ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
O homem que virou carta
Duzentas mil milhas atrás da catacumba submersa
Paula Scarpin | Edição 42, Março 2010
Depois de três meses de reflexão e muitos debates com Fernanda, sua mulher, Willy Edel decidiu reunir a família para comunicar a novidade não muito palatável. Aos 27 anos, filho dos sonhos de nove entre dez famílias, ele vinha sendo promovido rapidamente na Shell e conciliava o emprego com dois mestrados concomitantes, em estatística e em engenharia de produção. Achou melhor ser direto: “Pai, mãe: recebi uma proposta de patrocínio para ser jogador profissional de Magic e vou aceitar.”
O pai, que já comemorara bodas de prata como funcionário da Petrobras, temeu pelo pior e perguntou o que isso queria dizer. “Só que eu vou trancar as faculdades e pedir demissão”, ouviu. Para os desinformados, Magic é um jogo de cartas, e o pai tinha culpa nesse cartório. Durante a adolescência do filho, recompensara a aplicação nos estudos com pacotinhos de Magic comprados com regularidade em bancas de jornal.
Antes que o homem começasse a amaldiçoar em voz alta o fiasco do seu programa de incentivos, Willy se apressou em informar: “Eles me garantem o mesmo salário e bancam todos os gastos nos campeonatos, além do dinheiro dos prêmios.” A conta era promissora. Mesmo dando duro na Shell, Willy conseguira participar de alguns campeonatos internacionais e, nos seis meses anteriores, acumulara o equivalente a quatro anos de trabalho. “E é só por um tempo, depois ele volta fácil pro mercado de trabalho”, explicou Fernanda, pondo panos quentes.
O jogo Magic – The Gathering foi criado em 1993 por um professor de matemática americano, Richard Garfield. Cada jogador começa com vinte pontos de vida e persegue o objetivo de destruir o adversário retirando-lhe os pontos e a vida. Isso é o básico. O resto tem mais subenredos do que Guerra e Paz. Os elementos do jogo parecem saídos de Avatar via Paulo Coelho. Jogadores são entidades de “pura energia”, “andarilhos” nos vários planos da vida. Fala-se em feiticeiros, vampiros e cabala. É esoterismo para Castañeda nenhum botar defeito.
O gênio de Garfield foi ter criado um baralho com cerca de 10 mil cartas – até a última contagem, pois elas continuam a ser inventadas –, todas com o poder de deixar salivando qualquer adolescente curtido em videogames. O apreciador seleciona sessenta cartas com as quais enfrentará o inimigo. Nelas haverá criaturas como o Dragão Vulcânico ou o Guerreiro Ogro e lugares como a Catacumba Submersa ou o Castelo de Gárgula, a par de encantamentos com nomes vagamente científicos, como Linha de Força da Singularidade, ou mais prosaicos, como Manto Mofado, um castigo que não soa particularmente ameaçador, salvo para o eventual adolescente que sofra de coriza.
São 6 milhões de jogadores espalhados por mais de setenta países, e Willy é um dos mais bem-sucedidos. Ele se diz um competidor contumaz: “Quando fui prestar vestibular, além de estatística, que era o que eu realmente queria, prestei também para direito, só para competir com a minha namorada na época. Eu passei e ela não. O namoro acabou ali.” O Magic era apenas mais uma das arenas em que se punha à prova. Durante férias na Shell, soube que fora convidado para um mundial nos Estados Unidos. Conquistou o segundo lugar. Na volta, decidiu parcelar o resto das férias para participar dos mundiais seguintes. Seu chefe topou.
Foi um pulo até a glória. Quando viu, estava autografando cartas em lojas dos Estados Unidos. Como as finais são transmitidas pela ESPN, seu rosto já era conhecido dos aficionados. Na volta de um campeonato em Kobe, no Japão, uma comissária de bordo veio avisar que um passageiro pré-adolescente queria tirar uma foto com ele. Para um segmento particular da população, ser Willy começava a ser mais bacana do que ser Ben Stiller. A empresa proprietária do jogo estava atenta.
Willy não fez feio. Em pouco tempo, alcançou o píncaro mais elevado a que um jogador de Magic pode aspirar: tornou-se uma carta. Não tem função estratégica, é apenas comemorativa, mas ali está ele, sorrindo timidamente para o mundo. É como se homenageassem Warren Buffett estampando seu rosto no tabuleiro do Banco Imobiliário (aliás, do mesmo fabricante do Magic, a gigante Hasbro).
Willy ganhou o suficiente para comprar uma casa e um carro. Nas suas andanças pelo mundo, acumulou cerca de 200 mil milhas aéreas, mais ou menos a distância entre o Rio Comprido, onde mora, no Rio de Janeiro, e a lua. Fernanda, que nem sempre podia acompanhá-lo, começou a achar menos graça na história.
Era hora de aproveitar a fama para sair no topo. Não renovou o contrato de patrocínio, abriu uma consultoria de jogos e uma loja on-line de cartas de Magic e hoje vive confortavelmente dos seus negócios. Ainda se permite a média saudável de 30 horas de Magic on-line por semana, durante as quais divide em quatro telas o seu monitor de 27 polegadas, para se distrair com quatro jogos simultâneos.
Willy está com 30 anos. Seu plano é se aposentar aos 35, objetivo mais comum do que se imagina nesse métier. “O sonho de vários amigos meus que vivem de jogos como Magic e pôquer é parar antes dos 40.” Parar e aí, finalmente, ter tempo de jogar só pela beleza do jogo.
Leia Mais