ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O homem elefante
Paquiderme que se preza ouve Bob Dylan
Douglas Duarte | Edição 27, Dezembro 2008
À meia-noite de 23 de setembro, uma elefanta chamada Hildra fugiu do Gran Circo Unión, nos arredores da Cidade do México. Tudo aconteceu muito rápido: junto com dois outros paquidermes, ela havia sido liberada para tomar água; na volta, um gato preto passou-lhe entre as patas. Assustada, Hildra se descontrolou, arrebentou um portão de metal e ganhou a rodovia México-Pachuca. Correu por alguns quilômetros até alcançar a via expressa que levava a Teotihuacán. Ao atravessar na contramão a cancela número três do pedágio, viu crescerem os faróis do ônibus conduzido por Tomás López Durán. O veículo se chocou contra as 4 toneladas e meia do animal, encerrando ali a história de ambos.
Uma hora e meia depois, apitou um alerta no computador de Dan Koehl, em Estocolmo. Aos 49 anos, ele comanda de um laptop em sua cozinha o site www.elephant.se, maior base de dados sobre elefantes no mundo. Através de uma comunidade chamada Elephant Gossip [Fofoca de Elephant], Koehl recebe dicas de quase trinta informantes regulares – estudiosos e tratadores dos Estados Unidos, Sri Lanka, Tailândia e da Europa. Foi assim que, pouco tempo após a publicação do óbito por uma agência de notícias, Koehl já acrescera ao fato as informações de que Hildra nascera numa selva da Índia, 45 anos antes, e que, provavelmente, fora comprada de algum circo americano.
O site, com poucas imagens, tem um design tão delicado quanto a pele de um paquiderme. Não rende um centavo, mas é atualizado cerca de vinte vezes por semana. É nele que Koehl monitora os mais de 4 mil elefantes de 98 países dos quais tem conhecimento, noticiando nascimentos (como o de Samudra, nos Estados Unidos), óbitos (Suwako, no Japão), transferências (Raisa, enviada do Rio de Janeiro para Sorocaba), tramitação de leis (nova reserva para os animais na Índia) e ameaças (60 elefantes selvagens mortos no Sri Lanka em 2008). Além disso, o site ainda conta com tratados históricos, estudos sobre o comportamento da manada e detalhadas instruções relativas à saúde do animal, com dicas que vão do pH ideal da água à forma correta de lhes cortar a unha. É uma Bíblia em tempo real para quem lida ou gosta dos bichos, algo entre o New York Times e a Wikipedia da elefantografia. O responsável pela obra assina seus e-mails como “Dan Koehl, enciclopédia de elefantes”.
A paixão zoológica de Koehl surgiu aos 17 anos, quando, numa visita de quatro meses ao Sri Lanka, conheceu os mahouts, homens que dedicam suas vidas ao simpático animal. No retorno à casa, o encanto virou trabalho sério: hoje, além de prestar consultoria a instituições européias, parques zimbabuenses e orfanatos de animais na Tailândia, é ele quem trata a pão-de-ló os três elefantes do rei Carl Gustaf da Suécia. Nesses últimos trinta anos, Koehl passou mais tempo ao lado de elefantes que de homens. Conhece profundamente o comportamento do bicho, segundo ele, de inteligência comparável à de cetáceos (baleias, botos e golfinhos) e grandes primatas (chipanzés, bonobos, orangotangos, gorilas e humanos – mas não todos). “Na verdade, a variação dentro desses grupos é maior que a variação entre esses grupos, o que equivale a dizer que um elefante brilhante pode ser muito mais inteligente que uma pessoa burra”, ensina.
Uma prova rápida é dada quando Koehl pede a seus pupilos que trombeteiem. “Sawadee!”, vocifera, a que Sao Noi (Menininha) e Kuo (Flor de lótus) prontamente respondem, soando como dez Miles Davis sem partitura. Saudar na língua-mãe – os dois foram um presente do governo tailandês, em cuja língua sawadee é algo como “e aí?” – é um sinal de deferência de Koehl, já que a maior parte da comunicação entre humanos e elefantes se dá num dialeto que mistura o cingalês, o alemão e o inglês, fruto do último século e meio de relações entre as duas espécies. O Ceilão, hoje Sri Lanka, foi um dos lugares onde o alemão Carl Hagenbeck, o maior mercador de animais selvagens do século XIX, capturou mais exemplares para seu plantel. O que o alemão foi para o tráfico, o americano P. T. Barnum foi para o circo, explicando a porção anglófona do léxico elefantino. Koehl diz, contudo, que o dialeto é flexível feito tromba. “Eles aprendem comandos e línguas rapidamente.”
Avesso ao ambientalismo politicamente correto, o tratador desdenha do discurso anticirco de grupos de defesa dos animais, lamentando que alguns estados no Brasil tenham proibido os paquidermes em espetáculos. “As pessoas não sabem que, em certas partes da Ásia, elefantes são animais tão domésticos quanto cães e cavalos. Para mim, o ideal seria que espécimes fora da natureza dividissem seu tempo entre zoológicos e circos onde fossem bem tratados. Só zoológico os deixa deprimidos, reumáticos, flácidos. Já o circo é um bom workout, e incita o contato com humanos. Precisam das duas coisas.”
Para ilustrar, ele cita o caso do terceiro elefante real – Saba, uma quarentona vinda do zoológico de Dompierre-sur-Besbre, na França. “Lá, ela vivia com outra elefanta em regime de separação absoluta dos humanos, sendo alimentada e lavada através de uma grade. Mas o caso é que Saba não tem a menor paciência para elefantes e adora gente. Resultado: estava entediadíssima quando chegou.” Koehl diz que nos bosques de sua majestade, a amiga tem espaço para passear e interagir com animais de outras espécies. Garante, inclusive, que ela gosta de música, com especial predileção pelo pop americano dos anos 60. “Como eu sei? Bom, se um bicho de 4 toneladas sai de onde está e pára do meu lado balançando a tromba quando eu canto Wooden Heart, do Elvis, ou Tomorrow Is a Long Time, do Bob Dylan, acho que é porque está se divertindo. Herbívoros encaram o silêncio como sinal de que há predadores por perto, sabe?”
Para que nenhum elefante em cativeiro tenha que lidar com o angustiante ruído da solidão, Koehl tem empenhado grande parte do seu tempo nos últimos meses em um projeto de âmbito global: uma rede telefônica sem fronteiras, conectando animais de diferentes zoológicos. Ele explica que elefantes usam infra-sons para se comunicarem a grandes distâncias na natureza. O ruído dá conta de quem está falando, inclusive. “Por isso pensei: e se instalarmos microfones e alto-falantes em dois lugares diferentes para que eles se comuniquem? Veja o caso da Saba: ela está muito bem aqui, mas soube que a elefanta que ficou para trás andava triste, pensativa. Imagine: você vive com alguém por anos e de repente essa pessoa desaparece. Não seria genial que elas pudessem se falar de novo, dizer ‘está tudo em ordem, pode ficar tranqüila’ e tocar a vida adiante?”
O projeto experimental começa este mês com os elefantes do Zoológico de Colônia, na Alemanha. Para evitar qualquer desentendimento na conversa – a despeito do poliglotismo dos bichos –, Koehl preferiu que todos os elefantes nessa fase inicial fossem de origem asiática.