ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
O incidente tucano
Paulo Preto leva um susto
Daniela Pinheiro | Edição 88, Janeiro 2014
Recentemente, o engenheiro Paulo Vieira de Souza temeu voltar às manchetes do noticiário. “Foi por pouco, foi por pouco”, confidenciou em fins de dezembro, durante um almoço em São Paulo. Ex-diretor de Engenharia da empresa Desenvolvimento Rodoviário Sociedade Anônima, a Dersa, ele tocou as maiores obras viárias dos últimos governos tucanos no estado. Coisa de 11 bilhões de reais. Por baixo.
Com Paulo Preto, como é conhecido, não há tédio. Na última eleição presidencial, foi parar na boca de Dilma Rousseff, que o usou para atacar o adversário José Serra (“Explique seu assessor Paulo Vieira de Souza, que fugiu com 4 milhões de reais da sua campanha!”). Não foram poucas as noites de sono perdidas pela cúpula do PSDB nos dias que antecederam o seu depoimento na CPI que apurou as ligações da construtora Delta, de Fernando Cavendish, com o bicheiro Carlinhos Cachoeira (a Delta tinha contratos com o governo paulista para a construção de trechos do Rodoanel). Em outra ocasião, acabou preso dentro de uma loja da Gucci quando tentava avaliar uma pulseira roubada (passou três dias no xadrez e foi posteriormente inocentado).
Por acaso o seu mais recente contratempo estaria ligado ao caso Siemens-Alstom? “Não, nada disso”, respondeu, com certo desdém “Esse caso é uma besteirada. Cartel existe desde dom João VI.” Recorria à história para pôr em contexto a denúncia de formação de cartel nas obras, e na aquisição de trens, do sistema de transporte sobre trilhos de São Paulo. A propina paga ao governo estadual seria usada para abastecer o caixa dois do tucanato paulista.
Paulo Souza, diretor do metrô paulista nos anos 90, estava zen, ainda que um dos alvos da denúncia seja seu amigo fraterno e padrinho político Aloysio Nunes Ferreira Filho, líder do PSDB no Senado, para quem faz até o imposto de renda. “Quero ver isso ir pra frente. O Aloysio é pobre, igual a um monte de tucano que tem por aí: gente que não quer andar de classe econômica, que gosta de tomar vinho bom e de ficar em hotel chique. E só. Não tem dinheiro guardado, mora num apartamento velho de Higienópolis”, explicou. “O que não significa que muito tucano não tenha ficado rico no governo. Muito rico.”
Como nada disso dizia respeito ao fato que o atormentara recentemente, Paulo Souza apressou-se em repor a conversa nos trilhos: “Eu estou falando de coisa mais séria. Quase fui capa de revista mesmo”, pronunciou, grave. Não faz muito tempo, voltava com sua mulher do aniversário de um amigo. Como é triatleta e treina para provas de ironman, praticamente não bebe. Havia tomado três dedos de cerveja num copo de vinho para agradar o anfitrião. Quando a BMW Z4 blindada contornava uma rotatória a duas quadras de sua casa, um policial pediu que o veículo parasse no acostamento. Documentos do carro e habilitação, por favor. O engenheiro tremeu. “Não tinha nem uma coisa nem outra”, contou, a voz ainda trêmula.
Desceu do carro com o firme propósito de vencer na lábia. Tentou vender o peixe de que seu motorista perdera os documentos, mas que tudo estava nos conformes. Em vão. O policial apontou para a barraquinha dos bafômetros. “Aí eu desesperei”, lembrou-se. Foi quando sacou o celular e passou a exibir os vários nomes de autoridades armazenados na lista de contatos. Sem mexer um músculo, o guarda não se comoveu.
Paulo Souza tomou o telefone e avisou que ia verificar com o motorista o paradeiro da maldita carteira de habilitação. Na verdade, ligou para o advogado Daniel Bialski, com quem simulou uma conversa – o advogado entendeu o código. Na outra ponta da linha, ouviu a recomendação explícita: “Não sopre o bafômetro em hipótese nenhuma. Você não pode ir para a delegacia.”
O jeito foi jogar todas as fichas na mesa. Disse que era dirigente do Corinthians, mostrou o relógio de aço da marca Hublot, edição limitada, com o símbolo do timão, “presente do [ex-] presidente do clube, Andrés Sanchez, só eu e o presidente Lula temos um igual”. Debalde. Era resistente, o policial.
Paulo Souza pediu licença, abriu a porta traseira do carro e retirou uma papelada do banco. “Você reconhece esse homem? Parece comigo?”, perguntou, exibindo a edição 73 de piauí, na qual foi retratado num perfil. Dali passou à revista Poder, da jornalista Joyce Pascowitch. “Eu sou conhecido, tá vendo? Eu não posso ir preso, cê num tá entendendo!”, suplicou. Necas. Admitindo a hipótese de que o representante da lei talvez não fosse leitor, depositou as esperanças no audiovisual. Pescou do carro uma das 300 cópias do DVD de seu depoimento à CPI que mantém à mão exatamente para esse tipo de eventualidade. “Lembra desse dia?”, indagou. “Era eu esse daí!” Tudo inútil.
Com a dignidade aos frangalhos, jogou-se no chão e passou a fazer flexões no asfalto. Contou dez em voz alta. Moto contínuo, como um saci hiperativo, passou a pular num só pé, prova candente de que estava sóbrio.
“Desculpa, senhor, mas não posso prevaricar. O senhor vai para a delegacia”, ouviu do sargento que comandava a operação. Transtornado, Souza entrou no camburão. “Nunca fiquei tão nervoso em toda a minha vida. Foi pior do que a CPI, do que ouvir na televisão de que sumi com dinheiro, pior do que o dia em que fui preso na Gucci”, contou. “Já estava vendo as manchetes, a televisão, eu de novo na mídia, tudo aquilo mais uma vez”, relembrou com voz trêmula de protagonista em cena final de ópera trágica.
Já estava a caminho do xilindró quando a viatura recebeu uma chamada, deu meia-volta e retornou à blitz da Lei Seca. O sargento o chamou num canto. Disse que tinha gostado dele porque não tentara suborná-lo, que também era corintiano e que se lembrava do depoimento à CPI. Havia calor humano ali, compreensão. Trocaram telefones. Paulo Souza fez o policial prometer que, caso precisasse de qualquer coisa neste universo, o chamaria imediatamente. Ouviu em resposta: “O senhor nunca me viu na vida.”
“Esse negócio de CPI teve um lado muito bom”, comentou o engenheiro, a poucas garfadas de bater o prato de macarrão. “Eu fiquei famoso mesmo.” Tão famoso que desconhecidos passaram a pagar suas contas em restaurantes, sobretudo no bairro do Itaim, onde é presença assídua. “Quando vejo, já pagaram. Eu fico procurando quem é, mas o garçom nunca me fala.” Passou também a ser reconhecido alhures, como no caso de uma consulta no Hospital Sírio-Libanês. “O médico disse que me conhecia. Eu fiquei meio assim e perguntei: ‘Mas de qual episódio?’”