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O homem que inventou Fidel
Com uma entrevista, o repórter do New York Times cria o mito do guerrilheiro rebelde e romântico
Anthony DePalma | Edição 1, Outubro 2006
UM JORNALISTA QUE FOI NOTÍCIA
por Dorrit Harazim
Lá se vão quase 50 anos desde que o jornalista Herbert L. Matthews partiu, sem saber, para o seu último compromisso com a História. Matthews era um jornalista americano que, como correspondente de guerra do New York Times, testemunhara todos os grandes conflitos da época. Numa manhã de fevereiro de 1957, ele saiu da redação do jornal que dá nome a Times Square e emergiu, quatro dias depois, numa clareira da inóspita Sierra Maestra, em Cuba. Tinha encontro marcado com um homem dado como morto, Fidel Castro. Três meses antes, o próprio New York Times noticiara a morte do rebelde barbudo, baseado em informações propagadas pelo governo que o guerrilheiro pretendia derrubar.
Matthews chegou às montanhas da Província do Oriente sem nada a perder. Estava com 57 anos, tinha lugar assegurado como um dos jornalistas ocidentais mais influentes da primeira metade do século XX, e parecia aquietado como editorialista do principal jornal americano. Trazia no currículo uma cobertura apaixonada da Guerra Civil na Espanha. Acompanhara e aplaudira a invasão da Abissínia (hoje, Etiópia) pelas tropas de Benito Mussolini. Testemunhou o triunfal desembarque dos americanos na Europa. Finda a Segunda Guerra Mundial, apreciava apoiar sua silhueta esguia numa bengala que pertenceu a Mussolini.
Caso Fidel Castro estivesse morto ou abortasse o encontro na última hora, o currículo de Matthews já estava consolidado. Já o barbudo tocaiado tinha tudo a ganhar num encontro com o americano. Se o seu plano de marketing desse certo, Fidel sairia do esquecimento a que fora condenado pela censura do ditador da época, Fulgência Batista. E mostraria aos cubanos, pelo efeito bumerangue de uma reportagem no New York Times, que estava vivo ─ e sua revolução também. Na verdade, ela estava natimorta.
Três meses antes, Fidel Castro havia cruzado o Golfo do México com 82 compañeros num iate americano recauchutado ─ o mítico Granma ─ para deslanchar o cerco ao regime de Batista. A operação fora um fiasco. “Não foi um desembarque, foi um naufrágio”, diria mais tarde um dos participantes. O Granma tinha atolado na costa cubana em plena luz do dia, o bote com mantimentos e armas emborcara, e a força aérea de Batista começara a caçar os insurretos assim que pisaram em solo pátrio. No dia seguinte, a notícia divulgada pelo exército cubano correra o mundo: o guerrilheiro fora aniquilado ao tentar invadir a ilha com seu irmão Raul e quarenta outros guerrilheiros.
Fidel precisava ressuscitar. Restavam-lhe cerca de vinte homens mal-alimentados. Seus ataques a postos militares remotos não conseguiam ser noticiados. Foi nestas circunstâncias que constatou precisar exibir-se para o mundo com fanfarras. Recorreu a um expediente já usado, em 1895, por José Marti, o herói máximo da história revolucionária de Cuba: convocou um jornalista americano para divulgar suas idéias. O arauto deveria ser, idealmente, de um grande jornal. E, de preferência, de direita, para aumentar o impacto.
É dessa percepção de marketing político que resulta o encontro de três horas entre Herbert L. Matthews e Fidel Castro Ruiz. Para ambos, foi um ponto de inflexão. O repórter conseguiu o que até hoje é considerado um dos grandes furos jornalísticos daquele período. Fidel obteve legitimidade dentro e fora de Cuba, além de fôlego para prosseguir a guerrilha. Pela primeira vez, a história desse encontro está narrada com minúcias inéditas no livro O Homem Que Inventou Fidel, de Anthony DePalma ─ também jornalista, também do New York Times e repórter designado pelo jornal para escrever o obituário do líder cubano. A obra será lançada em breve no Brasil, e piauí publica um dos capítulos em primeira mão.
DePalma teve acesso tanto às anotações pessoais de Matthews, doados à biblioteca da Columbia University, em Nova York, como aos arquivos do NYT. A documentação não apenas detalha as circunstâncias do episódio, mas deixa à mostra as vísceras do funcionamento de um grande jornal. Memorandos internos da direção, bilhetes manuscritos pelos editores e repórteres envolvidos na cobertura de Cuba, dúvidas da família Sulzberger, proprietária do Times, quanto ao acerto da reportagem ─ está tudo lá, e compõe parte substancial do drama, agora revelado em toda sua dimensão.
Um drama que também teve lances cômicos. De capote, cachecol e boina de lã pretos, a figura de Matthews se chocava com a paisagem tropical. O americano subiu a montanha sem gravador, só com bloco e caneta, para não levantar suspeita nos bloqueios militares. Precavido, fez com que Fidel rubricasse todas as folhas de anotações da entrevista. E saiu da Sierra com uma assinatura do jefe, devidamente datada, é claro. Sabia que, quando a reportagem fosse publicada, haveria dúvidas quanto à sua autenticidade.
Se houve, os céticos se calaram diante do impacto e da surpresa. A edição de 27 de fevereiro de 1957, um domingo, revelava que Fidel Castro estava vivo e o exército guerrilheiro tinha musculatura para tentar derrubar o regime cubano, que contava com o apoio do governo americano.
Publicada ao longo de três edições, a reportagem é o retrato de um revolucionário jovem, destemido, defensor da constituição cubana, apegado aos valores da democracia e amigo dos Estados Unidos. Por ser de autoria de um correspondente de guerra e editorialista do New York Times, que poucos meses antes ainda qualificava de “patética” a guerrilha dos barbudos, a série teve o efeito desejado por Fidel. Ela lhe deu legitimidade, aumentou a pressão sobre Washington para suspender o fornecimento de armas ao exército de Batista, e injetou ânimo numa guerrilha à beira da anemia. Matthews foi o primeiro de uma longa lista de jornalistas seduzidos pela figura de Fidel Castro. O ensaísta William Buckley, uma das vozes conservadoras mais afiadas dos Estados Unidos, dizia que Fidel pode se gabar de ter conseguido emprego como ditador graças ao NYT.
Em contrapartida, a entrevista custou caro à biografia do jornalista, acusado até hoje de ter cometido um pecado capital de avaliação. Na cobertura da Guerra Civil Espanhola, Matthews havia tomado partido dos republicanos, e projetara a derrota do franquismo para além do que apontavam os fatos. No caso cubano, fez outra aposta. Continuou a defender Fidel mesmo após as execuções promovidas pelo regime castrista e o confisco de propriedades americanas. Ignorou os inequívocos sinais do poder caudilhista. E sustentou, até o final, que o comunismo não foi uma causa para a revolução cubana, foi seu resultado.
A fidelidade de Matthews à sua reportagem não teve a contrapartida que talvez esperasse. Os dois homens de egos equivalentes seguiram seus próprios interesses. Para Fidel, uma vez esgotada a repercussão da empreitada comum, o jornalista americano perdeu utilidade. “Estou cansado daquele velho que pensa que é meu pai”, queixava-se. “Ele está sempre me dando conselhos.”
O jornalista morreu em 1977, poucos meses depois de ter sido obrigado a renunciar à pagina de opinião pela direção do jornal onde trabalhou por quase meio século. Morreu chamando de desastrosa a cobertura da revolução cubana pela imprensa americana. Deixou uma advertência: se os americanos não entendessem a revolução pela ótica dos cubanos, “o conflito entre nós permanecerá insolúvel e talvez venha a se tornar uma catástrofe”. Nisso ele não errou.
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Fidel passou entre as guaguasís altas e esguias e os arbustos espessos para saudar o surpreso correspondente americano que fizera esperar durante a noite. O dia começava a nascer e Matthews estava enlameado, faminto, com frio e precisando fazer a barba e tomar um banho quente. Mas para isso viera de Nova York, o motivo pelo qual havia abandonado uma carreira confortável na universidade: era o tipo de encontro com a história que sempre o fazia sentir-se mais vivo. Fidel entrou na clareira quando o sol acabava de irromper através das nuvens, inaugurando o dia. Vestia uniforme novo e um boné cinza-oliva e carregava um rifle longo com lente telescópica.
“Podemos acertá-los a uma distância de mil metros com estas armas”, gabou-se para Matthews logo depois de cumprimentá-lo, brandindo o rifle como se fosse um troféu. O impacto das palavras dificilmente poderia ter sido mais dramático. Era uma cena clássica de um encontro inesperado, a reunião histórica de duas forças atraídas mutuamente pelo destino. Matthews já dispunha de uma quantidade substancial de informações sobre a vida de Fidel, seu movimento e sua história, mas precisava descobrir muito mais. Fidel não sabia nada sobre Matthews, exceto que era americano e escrevia para o Times. E como havia passado vários meses em Nova York tentando angariar fundos, tinha uma idéia das posições do jornal e do valor potencial que um artigo publicado nele, livre da censura de Batista, conferiria a seu vacilante movimento. Fidel tinha o controle do cenário, do momento e, em larga medida, do conteúdo da entrevista. Tanto Fidel como Matthews pretendiam usar um ao outro para seus próprios fins. Para o cubano, o americano era um conduto para suas idéias, um sistema de comunicação com o público que transmitiria uma mensagem importante ao mundo. Matthews via em Fidel uma maneira de provar que ainda era capaz de entrar numa situação fisicamente difícil e furar a concorrência. Fidel queria impressionar Matthews, intimidá-lo e talvez até assustá-lo com sua conversa sobre acertar soldados. Mas Matthews estava ocupado demais registrando o que via para demonstrar que estava com medo.
“Levando em conta, como alguém faria de início, seu físico e sua personalidade, tratava-se de um homem e tanto,com mais de 1,80 metro de altura, pele azeitonada, rosto cheio, barba irregular”, escreveria Matthews no primeiro dos três artigos baseados na entrevista. À luz do dia, ele avaliou rapidamente o acampamento temporário montado para a entrevista. Percebeu que, com exceção de Fidel, ninguém tinha nem metade da sua idade e que os rebeldes que o seguiam estavam inflamados com a excitação da juventude revolucionária. “Como são jovens!”, rabiscou em suas anotações. Embora os combatentes que viu tivessem menos de 25 anos, suas armas eram rifles americanos antigos e obsoletos e uma metralhadora de confiabilidade questionável que os rebeldes diziam ter capturado em um ataque a uma base do Exército semanas antes. Matthews observou que alguns homens trajavam uniformes grosseiros e descombinados, enquanto outros vestiam roupas civis esfarrapadas. Um deles usava uma camisa branca que, apesar de suja, brilhava inconvenientemente no meio da vegetação verde: um traje arriscado para fazer guerrilha.
“Sou o primeiro”, anotou Matthews, saboreando o furo que conseguiria por ser o primeiro repórter — americano ou cubano — a visitar o acampamento rebelde e preparar uma matéria notável sobre a sobrevivência de Fidel. Não trouxera caderno ou máquina de escrever e usava folhas de papel de carta dobradas em três, de tal forma que cabiam em sua mão esquerda enquanto escrevia com a direita. Com 1,85 metro de altura, Matthews estava acostumado a olhar para seus entrevistados de cima. Agora, via-se olhando direto para os olhos castanhos de Fidel e ficou cativado pelo modo como eles brilhavam de inteligência e ousadia. Notou sua “extraordinária eloqüência” e sua “personalidade irresistível”. Até a barba do rebelde, um conjunto incompleto de suíças negras esfarripadas, o impressionou, embora não pudesse imaginar que ela se tornaria parte significativa de sua iconografia revolucionária. Porém, ao destacar a juventude de Fidel quando escreveu sobre a entrevista e ao mencionar sua barba, os cabelos longos de seus seguidores e sua tentativa audaciosa de desafiar a ordem estabelecida, Matthews, estava identificando os elementos essenciais do caráter rebelde de Fidel para os americanos, que muito em breve veriam sua juventude adotar algumas dessas características nos anos radicais e rebeldes da década de 1960.
Matthews foi submetido ao talento teatral de Fidel. No decorrer da entrevista, o líder cubano agachou-se perto dele e sussurrou que colunas de soldados de Batista cercavam a área onde estavam, uma pequena crista no sítio miserável de um morador local chamado Epifanio Díaz. A área estava envolta em densa folhagem e havia nas proximidades um riacho. Ele sabia que o Exército pretendia liquidar os remanescentes de suas forças rebeldes antes que se desse o término do período de censura, marcado para primeiro de março. Fidel inclinou-se na direção de Matthews, que usava um sobretudo escuro e um boné comum, e pôs os lábios perto do ouvido do correspondente. Falava num sussurro rouco e com uma intensidade que fazia com que tudo o que dizia parecesse possível.
Matthews não se deu conta, mas não havia penetrado fundo na Sierra. O local do encontro estava a apenas 40 quilômetros da cidade de Manzanillo, longe do coração da floresta. No entanto, o terreno era selvagem o bastante para dificultar a chegada de uma patrulha do governo. A principal linha de cerco do Exército estava montada a cerca de 25 quilômetros do ponto em que se encontravam, e no terreno acidentado que os separava não havia estrada pavimentada, apenas algumas trilhas marcadas pelos sulcos de carros de bois. Era um território perigoso para os soldados, porém uma boa região para os guerrilheiros. A floresta densa oferecia também camuflagem para escondê-los das patrulhas aéreas.
Os rebeldes esticaram cobertores no chão para Fidel e para Matthews e deram ao americano um pouco de seus víveres: suco de tomate, café, bolachas e presunto. Fidel disse que os camponeses locais que os abasteciam com seus produtos eram pagos com generosidade e elogiou vigorosamente o apoio que davam à revolução. Os US$ 300 trazidos por Matthews seriam usados para esse fim e havia muito mais dinheiro de contribuições populares. Cubanos de todo o país apoiavam seus esforços para se livrar de Batista, vangloriou-se Fidel, alguns deles tão ricos e poderosos que causaria surpresa se seus nomes fossem revelados.
Fidel poderia falar em inglês, mas deixou claro que preferia responder às perguntas em espanhol. Matthews concordou, embora registrasse a maior parte de suas anotações em inglês. No decorrer da conversa, Fidel falou-lhe de seu objetivo mais amplo de um país livre e independente, governado pelo império da lei e o respeito pelos direitos de todos os cubanos. Enquanto escutava com atenção o plano de batalha de Fidel, Matthews pôde perceber como a coragem e a liderança dele animavam aqueles que o seguiam.
Seria uma campanha clássica de guerrilha, na qual a cobertura profunda da Sierra obstruiria e confundiria o Exército regular que perseguia os rebeldes. Surpresa e ação furtiva seriam suas principais táticas, com ataques aos soldados onde e quando eles menos esperassem, para depois desaparecer no meio da Sierra. Ali, o menor número dos rebeldes se tornava uma vantagem tática e cada árvore e arbusto eram um aliado.
Fidel disse a Matthews que os soldados de Batista lutavam mal e não estavam preparados para aquele tipo de ofensiva na montanha, ao passo que seus homens se adaptaram à guerra de guerrilhas durante o longo treinamento feito no México. Mesmo com a superioridade inconteste do governo em efetivos e na qualidade dos armamentos, os soldados não podiam fazer muito mais do que ter esperança de topar com uma patrulha rebelde e capturá-los ou matá-los antes que conseguissem fugir. Quando os soldados recuavam para seus quartéis, revelou Fidel, estavam sujeitos a sofrer ataques enquanto dormiam ou então a serem alvejados por um rifle de longo alcance sem nem saber que eram alvo. Os homens de Batista estavam ficando desmoralizados, e os rebeldes, por sua vez, se sentiam mais fortes e mais confiantes a cada dia. Fidel contou a Matthews que o Exército havia executado alguns de seus homens depois de capturá-los para dar um exemplo do que poderia acontecer àqueles que desafiavam o governo. Mas ele tratava seus prisioneiros com humanidade e mais tarde os libertava, num gesto destinado a conquistar uma fatia mais ampla do povo cubano.
Fidel estava consciente de que a censura de Batista impedia a maioria dos cubanos de ter uma noção mais concreta sobre o movimento: “Você será o primeiro a contar isso para eles”. Matthews percebeu que tinha uma notícia sensacional nas mãos, daquelas que aconteciam somente uma vez na vida. Para um adepto intransigente da liberdade de imprensa, aquela matéria iria servir para muitos fins, mas seu objetivo principal era romper o silêncio que Batista havia imposto. Repugnava-lhe a simples idéia de censura governamental. Um artigo sobre Fidel na primeira página do New York Times tornaria a censura sem sentido e ressuscitaria Fidel dos mortos.
Como advogado e estudioso da revolução, Fidel compreendia a importância de uma imprensa que nutrisse alguma simpatia pelo movimento. Sabia que, para conquistar Matthews, teria de convencê-lo de que os rebeldes dominavam a Sierra e ficavam mais fortes a cada dia. Pouca coisa em relação ao encontro se deveu ao acaso. Celia Sánchez, que se uniu a Fidel nas montanhas e seria sua confidente mais próxima durante toda a revolução, encarregara-se de montar o acampamento temporário, para que Matthews acreditasse que os soldados desgrenhados compunham um exército. Seu estado era lamentável depois de dois meses e meio em fuga: as roupas estavam rasgadas, os sapatos enlameados e estragados, alguns amarrados com pedaços de fios. Ela ordenou que os limpassem da melhor forma possível. Os guerrilheiros tiraram a lama dos rifles e marcharam em formação militar de forma que Matthews os visse. Um deles, cuja camisa estava tão rasgada que fora presa nas costas por uns farrapos, marchou de perfil para que o americano não se desse conta de que parecia mais um vagabundo do que um soldado. Mas é difícil imaginar que Matthews não o tenha visto e percebido o ardil imediatamente.
Relatos posteriores não mencionam nenhuma tentativa dos rebeldes de marchar em círculos, ao redor de Matthews, para fazê-lo crer que eram em número maior. E a topografia do local do encontro torna improvável a ocorrência dessa encenação. A clareira em que Fidel se reuniu com Matthews era uma crista que se projetava sobre um pequeno riacho, chamado pelos camponeses da região de rio Tio Lucas. Como o rio cercava o lugar por três lados, os soldados de Batista não poderiam se aproximar sem que fossem detectados pelos rebeldes. Mas isso significa também que não havia espaço para que os homens marchassem em torno de Matthews sem que ele notasse a manobra.
Não obstante, houve ampla direção de cena durante o encontro. Enquanto Fidel e Matthews conversavam, um dos rebeldes, Luís Crespo, retornou de uma expedição de reconhecimento e se apresentou para Raúl Castro, que o afastou para um canto. Crespo faria uma ponta no espetáculo que se desenrolava. Seguindo as instruções de Raúl, ele correu até Fidel, que estava mergulhado na conversa com Matthews, e o interrompeu: “Meu comandante, conseguimos alcançar a segunda coluna”.
Fidel também desempenhou seu papel no drama revolucionário. “Espere até eu terminar”, gritou para Crespo e voltou-se para Matthews, explicando que os homens e os equipamentos ao redor deles constituíam a unidade central da primeira coluna e que a Sierra estava cercada por colunas de soldados rebeldes. O lugar em que estavam era bem guardado e nada se movia sem que soubessem. Os rebeldes haviam avaliado o inimigo e conheciam seu tamanho, sua força e sua estratégia.
Matthews escreveu que Fidel acreditava que Batista tinha 3 mil soldados em campo fazendo o cerco aos rebeldes, enquanto seus homens caminhavam em células de sete a dez, “algumas de 30 ou 40”. Segundo ele, Fidel teria dito: “Não vou lhe revelar quantos somos, por razões óbvias. Ele [Batista] trabalha em colunas de 200; nós, em grupos de 10 a 40, e estamos vencendo. É uma batalha contra o tempo e o tempo está do nosso lado”.
Matthews tinha de comparar aquela informação com as estimativas independentes que já conhecia a respeito das forças rebeldes. Durante a semana que passara entrevistando fontes em Havana, disseram-lhe que o grupo original de 82 homens do Granma fora reduzido a não mais de 15, mas que havia se reconstituído e atraído gente suficiente para montar uma força combatente de várias centenas, além de outros tantos simpatizantes em toda a Sierra. Matthews teve a presença de espírito de contar os indivíduos que viu durante a entrevista, embora o cenário fosse confuso e sua atenção estivesse mais voltada para as palavras de Fidel. Calculou ter visto em torno de 25 homens e mulheres no acampamento temporário. Podia acrescentar a essa cifra os líderes do Movimento 26 de Julho reunidos na casa de Manzanillo, além dos batedores e guias que o ajudaram a chegar ao acampamento. No total, Matthews estimou ter visto ou ouvido mais ou menos 40 indivíduos, o que parecia corresponder à descrição de Fidel de “grupos de 10 a 40” e sugeria que faziam parte de uma força maior. Era um cálculo que combinava com o que lhe fora dito por várias fontes, e o correspondente não viu nada que indicasse algum erro nisso. Se tivesse escrito que Fidel estava enfiado nas montanhas acompanhado por não mais do que um punhado de rebeldes, seu despacho causaria estranheza em Nova York, pois contradiria o que já havia sido noticiado no Times. Uma estimativa tão baixa, embora mais próxima, na verdade, do que as centenas que alguns supunham estivessem com Fidel, teria sido igualmente contestada pela embaixada americana e por quase todos os cubanos com quem Matthews falara antes de ir para a Sierra.
A entrevista inteira durou cerca de três horas. Matthews fez apenas algumas perguntas gerais e Fidel deu uma demonstração magnífica de oratória. O jornalista ficou impressionado com o modo como “os olhos castanhos [de Fidel] brilham; como seu rosto veemente se aproxima do ouvinte e como sua voz sussurrante, como numa peça de teatro empresta um sentimento intenso de drama”. Um dos homens de Fidel trouxe uma caixa de charutos. O líder rebelde pegou um e ofereceu a caixa a Matthews, que também era apreciador. Enquanto o ar se enchia de fumaça aromática, os dois conversaram sobre política e sobre os objetivos nebulosos de Fidel. Matthews perguntou se o que ouvira era verdade: que Fidel ia usar o poderio de suas forças para declarar um governo revolucionário, assumindo o controle da província de Oriente e fazendo de Santiago a nova capital.
“Ainda não”, respondeu Fidel, como se simplesmente precisasse determinar a hora certa para fazer isso. “Vou me fazer conhecido no momento oportuno. O retardamento causará mais efeito, pois então estarão todos falando de nós. Estamos seguros de nós mesmos.”
Enquanto fumava seu charuto, Matthews tentava avaliar o homem que estava diante dele. Era óbvio que Fidel tinha uma enorme autoconfiança e sua crença em si mesmo e em sua causa era o combustível que detonava a paixão dos homens ao seu redor. Mas Matthews pensou ter detectado também algumas fraquezas. Não achava que Fidel tivesse convicções firmes sobre questões complexas da economia nacional. Nem viu provas de que fosse um grande líder militar. Obviamente, era dotado de um pensamento revolucionário, e político.
Fidel deixou claras suas ambições nesse terreno, embora não fosse capaz de descrever como pretendia alcançar seus objetivos. O nacionalismo estava no cerne de sua revolução, e isso significava que ele se posicionava contra as forças do colonialismo e do imperialismo que, em suas palavras, oprimiam Cuba. Estava com raiva dos Estados Unidos pelo apoio que davam a Batista e as armas que lhe forneciam para combater os rebeldes na Sierra e contra os cubanos em toda a ilha. Mas isso não significava que fosse antiamericano, disse a Matthews: “Pode ter certeza de que não temos nenhuma animosidade contra os Estados Unidos e o povo americano”. Matthews não o contestou, ainda que tivesse captado, nas entrevistas feitas em Havana, laivos de sentimentos ambivalentes de Fidel em relação aos Estados Unidos.
Matthews pensou ter detectado fortes traços democráticos nos objetivos revolucionários de Fidel. Ele defendia a liberdade, a democracia e a justiça social e seu alvo maior era restaurar a Constituição que Batista havia violado com seu golpe de 1952. Realizar novas eleições, disse Fidel, o ex-candidato a deputado, e devolver aos cubanos o direito democrático de escolher seus líderes — esse era o objetivo principal.
Matthews atribuiu outros objetivos aos rebeldes, ainda que os tenha esboçado somente em termos gerais. Indicou que o movimento era levado a cabo principalmente por jovens e rotulou Fidel de “símbolo flamejante da oposição” ao regime de Batista, não obstante soubesse que havia líderes fortes em outros grupos de oposição. Descreveu o Movimento 26 de Julho como revolucionário e o classificou de socialista e nacionalista, mas definitivamente não comunista. Matthews aderiu à definição formal de comunista, que incluía somente aqueles que pertenciam ao Partido Comunista e que recebiam ordens do Comitê Central, um enfoque estreito assumido por muitos outros observadores. Sabia que Fidel pretendia forçar Batista a abandonar a presidência, entretanto, só vagamente conseguia prever o que poderia acontecer depois que o poder não estivesse nas mãos de ninguém. “Significa um new deal para Cuba”, registrou Matthews, descrevendo a visão do rebelde de uma Cuba nova que seria “radical, democrática e, portanto, anticomunista”.
“Sobretudo”, disse Fidel a Matthews naquela manhã, “estamos lutando por uma Cuba democrática e pelo fim da ditadura. Não somos contra os militares; por isso soltamos os soldados prisioneiros. Não há ódio do Exército enquanto tal, pois sabemos que os homens são bons, assim como muitos oficiais.”
Porém, não hesitava em se vangloriar de sua perícia em alvejar aqueles mesmos soldados com seu rifle telescópico e 50 outros iguais que disse que seus homens carregavam. Nesse ponto, Matthews foi obviamente pouco crítico. Se tivesse pedido para ver os outros rifles, Fidel teria sido pego numa flagrante mentira. Naquela época, não havia outros e, mesmo depois que os rebeldes obtiveram esse tipo de arma, jamais houve 50. Fidel disse mais: quando a revolução triunfasse, os soldados receberiam US$ 100 por mês, bem mais do que os 72 mensais que ganhavam então. Ele dispunha de dinheiro para bancar todos seus outros planos; como prova, mandou um de seus homens trazer um pacote embrulhado num pano marrom. Dentro havia uma grande pilha de notas de pesos. Matthews estimou que ali deveria haver cerca de US$ 4 mil.
Àquela altura, a friagem da noite já era uma lembrança distante. Eram 9 da manhã e o sol caribenho chamejava. De repente, um bombardeiro passou no céu e o infeliz rebelde de camisa branca foi empurrado para as moitas a fim de não ser visto. O avião do Exército seguiu para elevações mais altas da Sierra, de onde lançou seus explosivos, longe dos acampamentos rebeldes. “Eles bombardeiam todos os dias”, disse Fidel, indicando que a entrevista acabara. Era hora de Matthews voltar para a cidade.
“Você assumiu um risco e tanto ao vir aqui”, disse Fidel, e pela primeira vez reconheceu a missão de Matthews. Se fosse possível definir o momento em que nasceu uma relação pessoal entre os dois, foi aquele. O fato de compartilhar o perigo, assim como haviam partilhado comida e charutos naquela manhã, os uniu em um pacto sem palavras. Matthews já havia demonstrado a disposição de acreditar em Fidel. Suas perguntas durante a entrevista foram diretas e até gentis, desprovidas da intenção de prejudicá-lo ou surpreendê-lo em contradição. Ele não contestou as afirmações de Fidel, nem mesmo aquelas que devem ter parecido improváveis, como a alegação de que suas tropas esfarrapadas haviam vencido muitas batalhas contra o Exército bem equipado de Batista. E agora, no final do encontro, Fidel expressava preocupação pelo bem-estar do americano. Com grande sinceridade, assegurou a Matthews que ele seria devolvido sem problemas: “Temos toda a área coberta e tiraremos você em segurança”.
Antes de partir, Matthews fez um último pedido, o qual mais uma vez os uniria num só lado, movidos pelo mesmo objetivo. Mostrou as folhas dobradas em que fizera as anotações e pediu-lhe que assinasse seu nome nelas. Haveria quem duvidasse, explicou, mas a assinatura autenticaria a entrevista com o líder rebelde que se acreditava estar morto. Pediu também que um dos homens de Fidel os fotografasse juntos, fumando charutos e conversando sobre as raízes da revolução.
Após o fim da entrevista, Javier Pazos conduziu Matthews morro abaixo até uma casa de fazenda onde esperaram o jipe em que cumpririam o resto do trajeto. Matthews foi levado de volta a casa em Manzanillo onde sua mulher Nancie havia passado a noite. Ali tirou as roupas enlameadas, tomou banho e fez a barba, cansado, mas explodindo de expectativa. Comeu alguma coisa antes de ir para Santiago, onde entrevistou três professores da Universidade de Oriente que eram adeptos do Movimento 26 de Julho. Matthews considerava o apoio deles um sinal da popularidade do movimento em círculos de classe média.
Mais tarde, no mesmo dia, Matthews e Nancie tomaram o vôo da tarde para Havana. Embora tivesse sido pressionado a partir em seguida — e a correspondente local do New York Times o incitou a cair fora antes que alguém descobrisse o que ele havia feito —, Matthews insistiu em permanecer na cidade por mais um tempo, a fim de entrevistar líderes estudantis, entre eles José Antonio Echeverría, presidente da Federação dos Estudantes Universitários, um rival em potencial de Fidel que nem sempre estava de acordo com ele. Matthews foi levado ao esconderijo dos estudantes no bairro de El Vedado para um encontro secreto com Echeverría e outros jovens fanáticos dedicados a derrubar Batista. “Estamos acostumados com lutas clandestinas”, disse o estudante de arquitetura de 24 anos, cujos amigos o chamavam de “El Gordo”. “Os estudantes cubanos não têm medo de morrer”, gabou-se. Não demoraria muito para que tivessem a chance de provar isso.
Como Matthews sabia, a entrevista era apenas uma das atividades planejadas por Fidel para aquele dia. Pela primeira vez desde de seu retorno a Cuba, ele havia convocado uma reunião dos líderes nacionais do Movimento 26 de Julho. Pretendia coordenar seus esforços e controlar as facções concorrentes. Um grupo queria dispersar os combatentes em várias frentes nas montanhas e nas cidades. Fidel insistiu que se concentrassem todas as armas e fundos na Sierra. Ele também estava preocupado com grupos de oposição como o dos estudantes de Havana, em maior número e mais poderosos do que o seu, e que disputariam com ele o controle do movimento contra Batista. Fidel pretendia deixar bem claro que somente uma pessoa deveria estar no comando — e essa pessoa era ele.
Depois que Matthews deixou a clareira, Fidel tinha outro assunto importante a resolver antes da reunião com os líderes da resistência nacional. Estava convencido de que o camponês Eutimio Guerra era um traidor que espionava para o Exército de Batista. Nas semanas anteriores, Guerra havia se insinuado no grupo rebelde e, uma noite, Fidel até compartilhara um cobertor com ele. Guerra deitou-se ao lado de Fidel com uma pistola 45 nas mãos. Tudo o que tinha a fazer era puxar o gatilho. Seu alvo estava a centímetros de distância, desguarnecido e totalmente vulnerável. Mas não foi capaz de fazê-lo.
Enquanto Matthews descia a montanha, Fidel mandou vários homens procurar Guerra e trazê-lo para uma clareira perto do local da entrevista. Quando o revistaram, acharam uma pistola, três granadas de mão e uma carta do comandante local do Exército dando-lhe salvo conduto na região. Para completar, Guerra estava usando um par de botas novas do Exército, recompensa pelas informações que dera sobre os rebeldes e símbolo inconfundível de sua traição.
O camponês caiu de joelhos e pediu para ser fuzilado imediatamente. Mas Ciro Frías, um dos homens de Fidel, insistiu que esperassem enquanto o humilhava, lembrando-o de como se beneficiara do convívio com os rebeldes e como os havia traído sem piedade. Guerra, de cabeça baixa, pediu apenas que a revolução cuidasse de seus filhos. O dia havia ficado tempestuoso. Quando um trovão estalou, um dos homens deu-lhe um tiro na cabeça.
Três dias depois da entrevista com Matthews, Fidel escreveu sua primeira mensagem pública desde o desembarque, em dezembro. Conforme planejara, o manifesto coincidiria com a publicação do artigo de Matthews. Nele, delineava rapidamente como, apesar dos boatos espalhados por Batista, seus seguidores não apenas sobreviveram, como se reagruparam numa força de combate efetiva que assustava o Exército. Fidel descreveu as batalhas que haviam vencido e exagerava suas vitórias, pintando o Exército com as piores cores; a certa altura, sugeriu mesmo que os soldados haviam fugido e deixado seus mortos para os abutres. E anunciava: “Pode Batista continuar a esconder do país e de todo o mundo o que está acontecendo aqui? A entrevista que demos no coração da Sierra ao correspondente do New York Times será publicada com fotografias a qualquer momento”.
A censura de Batista manteve o manifesto fora dos jornais e das rádios e poucos cubanos tomaram conhecimento de sua existência. Mas dentro de poucos dias, eles saberiam muito mais.