Creación de Otra Realidad, um livro que analisa o programa 678, transmitido pelo canal Televisión Pública desde 2009. O 678 nasceu no calor das discussões sobre a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual – que procurava desmontar os monopólios midiáticos, mas acabou sendo uma forma de controle do governo sobre a imprensa. A despeito de sua origem interessante, a evolução do programa foi polêmica: ainda que tentasse favorecer o debate sobre o papel do jornalismo supostamente “independente”, acabou por se transformar num inovador dispositivo de propaganda oficial do período democrático.
Mesmo sem falar em “fosso”, Alabarces reconheceu que a publicação de seu livro, poucos meses depois da morte de Néstor Kirchner, em 2010, lhe permitiu perceber que estava ocorrendo algo estranho em termos de polarização social. Embora o trabalho de Alabarces não fosse nem governista, nem oposicionista – de fato, a outra autora, María Julia Oliván, foi âncora do 678 nos primeiros meses do programa –, a neutralidade do livro foi sua condenação: nenhum meio de comunicação o divulgou.
“Aí eu pensei: estamos com problemas”, lembrou Alabarces. “Nunca mais pus os pés na Televisión Pública, apesar de ter relações pessoais e afetivas com os diretores da emissora. E no ambiente acadêmico me colocaram na geladeira.” No curso de comunicação social da Universidade de Buenos Aires, onde Alabarces é titular da cadeira de cultura popular e que, em 2010, passou a ter uma diretoria claramente kirchnerista, foi identificado como opositor e afastado das atividades da instituição. E na Faculdade de Jornalismo da Universidade Nacional de La Plata, onde é titular da cadeira de sociologia do esporte, a direção kirchnerista – que chegou a entregar um prêmio jornalístico ao presidente Hugo Chávez – também agiu de modo semelhante. “Por um lado, me botaram na geladeira”, diz, “por outro, soltaram os cachorros contra mim no Facebook. Cada vez que alguém fazia algum comentário mais pesado na minha página, eu buscava seu perfil e via que era de La Plata.”
As redes sociais são um dos espaços em que a radicalização se mostrou mais feroz. A página de Alabarces se transformou num ringue de vale-tudo onde as conversas sempre terminavam com o bloqueio dos usuários. Algo parecido ocorreu em muitos outros perfis, inclusive no meu. Agora mesmo, quando entro no Facebook para pedir opiniões sobre o “fosso”, sou obrigada a fazer uma exigência antes desnecessária: por favor, comentários respeitosos. O objetivo da postagem é colher depoimentos de quem se sentiu diretamente afetado pelo clima de polarização ideológica. Das 79 pessoas que se manifestaram, sete preferiram falar inbox “para não aumentar o fosso”. (Houve um comentário bem engraçado: “Uma vez entrou um morcego aqui em casa, e quando fui pedir ajuda para o zelador do prédio, que é K, ele falou: ‘Por que você não pede pro Lanata?’).” A opinião dos 72 restantes se dividiu da seguinte maneira: treze relativizaram a ideia do “fosso” como fenômeno contemporâneo (alguns evocaram uma verdade: a Argentina está alicerçada sobre uma grande fratura desde o século XIX, quando o país se cindiu entre “unitários” e “federais”), e 59 responderam que sofreram a polarização na carne. Estes relataram situações como as seguintes:
“Eu estou de um lado do fosso, e todas as minhas melhores amigas, do outro. Quando surge algum assunto ligado ao governo, opto por ficar calada. As conversas sempre acabam com quatro pessoas me questionando e/ou me acusando. Elas sabem o que penso e entendem que prefiro o silêncio para não criar constrangimentos; temos uma espécie de acordo tácito para continuar assim.” (Josefina Marcuzzi, jornalista do diário La Nación.)
“Cansei de dar a minha opinião abertamente em público, porque recebi ataques de velhos amigos e de gente que eu respeitava muito. Agora fico só nos temas em que quase todo mundo concorda: indígenas, ecologia etc.” (Pipo Lernoud, jornalista independente, poeta e compositor antológico do rock nacional.)
“Uma das primeiras coisas que eu pergunto para um cara que acabei de conhecer é se ele fuma. Se ele fuma, acaba por aí. Se não fuma, pergunto se ele é K. Se é K, acaba por aí. Exagero? Pode ser… Mas muito saudável!” (Sonia Rojas, contabilista.)
“Perdi uma amiga de muitos anos porque ela era K e não gostou quando critiquei Cristina na minha página. Tenho amigos com quem já nem toco no assunto, porque sei que vão cair matando. Nunca vi tanta intolerância em gente que eu pensava mais equilibrada. Esse é um fosso historicamente inédito, nunca na vida tinha visto uma coisa assim.” (Ana von Rebeur, escritora.)
“Briguei com alguns conhecidos, mas não com amigos. Onde eu senti o ‘fosso’ de forma mais brutal foi nas redes sociais. É realmente insuportável. Sendo jornalista, a exposição e a probabilidade de ser insultado por desconhecidos são maiores. O mais engraçado é que me xingam dos dois lados. Às vezes, por causa do mesmo artigo, os K me xingam dizendo que sou ‘pau-mandado do Magnetto’ [o CEO do Grupo Clarín] e os anti-K dizem que estou ‘sendo pago por aquela vaca’. Está todo mundo louco. Essa visão delirante e paranoica do jornalismo é uma das piores coisas que Cristina está deixando, assim como deixa outras coisas muito louváveis. O balanço só vai ser possível mais para a frente, de cabeça fria.” (Bruno Bimbi, jornalista radicado no Rio de Janeiro.)
A relação difícil entre governo e meios de comunicação está na base do tal “fosso”. A rigor, não se trata de algo que tenha começado com a chegada do kirchnerismo ao poder. Entre 2003 e 2007, durante o mandato de Néstor Kirchner, a relação do governo com o Grupo Clarín era muito boa. Tanto que, depois de ter apoiado a candidatura de Néstor – contra Carlos Menem –, o Grupo contou com seu respaldo, já na Presidência, para renovar suas concessões de rádio, crescer e tomar conta do mercado de tevê a cabo.
Até que, em 2008, a crise do governo com os fazendeiros – que se revoltaram contra um drástico aumento dos impostos sobre as exportações – deu ao Grupo Clarín a chance de negociar em outros termos. Nessa época, o grupo estava interessado no setor de telefonia conjugado à internet (para oferecer o pacote de serviços de acesso à internet, tevê a cabo e telefone, o chamado triple play) e, como aponta o jornalista Maximiliano Montenegro em seu livro Es La eKonomía, Estúpido, viu na luta fazendeiros versus governo uma chance para aumentar a pressão. Se o governo lhe desse o triple play, continuaria a contar com o apoio midiático. Se não, passaria a ter o grupo contra ele. Diante disso, o governo não apenas se negou a entregar ao grupo essa parte do negócio, como vislumbrou no Clarín um inimigo oportuno para trabalhar em duas vertentes necessárias ao kirchnerismo: a narrativa épica do movimento, que exige a existência de antagonistas, e – de par com as discussões em torno da Lei de Mídia, promulgada em 2009 – a corrosão da credibilidade dos jornalistas, útil para desviar o foco das denúncias contra o governo. Qualquer voz que o questionasse era imediatamente desqualificada.
Essa briga, que de início só afetava o microclima jornalístico, logo se infiltrou numa sociedade que hoje constrói sua cidadania com critérios de espectador. Tanto 678 como Periodismo para Todos, o programa de Jorge Lanata transmitido por El Trece – a emissora do Grupo –, cresceram apoiados por públicos antagônicos. Em 678 apareciam fotos de telespectadores em poses que exageravam o “amor” (ecoando as palavras de Cristina Kirchner, quando disse que “o amor vence o ódio” da oposição), e o PPT exibia fotos de seguidores sorrindo com o dedo médio em riste, em sinal de fuck you.
Entre uns e outros, todo o resto. Por ter dito que Cristina não tinha como justificar seu patrimônio, o ator Ricardo Darín foi publicamente linchado nos programas kirchneristas. Por ter dito que havia fome em Formosa – uma província pobre e feudal do norte da Argentina –, o jogador de futebol Carlos Tévez foi tachado de “faveladinho europeizado” por um funcionário da administração local e achincalhado em programas afins com o governo. Vários atores passaram a recusar convites para participar de programas de figuras antikirchneristas como Mirtha Legrand, que despertou uma fúria compreensível ao chamar Cristina Kirchner de “ditadora”. E o compositor Ignacio Copani, que, dependendo das circunstâncias, faz música de futebol ou de política, ratificou sua habitual genuflexão ao governo ao entregar para o secretário de Direitos Humanos da província de Buenos Aires, Guido “Kibo” Carlotto – filho de Estela de Carlotto, dirigente das Avós da Praça de Maio –, uma pasta com mais de dez páginas reunindo os insultos que recebeu em mensagens diretas, chats ou citações no Twitter e no Facebook.
“O fosso é alimentado com dinheiro do Estado. Eu briguei com colegas que aceitaram receber altas somas do governo, ou de órgãos próximos a ele, ou de alguns dos muitos satélites que o Estado pôs em funcionamento no aparelho cultural e midiático”, disse Osvaldo Bazán, que vivenciou essa situação em seu programa Agenda Nacional, que apresentava no canal a cabo Todo Noticias, ligado ao Grupo Clarín. O programa semanal, com uma hora de duração, divulgava a agenda de apresentações de músicos e atores no interior do país. Nunca se falava de política, mas o simples fato de aparecer no TN bastava para entrar na lista negra do governo.
Em 2012, durante uma viagem a Mendoza para cobrir a Festa da Vindima, Bazán precisou se esconder de militantes de La Cámpora (a juventude kirchnerista) postados à entrada de seu hotel, esperando a chegada de Cristina – que por coincidência se hospedaria ali para participar de uma cúpula política. Durante esses dias, Bazán preferiu entrar no hotel por uma porta de serviço. Em Buenos Aires, a situação não foi muito melhor. Cansado de ser chamado de “filho de Magnetto” ou “filho da puta”, Bazán aproveitou o fim de seu programa – cancelado por problemas de audiência – para encerrar, ao menos temporariamente, sua carreira jornalística. Agora escreve comédias musicais. A primeira delas, Y un Día Nico se Fue, o primeiro musical gay da América Latina, teve um inesperado sucesso de bilheteria e passou a contar com a produção do jornalista e empresário Luis Majul.
Há um ano – pura coincidência –, Majul inaugurou um espaço chamado Museu do Jornalismo. Trata-se de um local aberto ao público que abriga, entre outras coisas, a mostra permanente De Walsh a Lanata, 40 Anos de Jornalismo na Argentina, com biografias breves e interativas dos quarenta profissionais mais influentes das últimas quatro décadas, tanto governistas como oposicionistas. Na inauguração do espaço, localizado na avenida Warnes, uma região inóspita da cidade, cheia de lojas de autopeças, Majul conseguiu uma coisa impensável: compareceram de Mirtha Legrand – que provavelmente pisou na Warnes, pela primeira vez na vida, quase aos 90 anos – a todo o arco político que concorre às eleições. Estiveram lá Daniel Scioli, Mauricio Macri e Sergio Massa – que ficou em terceiro lugar –, fazendo da reunião o “primeiro evento do pós-kirchnerismo”, conforme disseram alguns jornais.
“O museu tenta passar por cima do fosso”, explicou Majul. “O fosso não foi nem é espontâneo. Não tem a ver com uma nova onda de pensamento rebelde inspirada nos anos 70, nem com o peronismo de 1945, e sim com um plano estratégico do Estado para dividir a sociedade e pôr à sombra de Magnetto, considerado o senhor de todos os males, todos aqueles que o governo acha que pensam diferente dele. É verdade que há manipulações da imprensa e jornalistas corruptos, assim como há todo um jogo de interesses dos meios de comunicação, mas a maioria de nós não é assim. Eu tentei resgatar o jornalismo.”
Majul – autor da única biografia autorizada de Jorge Lanata – é um homem magro, elétrico, amável, que usa sua suposta ingenuidade como instrumento de poder. Muitos o criticam por não fazer perguntas suficientemente incisivas ou por “ajeitar a bola” para os entrevistados, uma metáfora futebolística que se refere ao passe que deixa o outro de cara para o gol. O fato é que, jogando nessa posição que evita o confronto, Majul conseguiu um feito raro: ninguém se recusa a ir a seu programa, La Cornisa, transmitido pelo canal aberto América TV. No momento de nossa entrevista, ele negociava pelo WhatsApp uma visita ao apartamento do candidato Daniel Scioli. “Eu não sei se com o Scioli o fosso vai diminuir, acho que ele vai hesitar entre tirar ou não proveito do status quo herdado”, disse, concentrado na tela do seu smartphone.
Entrevistei Majul a dez dias das eleições, com dois cenários políticos possíveis: ou Daniel Scioli obteria mais de 45% dos votos, ou 40% e uma diferença superior a dez pontos sobre o segundo colocado, sendo eleito presidente no primeiro turno; ou Scioli passaria para o segundo turno com Mauricio Macri, que poderia reunir todos os votos anti-K – que somam 60% do eleitorado – e vencer as eleições.
O que ninguém podia imaginar naquele momento era o que finalmente aconteceu: um empate técnico que levará os dois candidatos a brigar voto a voto pelos favores do eleitorado até 22 de novembro, data do segundo turno.
“O mais curioso é que os dois candidatos empunham as bandeiras desse enigma chamado ‘peronismo’, que um dia foi aparentemente progressista, mas deixou como herdeiro Scioli, braço direito de Menem, supostamente o demônio que o kirchnerismo veio combater”, disse a professora Adriana Amado, presidente do Centro para a Informação Cidadã e especialista em informação pública e mídia. “Como aceitamos que se apresentem como opostos entre si dois candidatos que, se os partidos funcionassem, deveriam ter resolvido suas diferenças numa prévia? Esta é a eleição mais mentirosa da história argentina.”
A mentira a que Amado se referia dizia respeito ao histórico dos dois principais candidatos. Scioli entrou na política pela mão de Carlos Menem. Sergio Massa – que ficou em terceiro na eleição, com 21% dos votos, e hoje apoia Mauricio Macri no segundo turno – saiu da matriz de Cristina Kirchner, de quem foi chefe de gabinete (equivalente, no Brasil, a ministro da Casa Civil). E Mauricio Macri, que aparece sempre acompanhado dos principais líderes sindicais – tempos atrás, kirchneristas –, saiu-se há poucos dias com um gesto insólito: inaugurou uma estátua de Juan Domingo Perón e disse que “as bandeiras do peronismo estão certas, mas aqueles que governam em seu nome fizeram muito pouco para cumpri-las”. Os dois candidatos, em suma, provaram que o peronismo tem um modelo customizado para cada necessidade: há o movimento de ultradireita, o neoliberal, o populista demagógico, o neopopulista conservador, o progressista latino-americano, e assim por diante, até chegar – como as Barbies – ao peronista enfermeiro ou peronista astronauta.
“O fosso é uma invenção”, disse Amado. “A polarização não passa de uma lorota para que os jornalistas de opinião posem de perseguidos pela turba e os progressistas bem-pensantes, de paladinos contra os monstros hegemônicos.”
O que estaríamos vendo, segundo Amado, não seria o fim da polarização, e sim o fim da festa kirchnerista. No mais, o único “modelo” deixado pela chamada “década ganha” seria, na sua opinião, o de Karina Rabolini e Juliana Awada, as esposas-modelos dos candidatos. Que são, de fato, indiscutivelmente lindas.