
A mão que invade o quadro de William Dyce, de 1837, é misteriosa, mas a mão golpista sobre a democracia brasileira é inconfundível: “Tem que ser a rataria. Bolsonaro e a rataria” CREDITO: FINE ART IMAGES_HERITAGE IMAGES VIA GETTY IMAGES
O golpista
As 533 digitais de Bolsonaro na articulação para “virar a mesa”
Breno Pires | Edição 219, Dezembro 2024
Os braços para trás e as mãos entrelaçadas ajudavam-no a manter a postura ereta. Estava vencido, mas não rendido. No Palácio da Alvorada, à frente do espelho d’água que o separava das centenas de apoiadores, ele rompeu o silêncio de quarenta dias, desde a sua derrota nas urnas para o presidente Lula. Era 9 de dezembro de 2022, sexta-feira, 16h30. Jair Bolsonaro discursou por 16 minutos, mesclando lamento e esperança, em uma ambiguidade calculada. Disse frases como “vamos vencer”, “ponto final somente com a morte”, “tudo dará certo no momento oportuno” e “cada minuto é um minuto a menos”.
Desde o dia 19 de novembro passado, o discurso de Bolsonaro de dois anos atrás ganhou enorme clareza. Enquanto oferecia iscas de esperança aos apoiadores – “não é fácil você enfrentar todo um sistema”, mas “nada está perdido” –, alguns de seus principais auxiliares, quase todos militares, tramavam um golpe de Estado que incluía um plano terrorista: matar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Os métodos dos assassinatos: uso de artefato explosivo ou envenenamento em evento oficial e público, ou administração de substância química para causar colapso orgânico em ambiente hospitalar.
É a primeira vez, desde que o Brasil voltou ao regime democrático, que se descobre um plano golpista gestado na alta cúpula do poder em Brasília. Os envolvidos na articulação não são lobos solitários, nem malucos, nem aloprados do baixo clero, mas gente que transitava pelos ministérios, frequentava o Palácio da Alvorada e trabalhava no Palácio do Planalto. E tudo isso acontecia com a participação ativa de Bolsonaro: ele fez reuniões com golpistas, recebeu relatos sobre a evolução dos preparativos para o golpe, excluiu algumas autoridades da lista dos que seriam presos, discutiu as datas mais apropriadas e – na manhã do dia 9 de dezembro de 2022 – mudou trechos do decreto que ficou conhecido como “minuta do golpe”.
No relatório final de 884 páginas, a Polícia Federal descreve as investigações e chega a uma conclusão categórica: Bolsonaro “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um golpe de Estado e a abolição do estado democrático de direito”. O relatório, no qual o nome de Bolsonaro aparece 533 vezes, ainda informa que o golpe só não foi perpetrado “por circunstâncias alheias à vontade do então presidente da República”.
A principal “circunstância” é a posição do comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes, que não avalizou o golpe – aparentemente, mais por receio de que desse errado do que por convicção democrática. Chegou a alertar Bolsonaro de que poderia mandar prendê-lo se tentasse um golpe, mas, ao mesmo tempo, tomou parte de reuniões sobre a trama, permitiu que seus subordinados articulassem contra a legalidade, manteve a massa golpista acampada nos quartéis para servir como ponto de apoio popular ao golpe e nem sequer puniu os oficiais que assinaram uma carta pública em favor do golpe.
As investigações mostram a participação especialíssima dos “kids pretos”, como são chamados os integrantes das Forças Especiais, tropa de elite do Exército. Os kids pretos formam o grupo do Exército em que Bolsonaro mais confia. Nos seus tempos de Academia Militar das Agulhas Negras, ele tentou ser um kid preto. Fez o curso de paraquedismo, primeira etapa da formação, mas foi reprovado – duas vezes – na prova de ingresso. Uma reportagem de Allan de Abreu publicada pela piauí em junho do ano passado mostrou que Bolsonaro convocou 26 kids pretos para postos de alto nível durante seus quatro anos de governo. Pelo menos dez tiveram atuação direta na trama do golpe.
A seguir, a crônica dos acontecimentos, segundo os dados públicos e as revelações trazidas pela investigação da Polícia Federal:
5 DE JULHO DE 2022, TERÇA-FEIRA_Em reunião no Palácio do Planalto, gravada e depois tornada pública por decisão judicial, o golpe – eufemisticamente tratado como “virar a mesa” – está em debate. Sentado à ponta da mesa, o presidente Jair Bolsonaro comanda a conversa com 33 auxiliares. O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, relata que conversou com um dirigente da Agência Brasileira de Inteligência para infiltrar agentes nas campanhas eleitorais, e avisa que a ação é sigilosa. “Eu peço pra não vazar.” Bolsonaro interrompe: “Eu peço ao senhor que não prossiga na tua observação. Se a gente começar a falar ‘não vazar’, esquece. Pode vazar. Então a gente conversa em particular na nossa sala sobre esse assunto”.
A certa altura, o presidente, que há muito tempo agitava o fantasma da fraude eleitoral nas urnas eletrônicas, prevê que o STF daria a vitória a Lula – “não tenho prova de muita coisa, mas não tenho dúvida” – e pela primeira vez menciona a palavra golpe, apresentada como uma alternativa indesejada, mas inevitável. “Alguém tem dúvida que vai acontecer no dia 2 de outubro? Qual o retrato que vai tá às 10 da noite na televisão? Alguém tem dúvida disso? Daí a gente vai entrar com um recurso no Supremo Tribunal Federal? Vai pra puta que o pariu, porra! Ninguém quer virar a mesa, ninguém quer dar o golpe, ninguém quer botar tropa na rua, fechar isso, fechar aquilo. Nós tamo vendo o que tá acontecendo. Vamo esperar o quê? Todo mundo vai se foder.”
Depois da fala do presidente, o general Heleno diz que era preciso agir antes das eleições. “Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições.” O general Heleno, cujo histórico golpista se construiu durante a ditadura militar (1964-85), completa: “Eu acho que as coisas têm que ser feitas antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso pra mim é muito claro.”
O general da reserva Mario Fernandes, que participa da reunião na condição de ministro substituto da Secretaria-Geral da Presidência e também é um kid preto, está ansioso por uma ação. Sentado à mesa do lado direito de Bolsonaro, ele pede a palavra. Diz que não se pode mais esperar e questiona se o golpe será nos moldes do ocorrido em 1964. Voltando-se para Bolsonaro, pergunta: “Como o senhor bem disse, antes que aconteça [a eleição presidencial]. Porque no momento que acontecer, é 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar?” E continua: “Então, tem que ser antes. Tem que acontecer antes. Como nós queremos. Dentro de um estado de normalidade. Mas é muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país pensando assim, pra que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior da conturbação no day after, né?”
(Em um dos relatórios produzidos pela Polícia Federal, os agentes analisaram em detalhes o vídeo da reunião, cuja duração é de 1 hora e 33 minutos, e afirmaram: “A descrição da reunião de 5 de julho de 2022, nitidamente, revela o arranjo de dinâmica golpista, no âmbito da alta cúpula do governo.”)
18 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_Bolsonaro convoca dezenas de embaixadores para uma reunião no Palácio da Alvorada. Na ocasião, faz um discurso de 46 minutos em que ataca Lula, então líder nas pesquisas eleitorais, critica ministros do STF, exibe uma apresentação em que repete suspeitas infundadas de fraude na eleição de 2018 e coloca em dúvida a segurança das urnas eletrônicas. A intenção é clara: obter apoio internacional para uma virada de mesa na eleição que ocorreria dali a três meses.
(Um ano depois, em 30 de junho de 2023, o Tribunal Superior Eleitoral condenou Bolsonaro por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao se reunir com os embaixadores. A pena é inelegibilidade até 2030.)
2 DE OUTUBRO, DOMINGO_Lula e Bolsonaro recebem as maiores votações e se qualificam para o segundo turno. Bolsonaro ficou à frente no Sudeste, no Centro-Oeste e no Sul. Lula levou a dianteira no Norte e no Nordeste, onde obteve uma votação enorme: quase 67% dos votos.
4 DE OUTUBRO, TERÇA-FEIRA_Informado sobre as maquinações para “virar a mesa”, o tenente-coronel Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros conversa com Mauro Cid, o ajudante de ordens de Bolsonaro e, também ele, um kid preto. Cavaliere está preocupado com os riscos de uma operação golpista. A certa altura, diz: “Espero, sinceramente, que vocês saibam o que estão fazendo.” Cid responde, premonitório: “Eu tb… Senão estou preso.” Em seguida, Cid admite que a eleição transcorreu com lisura. “Nenhum indício de fraude.”
30 DE OUTUBRO, DOMINGO_Lula vence Bolsonaro no segundo turno, com uma margem estreita de pouco mais de 2 milhões de votos. Durante a votação, a Polícia Rodoviária Federal distribuiu agentes nas rodovias de modo a dificultar o acesso às urnas dos eleitores no Nordeste, onde Lula teve votação altíssima no primeiro turno. O presidente, derrotado, fica em silêncio.
31 DE OUTUBRO_SEGUNDA-FEIRA_Os bolsonaristas começam a bloquear estradas em dezoito estados e passam a se aglomerar em acampamentos em frente aos quartéis país afora. Eles pedem uma “intervenção militar”.
1º DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA_À tarde, Bolsonaro se manifesta sobre a eleição, não reconhece a derrota e menciona os protestos: “Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral.” Em seguida, refugia-se no Palácio da Alvorada, onde tratará da trama golpista.
2 DE NOVEMBRO, QUARTA-FEIRA_Tarde da noite, às 23h28, Mauro Cid recebe um documento denominado “Relatório de apuração de fraudes nas urnas nas eleições 2022”. “Vale analisar”, diz o remetente, o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, da 6ª Divisão de Exército. Na manhã do dia seguinte, Cid dirá que conversou com a pessoa que elaborou o tal documento e fará uma confissão: “Tá difícil ter alguma prova. Porque, assim, na verdade tudo tem uma justificativa.”
4 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA_O coronel da reserva Roberto Raimundo Criscuoli está inconformado com a derrota de Bolsonaro. Ainda pela manhã, numa troca de mensagem com o general Fernandes, da Secretaria-Geral da Presidência, Criscuoli insiste que é preciso agir com urgência. “Se nós não tomarmos a rédea agora, depois eu acho que vai ser pior.” Para o coronel, era preciso impedir a posse de Lula a qualquer custo. “Ele vai destruir nosso país, cara. […] Vai esperar virar uma Venezuela pra virar o jogo, cara? Democrata é o cacete. Não tem que ser mais democrata agora. ‘Ah, não vou sair das quatro linhas.’ Acabou o jogo, pô. Não tem mais quatro linhas”, diz ele, referindo-se à expressão que Bolsonaro costumava usar para simular respeito à Constituição.
No início da noite, o general Mario Fernandes, que vai assumindo a posição de ativíssimo articulador do golpe, troca mensagens com seu chefe de gabinete, o coronel reformado Reginaldo Vieira de Abreu, conhecido como Velame. Discutem a necessidade de encaminhar as coisas com mais sigilo. Às 19h34, manda a seguinte mensagem ao general: “Kid Preto, o presidente tem que fazer uma reunião petit comité. O pessoal ia fazer uma reunião essa semana, o comandante do Exército, aí chegou Paulo Guedes, chegou o pessoal do TCU, da AGU. Aí, não pode. […] Tem que ser petit comité, pô. Tem que ser a rataria, ele [Bolsonaro] e a rataria. Com o comandante do Exército, mas petit comité. Essa galera não pode estar aí, porra.”
5 DE NOVEMBRO, SÁBADO_No final da tarde, Velame volta a fazer contato com o general Fernandes, conclamando mais uma vez pelo golpe e reafirmando que já era hora de parar com a lorota de que defendem “atuar dentro das quatro linhas da Constituição”. Na mensagem, Velame evoca a Primavera Árabe, movimento popular em defesa da democracia que se espalhou por países do Norte da África e do Oriente Médio, que eram comandados por regimes autoritários. “Tem que ter a primavera brasileira”, diz. “O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o caralho. Quatro linhas da Constituição é o caceta.”
7 DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_O general Eduardo Pazuello, outro kid preto, conhecido pela gestão desastrosa à frente do Ministério da Saúde, passa o dia no Palácio da Alvorada, entre 7h30 e 18h20. Em conversas com Bolsonaro, ele dá sugestões sobre como o então presidente poderia acionar o artigo 142 da Constituição, que, segundo a teoria dos golpistas, autoriza as Forças Armadas a intervir nos poderes da República por ordem do presidente. Em uma mensagem de áudio enviada a um interlocutor, Mauro Cid comenta que, diante das ponderações de Pazuello, Bolsonaro “desconversou e não quis nem saber”.
8 DE NOVEMBRO_SEGUNDA-FEIRA_Mauro Cid começa os preparativos para uma reunião que será realizada na casa do general Walter Braga Netto, que foi candidato a vice na chapa de Bolsonaro, e manda uma mensagem ao major Rafael Martins de Oliveira. “Rascunha alguma coisa”, diz, ao que o major responde: “Fica tranquilo!! Tá sendo feito!!” O rascunho tornou-se o plano do golpe, batizado de “Punhal Verde Amarelo”.
9 DE NOVEMBRO, QUARTA-FEIRA_O general Mario Fernandes, que também visitava o acampamento bolsonarista em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, está na Secretaria-Geral da Presidência, no quarto andar do Palácio do Planalto. Às 17h09, ele vai até uma impressora e faz uma cópia de um documento de três páginas. Era o plano “Punhal Verde Amarelo”. O papel contém as diretrizes para o levante. Prevê matar o presidente Lula, citado com o codinome “Jeca”, e o vice Geraldo Alckmin, referido como “Joca”, e um tal de “Juca”, que não está identificado, além do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que aparece com seu nome mesmo. A operação previa um arsenal de quatro fuzis, quatro pistolas, uma metralhadora e quatro granadas, além de lança-
granadas, lança-rojão, coletes à prova de bala e munição não rastreável.
Às 17h48, pouco mais de meia hora depois de imprimir o plano dos assassinatos, o general Fernandes deu entrada no Palácio da Alvorada, onde estava Bolsonaro. Passou 1 hora e oito minutos por lá, numa evidência de que o presidente conheceu os detalhes da ação terrorista que mencionava os três assassinatos.
No mesmo dia, o Ministério da Defesa, sob o comando do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, envia ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um relatório sobre a fiscalização das urnas eletrônicas. O conteúdo é constrangedor para os golpistas. Os militares não encontraram qualquer problema, mas, para manter viva a narrativa de fraude eleitoral e não encerrar a discussão certificando a lisura do processo, declaram que “não é possível afirmar que o sistema eletrônico de votação está isento da influência de um eventual código malicioso que possa alterar o seu funcionamento”.
10 DE NOVEMBRO, QUINTA-FEIRA_O general Mario Fernandes está inquieto. Quer um golpe o quanto antes. E envia uma mensagem ao coronel da reserva Marcelo Costa Câmara, um dos mais próximos assessores de Bolsonaro e também um kid preto, que cuidava da “inteligência não oficial” do presidente. A mensagem diz: “Cara, eu tô aloprando por aqui. Eu queria que tu reforçasse também, pô.”
11 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA_A cúpula das Forças Armadas divulga uma nota em que defende a permanência dos acampamentos diante de instalações militares. Condenam “eventuais excessos cometidos em manifestações”, mas o recado mais importante para animar os manifestantes está na crítica a “eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos”. A nota é assinada pelo general Freire Gomes (Exército), o almirante de esquadra Almir Garnier Santos (Marinha) e o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica).
Em áudio enviado ao general Freire Gomes, Mauro Cid celebra a nota. Diz que “os movimentos populares que já estão entrando em contato” receberam bastante bem o conteúdo. “O pessoal elogiou muito, eles estão se sentindo seguros para dar um passo à frente. Então, os organizadores dos movimentos vão canalizar todos os movimentos previstos [inaudível] o dia 15 como ápice, a partir de agora, lá pro Congresso, STF, Praça dos Três Poderes basicamente.”
12 DE NOVEMBRO, SÁBADO_Chega o dia da reunião dos golpistas na casa do general Braga Netto. Estão presentes Mauro Cid, o general Estevam Cals Theophilo, comandante de Operações Terrestres do Exército (Coter), e outros dois militares, o major Rafael de Oliveira e o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, ambos kids pretos. Na reunião, discute-se a operação “Punhal Verde Amarelo”, cuja execução ganha o nome de “Copa 2022”.
14 DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_O major Rafael de Oliveira, querendo saber dos desdobramentos da reunião na casa de Braga Netto, manda uma mensagem para Mauro Cid. “Alguma novidade??”, pergunta. “Eu que pergunto”, diz o ajudante de ordens. Rafael de Oliveira, que atende pelo apelido de Joe, retruca que há muito entusiasmo, mas falta dinheiro para a operação. Escreve: “Vibração máxima! Recurso zero!!” Cid então pergunta: “Qual a estimativa de gastos? Falei pra deixar comigo.” Como não recebe resposta, Cid insiste e chuta um valor: “Só uma estimativa com hotel, alimentação, material. 100 mil?”
Enquanto isso, Bolsonaro convida o brigadeiro Baptista Junior para uma conversa no Palácio da Alvorada. Quer convencer o militar de que houve fraude na eleição. Bolsonaro recebe-o com um relatório sobre o assunto. Baptista Junior lê o documento, diz que está “mal redigido, contém erros técnicos e se trata de sofisma”. Bolsonaro insiste, coloca um dos autores do relatório para falar ao telefone com o brigadeiro. Na ligação, Baptista Junior aponta suas reservas. O autor fica em silêncio.
15 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA_Depois da reunião no apartamento de Braga Netto, o major Rafael de Oliveira envia para Mauro Cid o documento “Copa 2022”, protegido por senha, contendo detalhes e o orçamento das ações para o golpe. “Tô com as necessidades iniciais”, explica, ao enviar o arquivo, e orienta Cid a apagá-lo em seguida. Cid se certifica que a quantia de 100 mil reais é suficiente e parte em busca de financiar as operações.
18 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA_De manhã, o general Braga Netto conversa com apoiadores que se reúnem em frente ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro continua refugiado. Manda uma mensagem de esperança. “Vocês não percam a fé, tá bom?” Em seguida, diz, em tom enigmático: “É só o que eu posso falar pra vocês agora. Tá bom?”
19 DE NOVEMBRO, SÁBADO_Bolsonaro deixa o Palácio da Alvorada e se dirige ao Palácio do Planalto, onde se reúne com o auxiliar Filipe Martins, um dos líderes do “gabinete do ódio” e assessor para Assuntos Internacionais, e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, sacerdote católico da Diocese de Osasco. O grupo discute os termos da minuta do golpe. Na sua primeira versão, a minuta previa uma intervenção na Justiça, convocação de nova eleição presidencial e a prisão de diversas autoridades. Entre elas, os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Bolsonaro pede mudanças para Filipe Martins. Diz que deveria ser mantida apenas a prisão do ministro Alexandre de Moraes, excluindo os dois outros.
No mesmo dia, o tenente-coronel Alex de Araújo Rodrigues, subcomandante do 3º Grupo de Artilharia Antiaérea, manda um áudio para Mauro Cid. “O MPF está colocando a gente contra a parede”, reclama ele, referindo-se às notificações do Ministério Público Federal que recomendam desmobilizar as manifestações em frente a uma área militar em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Confiando na retaguarda da cúpula das Forças Armadas, que divulgou apoio às manifestações oito dias antes, Cid minimiza as notificações: “Não precisa fazer nada, não.” O tenente-coronel manda cópia da papelada, ainda inseguro sobre o que fazer. Cid é enfático: “Cara, vou ser bem sincero contigo. Tá recomendado… manda se foder! Recomenda… está recomendado. Obrigado pela recomendação […] Eles não podem prender. Eles não podem fazer porra nenhuma. Só vão encher o saco. Mas não vão fazer nada, não.”
22 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA_A articulação do golpe, até aqui concentrada nas maquinações militares, ganha um braço partidário. O PL faz uma representação ao TSE questionando o resultado de 250 mil urnas. O documento vira chacota, pois aponta suspeita de fraude apenas no segundo turno, quando Lula ganhou, e não no primeiro turno, quando o PL teve desempenho extraordinário nas urnas.
A elaboração do documento deu-se sob um clima de tensão. Os dois empresários que contribuíram para sua elaboração – Cesar Rocha, do Instituto Voto Legal, e Eder Balbino, da Gaio, empresa de tecnologia – sabiam que não havia fraude nas urnas e que o relatório final do PL era fajuto. Balbino estava tão preocupado com as inconsistências do relatório que, dois dias antes, começara a cogitar até deixar o país. “Preciso ver o relatório antes dele sair… Estou inseguro ainda se devo permanecer no Brasil esses dias ou sair. Minha esposa está sentindo bastante, assim como minhas quatro crianças”, disse, em mensagem endereçada a Rocha, do IVL. Diante da inquietude de Balbino, Rocha chegou a orientá-lo a dizer publicamente, caso fosse procurado, que “qualquer opinião técnica sobre é de responsabilidade do IVL.”
(Quando depôs à Polícia Federal, Balbino afirmou que não viu “absolutamente nada que vislumbrasse qualquer fraude nas eleições”.)
24 DE NOVEMBRO, QUINTA-FEIRA_Um acidente de trânsito acontece na BR-060, em Anápolis, cidade goiana que fica nos arredores de Brasília. Aparentemente, era um acidente banal, sem maior relevância, entre o major Rafael de Oliveira e um contador, de nome Lafaiete Teixeira.
26 DE NOVEMBRO, SÁBADO_Mauro Cid está a par de uma reunião que os kids pretos estão marcando e orienta dois outros colegas, Sergio Cavaliere de Medeiros e Ronald de Araújo Junior, a entrarem em contato com o organizador do encontro, coronel Anderson Lima de Moura, cuja base é em Caçapava, em São Paulo. Nas conversas com Cid, Cavaliere quer saber se Bolsonaro está informado sobre a reunião. Pergunta: “Zero Um sabe disso?” Cid responde: “Sabe.”
28 DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_O coronel Bernardo Romão Corrêa Netto, o kid preto que trabalha como assistente do Comando Militar do Sul, envia uma mensagem para Mauro Cid com um endereço: salão de festas, Superquadra Norte 305, bloco I, 19 horas. “Hoje”, diz. Em seguida, Cid pergunta se haverá a presença de outros assistentes de generais, como o próprio Corrêa Netto. Em resposta, o coronel menciona que Cleverson Ney Magalhães, o assistente do general Estevam Theophilo, do Coter, estará presente. É uma boa notícia para os golpistas. Afinal, Theophilo é um dos generais que estão alinhados com o golpe – e comanda nada menos que o maior contingente do Exército. Em seguida, Corrêa Netto menciona que o assistente de outro general não estará presente porque não é kid preto. Explica que só convocaram kids pretos. “Perfeito”, diz Cid. Tudo parece ir bem: os kids pretos que auxiliam generais da ativa estão na trama golpista e, segundo mensagens trocadas entre eles, a reunião definiu ações para convencer seus chefes e integrantes do Alto Comando a aderirem ao golpe.
Neste mesmo dia, oficiais do Exército lançam uma carta pública destinada a pressionar o general Freire Gomes a embarcar no golpe. A “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro” reclama da “insegurança jurídica e instabilidade política e social no país” e, a certa altura, afirma: “Covardia, injustiça e fraqueza são os atributos mais abominados para um soldado. Nossa nação, aquela que entrega os maiores índices de confiança às Forças Armadas, sabe que seus militares não a abandonarão”. Depois que a carta é divulgada, a milícia digital dos bolsonaristas entra em ação, criticando e pressionando Freire Gomes.
6 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Às 16h41, o caminhoneiro Lucas Rotilli Durlo, o Lucão, que estava em um dos acampamentos de bolsonaristas diante dos quartéis, manda um áudio ao general Mario Fernandes, o aloprado de alta patente, que fazia a ponte com os manifestantes. Lucão está inquieto e reclama no áudio que Bolsonaro precisava “resolver essa parada” de uma vez por todas. “O povo aqui em São Paulo começou a desistir já, cara. Já tem barraca sendo desmontada, né? As pessoas têm trabalho, têm convívio social, o pessoal não tá mais aguentando, não, cara. 35 dias nas ruas. Eu mesmo tô desmotivado pra caralho. Esses três últimos dias tomando chuva direto lá, cara, voltando pra casa, porra, fodido. Sapato encharcado, roupa encharcada. Caralho, velho, tá foda.”
Às 16h46, Bolsonaro deixa seu refúgio no Alvorada para ir à posse dos novos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nomeados por ele. Na breve solenidade, não diz nada, mas cruza com o ministro Alexandre de Moraes, que desde 21 de novembro estava sendo monitorado pela turma do golpe, que planeja sequestrá-lo e assassiná-lo. Às 17h56, encerrada a posse no STJ, Bolsonaro chega ao Palácio do Planalto, onde se avançava na trama golpista. Às 18h09, o general Mario Fernandes, que havia pouco ouvira o desabafo do caminhoneiro Lucão, usa uma impressora da Secretaria-Geral da Presidência para copiar uma nova versão do plano golpista. É a segunda vez que o documento é impresso no Palácio do Planalto. O texto aborda as “condições de execução” dos assassinatos. (O relatório da Polícia Federal informa: “Foram consideradas diversas condições de execução do ministro Alexandre de Moraes, inclusive com o uso de artefato explosivo e por envenenamento em evento oficial público.”)
Quando o general Fernandes imprime o plano, Bolsonaro ainda está no Planalto, assim como Rafael de Oliveira e Mauro Cid. Bolsonaro só volta para o Alvorada às 18h31. Oliveira e Cid também se deslocam para lá.
No site da Polícia Civil de Goiás é registrado um boletim de ocorrência sobre o acidente banal do dia 24 de novembro. O registro confirma que o acidente envolveu o major Rafael de Oliveira, um dos golpistas, e o contador Lafaiete Teixeira, que nada tem a ver com a trama golpista.
7 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Em uma reunião no Palácio da Alvorada, Bolsonaro apresenta aos três comandantes militares e ao ministro da Defesa, Paulo Sérgio Oliveira, a minuta do golpe, já com as suas alterações. A minuta previa a convocação de novas eleições e a prisão de Alexandre de Moraes, então presidente do TSE. A prisão de Gilmar Mendes e Rodrigo Pacheco havia sido excluída. O comandante do Exército, Freire Gomes, e seu colega da Aeronáutica, Baptista Júnior, não dão sinal verde para a operação. O comandante da Marinha, Garnier Santos, embarca no golpe, junto com o ministro da Defesa.
O major Rafael de Oliveira começa a execução do plano golpista. Compra um iPhone 12 e paga 2,5 mil reais em dinheiro vivo, para não deixar rastro. Em outra evidência de que seguia o plano, coloca o aparelho no nome de um terceiro – Lafaiete Teixeira. O major havia surrupiado a imagem da carteira de motorista do contador, apresentada no registro do boletim de ocorrência do acidente, para usar a identidade dele. A conexão foi descoberta porque o major, ao tirar a foto da carteira do contador, deixou seu próprio dedo aparecer no canto da imagem. “Gafe infantil e simplória”, escreveria mais tarde a Revista Sociedade Militar, que trata de assuntos relacionados ao mundo dos fardados.
8 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Às 17 horas, o general Mario Fernandes, sempre ele, chega ao Palácio da Alvorada para dar um “assessoramento” a Bolsonaro. Coisa rápida. Deixa o palácio às 17h40. À noite, às 22h56, em mensagem enviada a Mauro Cid, o general explica em que consistia o “assessoramento” – e, sem querer, implica diretamente Bolsonaro na articulação do golpe, que poderia ocorrer em 12 de dezembro, dia em que Lula seria diplomado como novo presidente.
Diz o general no áudio: “Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição.” Em seguida, comenta que Bolsonaro avaliou que as datas podiam ser flexíveis, desde que o golpe ocorresse até 31 de dezembro, dia do fim do seu mandato. O general conta que não gostou desse adiamento e pediu urgência. “Mas, porra, aí na hora eu disse: ‘Pô, presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades.’” Cid também está apressado. Responde: “Teria que ser antes do dia 12.”
9 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Pela manhã, Bolsonaro lê a minuta do golpe e corta alguns trechos. Achou que os “considerandos” do decreto estavam um pouco longos demais.
Às 12h33, Mauro Cid envia um mensagem de áudio ao general Freire Gomes – também ele um kid preto –, na qual avisa que Bolsonaro estava sem pressionado para adotar “uma medida mais pesada” e havia, inclusive, resumido um pouco a versão da minuta do golpe que fora apresentada aos comandantes militares. Diz Cid: “Boa tarde, general. Só para atualizar o senhor, o que vem acontecendo é o seguinte. O presidente tem recebido várias pressões para tomar uma medida mais, mais pesada, onde ele vai… obviamente, utilizando as Forças, né? Mas ele sabe, ele ainda continua com aquela ideia que ele saiu da última reunião, mas a pressão que ele recebe é de todo mundo. Ele está… É cara do agro, são alguns deputados, né? Então, a pressão que ele tem recebido é muito grande. E hoje o que ele fez de manhã? Ele enxugou o decreto, né? Aqueles considerandos que o senhor viu, enxugou, fez um decreto muito mais resumido, né?”
À tarde, finalmente, Bolsonaro quebra o silêncio de quarenta dias e faz um discurso para apoiadores que se aglomeravam em frente ao Palácio da Alvorada. Faz um discurso ambíguo, em que lamenta a derrota e, ao mesmo tempo, diz coisas como “vamos vencer”, “tudo dará certo no momento oportuno” e “nada está perdido”. Em sua fala, reforça a pressão contra o general Freire Gomes, que resistia ao golpe. Diz, sem mencionar o nome do militar: “Entre as minhas funções garantidas na Constituição está ser chefe supremo das Forças Armadas, […] que são o último obstáculo para o socialismo. […] As Forças Armadas devem, assim como eu, lealdade ao nosso povo, respeito à Constituição, e são um dos grandes responsáveis pela nossa liberdade. […] As decisões quando são exclusivamente nossas são menos difíceis e menos dolorosas. Mas, quando elas passam por outros setores da sociedade, são mais difíceis e devem ser trabalhadas.” E acrescenta: “Quem decide o meu futuro, para onde eu vou, são vocês. Quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês. Quem decide para onde vão a Câmara, o Senado, são vocês também.” Quando escutou essas palavras, um manifestante reagiu: “Ótimo, ótimo, era tudo que eu queria ouvir!”
Diante do discurso de Bolsonaro, e ao constatar que Braga Netto estava ao lado do presidente, o brigadeiro Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, fica preocupado. Como contou mais tarde em depoimento à Polícia Federal, ele entendeu, naquele momento, que a dupla continuava empenhada em “tentar uma ruptura institucional”.
Às 18h25, encerrado o discurso de Bolsonaro, o general Estevam Theophilo, o comandante do Coter, chegou ao Palácio da Alvorada. Ali, encontrou Braga Netto e dois assessores palacianos fardados: Marcelo Câmara e Mauro Cid. Neste encontro, o general Theophilo concorda com o golpe e se oferece para colocar tropas na rua, caso Bolsonaro assine o decreto golpista.
O encontro gerou bastante expectativa entre os golpistas, considerando que a data de 12 de dezembro se aproximava. Ansioso, o coronel Corrêa Netto, o assistente do Comando Militar do Sul, manda uma mensagem para Mauro Cid: “O papo foi bom? Dia a dia vai chegar dia 12.” Às 19h03, Cid responde: “Ainda não acabou.” Em seguida, diz que o general Theophilo estava preparado para deflagrar o levante, mas queria a assinatura de Bolsonaro na minuta golpista.. Nas palavras de Cid: “Mas ele [general Theophilo] quer fazer… Desde que o Pr [presidente] assine.” Quinze minutos depois dessa mensagem, o general Theophilo deixa o Alvorada.
O general Mario Fernandes, de novo ele, estava animado com o discurso de Bolsonaro aos apoiadores. Podia ser um sinal de que o golpe caminhava. Em mensagem a Cid, diz: “Força, Cid. Meu amigo, muito bacana o presidente ter ido lá, à frente ali do Alvorada, e ter se pronunciado, cara.” Em seguida, comenta sobre a reunião que tivera com Bolsonaro no dia anterior: “Que bacana que ele aceitou aí o nosso assessoramento. Porra, deu a cara pro público dele, pra galera que confia, acredita nele até a morte. Foi muito bacana mesmo, cara. Todo mundo vibrando. Transmite isso pra ele.”
José Múcio Monteiro é confirmado como ministro da Defesa pelo presidente Lula e, de imediato, procura os comandantes militares para uma conversa, na tentativa de selar uma pacificação. No entanto, suas ligações, recados e pedidos de visita eram repelidos. Freire Gomes, ainda no comando do Exército, não aceita receber o futuro ministro. (Só o fez depois que Bolsonaro, acionado por Múcio Monteiro, autorizou o general a conversar.)
12 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_O dia amanhece, anoitece e nada de golpe. À noite, porém, Brasília é tomada pelo vandalismo bolsonarista. Por volta das 20 horas, acampados em frente ao Quartel-General do Exército ocupam a área central de Brasília, atacam a sede da Polícia Federal e iniciam uma série de depredações. Entre eles, havia três kids pretos infiltrados. O saldo: 5 ônibus, 3 automóveis e 1 viatura do Corpo de Bombeiros incendiados.
13 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Um policial federal, Wladimir Matos Soares, que estava atuando no apoio à segurança do presidente Lula, diplomado no dia anterior, fornece ao capitão da reserva Sérgio Rocha Cordeiro, assessor especial da Presidência e kid preto, informações estratégicas sobre a segurança pessoal de Lula. O golpe continua de pé. Especula-se que a nova data pode ser 15 de dezembro.
14 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_No fim da manhã, o ministro da Defesa, general Paulo Sergio de Oliveira, reúne os três comandantes das Forças Armadas em seu gabinete. Sobre sua mesa, há uma minuta do golpe, mas é uma versão diferente da que Bolsonaro lhes apresentara uma semana antes. Prevê a decretação do Estado de Defesa e a criação de uma Comissão de Regularidade Eleitoral cujo objetivo é “apurar a conformidade e a legalidade do processo eleitoral”.
Na reunião, segundo contou depois em seu depoimento à Polícia Federal, Baptista Júnior, o chefe da Aeronáutica, faz a pergunta que interessa: “Esse documento prevê a não assunção ao cargo pelo novo presidente eleito?” O ministro da Defesa fica em silêncio. Baptista Júnior entende o recado e diz que não admitiria nem receber o documento. Freire Gomes, o comandante do Exército, adota uma posição semelhante. Garnier, da Marinha, como de costume, gosta da ideia. (Em seu depoimento à PF, Baptista Júnior também disse que, numa reunião, o general Freire Gomes chegou a alertar Bolsonaro de que, caso tentasse um golpe, seria obrigado a prendê-lo.)
Assim que sabem dos bastidores da reunião, os golpistas ficam enfurecidos com o general Freire Gomes, que chefia a maior e mais importante força armada do país. Mauro Cid recebe uma mensagem de Corrêa Netto, do Comando Militar do Sul, que, referindo-se ao general Gomes por uma sigla, indaga: “GFG cagou?” Cid responde que sim. “Puta merda! Sem esperança?”, insiste Corrêa Netto. “Cada dia menos”, diz Cid. Corrêa Netto está incrédulo e, no final da tarde, volta ao assunto: “GFG cagou solenemente? Não acredito, irmão.”
No meio da tarde, um coronel da reserva, Laércio Vergílio, manda ao general Gomes uma mensagem exaltada: “Cada vez mais a NAÇÃO BRASILEIRA precisa de você e exige o seu posicionamento, KID PRETO”, escreve ele, numa mensagem cheia de letras maiúsculas. “Qual é a dúvida? Qual é o receio? Ou você toma uma ATITUDE de PATRIOTA urgentemente ou todos nós MILITARES amargaremos pelo resto de nossas vidas a marca da DESONRA, da COVARDIA e seremos considerados TRAIDORES da PÁTRIA!”
O ex-paraquedista Ailton Barros, expulso do Exército em 2006 e próximo de Bolsonaro, manda essa mesma mensagem a Braga Netto, que responde: “Meu amigo, infelizmente, tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do Gen. Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente.” Ailton Barros comenta: “Vamos continuar na pressão, e se isso se confirmar vamos oferecer a cabeça dele aos leões.” Braga Netto concorda: “Oferece a cabeça dele. Cagão.”
Por volta da meia-noite, é a vez de Laércio Vergílio enviar um áudio a Ailton Barros. Diz que é preciso manter a pressão sobre o general Gomes e, caso ele resista a aderir ao golpe, sugere que a missão de prender Alexandre de Moraes seja dada ao general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, outro kid preto, que, na época, comandava uma brigada em Goiânia. “O outro lado tem a caneta. Nós temos a caneta e temos a força”, disse Vergílio. Em seguida, detalhou: Alexandre de Moraes tinha que ser preso “no domingo, na casa dele, como ele faz com todo mundo”.
15 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Pela manhã, a Polícia Federal, no bojo de uma investigação sobre os bloqueios de rodovias depois das eleições, cumpre 103 mandados de busca e apreensão e alguns mandados de prisão. Na mesma manhã, o TSE confirma a condenação do PL, multado em 22,9 milhões de reais pela litigância de má-fé ao questionar o resultado – parcial – das eleições.
Mas o general Mario Fernandes está esperançoso. Ouviu a informação de que o general Freire Gomes, comandante do Exército, estaria no Alvorada para comunicar Bolsonaro de que entraria no golpe – de fato, Freire Gomes esteve com o presidente naquela manhã. Com essa informação, Mario Fernandes então encaminha um áudio ao seu chefe, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria-Geral da Presidência e ele também um kid preto, e faz um apelo para que impeça o presidente de ter contato com quem queira dissuadi-lo de virar a mesa. “Kid Preto, algumas fontes sinalizaram que o comandante da Força sinalizaria hoje”, diz o general Fernandes. “Foi ao Alvorada para sinalizar ao presidente que ele podia dar ordem. Se o senhor tá com o presidente agora e eu ouvi a tempo, porra, blinda ele contra qualquer desestímulo.” O general Ramos não responde. À tarde, Fernandes visita o Alvorada. Fica uma hora no palácio.
O brigadeiro Baptista Junior, no entanto, não quer nem ouvir falar em golpe. Braga Netto, que conhece a opinião do comandante da Aeronáutica, manda uma mensagem para Ailton Barros, o ex-paraquedista, dando orientações para que hostilize o brigadeiro por sua posição legalista. “Senta o pau no Baptista Junior”, diz Braga Netto, ao recomendar que a hostilidade seja estendida aos familiares do militar. “Traidor da pátria. Daí pra frente… Inferniza a vida dele e da família.”
À noite, seis integrantes do núcleo do golpe criam um grupo no aplicativo Signal com o nome de “Copa 2022”. Cada um deles passa a se identificar com o nome de um país: “Alemanha”, “Argentina”, “Áustria”, “Brasil”, “Gana” e “Japão”. Usam celulares registrados em nome de terceiros. Os diálogos do grupo mostram que o principal ponto de interesse era a residência do ministro Alexandre de Moraes. A operação é coordenada por alguém que se identifica como teixeiralafaiete230 – de novo, o nome do contador de Goiás.
Às 20h33, uma parte do golpe é colocada em marcha: a captura do ministro Alexandre de Moraes. Nesta hora, “Brasil” informa o grupo sobre onde ele está: “Estacionamento em frente ao Gibão Carne de Sol”, diz, referindo-se a um restaurante que fica nas imediações do apartamento do ministro. “Gana” informa que já está no local combinado: “Tô na posição”. Às 20h43, “Brasil” pergunta ao grupo: “Qual a conduta?” Os integrantes ficam à espera de orientações. A certa altura, o codinome “teixeiralafaiete230” encaminha a todos uma notícia, segundo a qual o STF estava adiando a votação do orçamento secreto. Ao receber a informação, “Áustria” pergunta: “Tô perto da posição, vai cancelar o jogo?” Às 20h59, “teixeiralafaiete230” dá a ordem para desmobilizar: “Abortar… Áustria… Volta para o local de desembarque.” E começa a coordenar a saída: “Gana… prossegue para resgate com Japão.” Em seguida, diz que “Brasil” já está “no ponto de resgate”. E dá instruções sobre o uso de um veículo: “Moto fica onde parou. Tira bateria… e coloca capa.” A desmobilização, no entanto, enfrentou contratempos. Às 21h26, por exemplo, “Gana” avisa que está tendo dificuldades para pegar um táxi: “Tá pica, mané.”
16 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_O fracasso da noite anterior abate, mas, mais uma vez, não desmobiliza os golpistas. Às 10h43, o general Mario Fernandes abre um arquivo com uma minuta que trazia detalhes do pós-golpe: seria criado um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”, chefiado pelo general Augusto Heleno e coordenado pelo general Braga Netto. O general Fernandes prestaria “assessoria estratégica” e Filipe Martins, do gabinete do ódio, se ocuparia das relações internacionais.
Às 12h55, o general Fernandes volta a recorrer ao general Ramos. Desta vez, transmite a mensagem de um terceiro que faz um apelo indignado: “Comandante, bom dia, boa tarde, bom dia. Deixa eu falar pro senhor. Será possível que nós vamos atrasar dez anos? O senhor tá vendo as coisas que tão acontecendo aí? Nós vamos atrasar dez anos? Vocês não vão fazer nada? Não é possível, eu não acredito. Não tem condição. Deixa eu falar pro senhor. Ou chora agora, ou vai arrepender amanhã até… O senhor não vai dar conta de arrependimento.” Em seguida, Fernandes encaminha ao general Ramos outra mensagem, também de um terceiro. Diz a mensagem: “É agora, comandante. Tem que tomar iniciativa, tem que fazer as coisas agora, comandante. O que eles estão aprontando não tá escrito. O Supremo não tá escrito. […] Será que tem cabimento, vocês vão engolir seco isso aí? Não conta, comandante. O senhor é outra estirpe. Eu confio no senhor, comandante.”
O pessimismo começa a se espalhar. Às 15h42, o tenente-coronel Sergio Cavaliere recebe de um colega de farda uma mensagem, escrita por um terceiro, em que se lamenta a posição da cúpula das Forças Armadas. “Infelizmente”, diz a mensagem, “a FAB afrouxou e o EB [Exército Brasileiro] agora também está afrouxando… somente a MB [Marinha Brasileira] quer guerra… o PR [presidente da República] realmente foi abandonado… É foda…” Em seguida, o colega de farda diz para Cavaliere: “Acabou!”
Enquanto isso, Valdemar Costa Neto, presidente do PL, faz um vídeo pedindo aos bolsonaristas que não se abatam. “Eu quero agradecer vocês que estão na rua, que estão ainda lutando. Continuem na luta, o Bolsonaro não vai decepcionar ninguém.”
19 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_O general Fernandes, o aloprado da turma, encaminha mensagem ao coronel Reginaldo de Abreu, o Velame, e diz, em tom irritado, que Bolsonaro tinha que assinar a minuta do golpe. “Cara, porra, o presidente tem que decidir e assinar esta merda, porra.” Velame, em resposta, apresenta uma contabilidade desanimadora para os golpistas sobre os militares do Alto Comando do Exército, que é composto por dezesseis generais de quatro estrelas. “Kid Preto, cinco não querem, três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente.”
24 DE DEZEMBRO, SÁBADO_George Washington de Oliveira Sousa, Alan Diego dos Santos Rodrigues e Wellington Macedo de Souza plantam uma bomba no eixo traseiro de um caminhão-tanque, carregado de querosene de aviação e estacionado nas imediações do Aeroporto de Brasília. A bomba só não explodiu porque o motorista do caminhão percebeu o “objeto estranho” e acionou a polícia. Santos Rodrigues confessa que recebeu o artefato dentro do acampamento bolsonarista em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília.
(Oliveira Sousa foi condenado a nove anos e oito meses de prisão. Wellington de Souza pegou seis anos. Santos Rodrigues, cinco anos.)
30 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Às 14h02, Bolsonaro decola da Base Aérea de Brasília com destino a Orlando, na Flórida. É o primeiro presidente eleito durante o regime democrático a não cumprir um dos ritos mais simbólicos da democracia: passar a faixa presidencial ao seu sucessor. Está acompanhado do coronel Marcelo Câmara, o kid preto da “inteligência não oficial” de Bolsonaro. Dois dias antes da partida do presidente, o general Freire Gomes havia sido exonerado por Bolsonaro, a seu pedido, para não bater continência para Lula.
8 DE JANEIRO DE 2023, DOMINGO_Mais de 4 mil bolsonaristas invadem a Praça dos Três Poderes, promovendo uma série de depredações. Entre os manifestantes, há vários kids pretos, que aplicaram técnicas militares para facilitar o avanço da massa até os palácios. No prédio do Senado, os investigadores encontraram até uma granada GL-310, usada pelo Exército nos treinamentos dos kids pretos e conhecida como “bailarina”, por saltitar no chão enquanto exala gás lacrimogêneo. Nem a polícia do Congresso, nem a Polícia Militar do Distrito Federal dispõem desse tipo de granada.
(No início de 2024, ao comentar sobre a intentona golpista do 8 de janeiro, Bolsonaro disse: “Nós temos a certeza de que aquilo foi uma armadilha por parte da esquerda. […] Não é do pessoal que nos segue, que nos acompanha, pessoal bolsonarista, pessoas de direita, pessoal conservador nunca foi de fazer isso aí.”)
8 DE FEVEREIRO DE 2024, QUINTA-FEIRA_Na primeira operação que investiga a trama golpista, depois de mais de um ano de trabalho, a Polícia Federal sai à rua para prender quatro golpistas: o coronel Marcelo Câmara, o major Rafael de Oliveira, o civil Filipe Martins e o coronel Corrêa Netto, assistente do Comando Militar Sul, que, por estar fora do Brasil, só será preso três dias depois.
Na mesma operação, a PF apreende um manuscrito que detalha a Operação 142, que previa anular eleições, prorrogar mandatos em curso, substituir membros do TSE e convocar nova eleição. O documento, cujo título alude ao artigo da Constituição, estava sobre a mesa de Flávio Peregrino, assessor de Braga Netto. Fora escrito entre novembro e dezembro de 2022. Terminava com uma previsão peremptória: “Lula não sobe a rampa.”
10 DE NOVEMBRO, DOMINGO_Animado com o bom desempenho da direita nas eleições municipais, Bolsonaro assina um artigo no jornal Folha de S.Paulo sob o título Aceitem a democracia. No texto, sem colocar em dúvida as urnas eletrônicas, diz que as eleições municipais são “soberanas decisões populares”. A certa altura, escreve: “A moda é nos acusar de inimigos da democracia, mas quem mostra dificuldade de aceitar a democracia é a esquerda.” Mais adiante, afirma: “Nós, da direita, tão injustamente acusados de ‘extremismo’, continuaremos perseverando no caminho que sempre defendemos, o da liberdade e da democracia, entendida como o governo do povo.”
19 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA_Na segunda operação, a Polícia Federal faz mais cinco prisões. Além do policial federal Wladimir Soares, que repassava aos golpistas informações sobre a segurança de Lula, são presos quatro kids pretos. Um deles é o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, que participou da reunião do golpe na casa de Braga Netto e chegou a integrar a segurança pessoal da então presidente Dilma Rousseff. Outro é o tenente-coronel Rodrigo Bezerra de Azevedo, outro kid preto, cuja atuação golpista estava fora do radar, embora tivesse participado da operação abortada para capturar Alexandre de Moraes. Ele acabou sendo preso enquanto fazia um relatório sobre a atuação do Exército na reunião do G20, no Rio de Janeiro. Os restantes são o general Mario Fernandes e o major Rafael de Oliveira, que já foi preso antes, liberado e voltou agora à prisão.
21 DE NOVEMBRO, QUINTA-FEIRA_A Polícia Federal, com autorização do STF, divulga a lista dos 37 indiciados pelos “crimes de abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado e organização criminosa”. Entre os indiciados, está Jair Bolsonaro, apontado como “líder da organização criminosa”. É o primeiro presidente eleito no regime democrático a ser acusado de tentar abolir o regime democrático. Além dele, a lista tem quatro ex-ministros, três dos quais são militares com altas patentes. A pena máxima é de 28 anos de prisão.
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