Gil Rugai, que já cumpriu treze anos de sua sentença: ele considera que aprendeu a dar “mais valor às pessoas” e que, antes da experiência do cárcere, era um rapaz “muito mimado” CRÉDITO: MIAUMIAUWILDEKATZE_2022
O influencer do Tremembé
Como a prisão mudou Gil Rugai, condenado por matar o pai e a madrasta
João Batista Jr. | Edição 187, Abril 2022
Conversa vai, conversa vem, o martelo foi finalmente batido: a próxima peça a ser encenada no presídio será Peter Pan e o Capitão Gancho Talkey. Baseada nos personagens criados pelo dramaturgo escocês J. M. Barrie, a adaptação mostrará um Peter Pan que se recusa a crescer e vive em confronto com o vilão Capitão Gancho Talkey, que é negacionista, mas tão negacionista, que nega até a felicidade alheia, empenhando-se para que todas as crianças sejam eternamente tristes. Uma das missões de Peter Pan e sua amiga Wendy é localizar as guloseimas que o capitão esconde das crianças. A estreia da peça ocorrerá no dia 26 de junho e seu público será composto basicamente pelos familiares dos detentos da Penitenciária Doutor José Augusto César Salgado, conhecida por Tremembé II, localizada no interior de São Paulo.
As alusões à realidade brasileira estão por toda a peça. Os chocolates escondidos são as vacinas infantis contra o coronavírus, e todo mundo sabe quem é o capitão do enredo, mas tudo precisa ser alegre, bem-humorado. “Devido à polarização entre Bolsonaro e Lula, assim como lá fora, aqui também a política é uma questão complexa de abordar”, diz Gil Rugai, de 39 anos, diretor, cenógrafo e figurinista da peça, aparentemente alheio às evidentes críticas políticas da adaptação. “Pensa assim: a pessoa passa semanas, até meses por causa da pandemia, sem ver a mulher e os filhos. Então, quando eles estão aqui, temos que propor algo convidativo, não pode ser um assunto pesado.”
Gil Grego Rugai vive no presídio do Tremembé, onde cumpre pena de 33 anos, 6 meses e 25 dias por matar com nove tiros seu próprio pai, o publicitário Luiz Carlos Rugai, e sua madrasta, Alessandra de Fátima Troitiño, na noite de 28 de março de 2004. Foi um “crime de mídia”, como o jargão da cadeia chama os crimes que atraem a atenção da imprensa e ganham manchetes sucessivas. Com o duplo assassinato, Rugai tornou-se uma celebridade do noticiário policial: tinha 20 anos, era filho de classe média alta, estudara três anos de teologia e começara o curso universitário de letras. Falava inglês, espanhol e conhecia o grego clássico. Era cordial, mirava o interlocutor nos olhos, e se explicava com calma e clareza. Nunca caiu em contradição na sua versão – mantida até hoje – de que é inocente.
Antes da prisão, Rugai era, sobretudo, um jovem taciturno. Vestia-se quase sempre de terno e um sobretudo preto, nunca ia a baladas ou barzinhos, tinha pouquíssimos amigos e orgulhava-se do seu celibato voluntário. Em uma entrevista recente com o psicólogo do presídio, que o examinava para avaliar se ele tinha condições de deixar o regime fechado de prisão, Rugai, ele mesmo, sublinhou seu deslocamento social, conforme consta no relatório psicológico: “Se tinha pessoas se divertindo na piscina, eu ficava de terno, perto de todos.” Desde novembro passado, quando cumpriu um terço da pena, ele ganhou direito ao regime semiaberto, no qual pode trabalhar ou estudar fora da prisão, voltando apenas para dormir. O benefício, porém, está suspenso devido à pandemia e só será retomado no segundo semestre deste ano.
Em seus treze anos de Tremembé, Rugai ficou mais rechonchudo, perdeu um pouco de cabelo, mas mantém os mesmos modos, a fala cordial e diplomática, medindo bem as palavras. Ele diz que também continua cultivando os mesmos valores – “a família, a religião e os estudos” –, mas, paradoxalmente, foi a experiência em uma prisão que o tornou mais comunicativo e lhe ensinou a trabalhar em grupo. Rugai acabou virando o que sua personalidade soturna não sugeria: é um agitador cultural da prisão. “Ele é um verdadeiro influencer”, diz Adriana Campos, diretora do Cras, a unidade que cuida da reintegração e da saúde dos presos de Tremembé, que trabalha há dezesseis anos na prisão. “Ele motiva as pessoas, atrai gente para o teatro, para cursos, leituras.”
Peter Pan e o Capitão Gancho Talkey será a primeira montagem teatral da prisão de Tremembé desde o início da pandemia. Com a liberdade de circular pelo presídio, pois as celas dos presos em semiaberto não ficam fechadas, Rugai terá a missão de colocar a peça de pé, organizando agenda de ensaios e levando as demandas à direção do presídio. Com uma letra miúda e impecável, ele guarda toda a papelada da peça numa pasta: roteiro, nome dos atores, número no sistema prisional, cronograma para confecção de cenários e figurinos. “Os atores têm liberdade para criar e improvisar. As piadas com assuntos do cotidiano são de autoria deles”, disse Rugai, numa tarde de janeiro, quando conversou com a piauí, na primeira entrevista que deu na prisão. Rugai usava o uniforme dos presos – camisa branca de algodão, calça de sarja cáqui –, e a conversa foi acompanhada por três funcionários da penitenciária.
Em setembro de 2008, quando pisou em Tremembé pela primeira vez, Gil Rugai, como ex-seminarista, interessou-se por aquilo que já conhecia. “De imediato, eu quis trabalhar com a Pastoral Carcerária”, diz. Suas atribuições eram rezar, administrar a Palavra e dar conselhos e conforto aos colegas por meio da Bíblia. Como não havia a presença regular de um padre rezando a missa na prisão, Rugai mandou uma carta à Diocese de Taubaté, que atende a região da prisão, e apresentou sua demanda. O pedido foi acatado. Um padre passou a rezar missas semanais. Rugai tornou-se seu acólito, termo eclesiástico que designa o sacerdote que auxilia os atos litúrgicos.
Enquanto fazia o trabalho religioso, Rugai recebeu um convite de Adriana Campos, a diretora do Cras. “O Gil é participativo e inteligente, e vi que por aqui faltava um grupo de teatro. Perguntei então se ele não topava assumir a missão”, lembra Campos. Rugai aceitou. “Expliquei à doutora Adriana que minha experiência com teatro era apenas como espectador e que, devido à minha timidez, eu poderia fazer tudo, exceto atuar. Ela topou mesmo assim.”
Antes da pandemia, os presos de Tremembé faziam umas cinco peças por ano. Os materiais usados para fazer os cenários e figurinos eram doados pelos familiares dos detentos. Maristela Rodrigues Grego, mãe de Rugai, é a maior entusiasta dos projetos culturais na prisão e uma doadora constante de tecidos, aviamentos, cartolinas. “A mamãe colabora bastante”, diz Rugai. Ela, que mora em São Paulo, o visita todos os fins de semana, muitas vezes acompanhada de um de seus dois outros filhos. (Rugai tem um irmão por parte de pai e mãe, e outro por parte apenas de mãe; tem bom relacionamento com ambos.)
A primeira peça sob o comando de Rugai, apresentada em dezembro de 2008, abordou um tema religioso. Chamava-se Presépio que, como o nome sugere, contava a história do nascimento de Jesus. Depois, vieram outras seis encenações de parábolas religiosas, três comédias e seis fábulas infantis, além de algumas adaptações, entre elas a do clássico A Megera Domada, de William Shakespeare, na qual fez sua única atuação como ator – uma ponta, no papel de Batista, o pai da protagonista Catarina. “Quem interpretaria o pai da megera teve um imprevisto, e eu tinha toda a fala de cor em minha cabeça. Fiz o papel, mas foi vergonhoso.”
Além do teatro, Rugai dá aulas de inglês e português para os presos, faz oficinas de origami (cujos materiais também são doados por sua mãe) e criou o Café Literário, que faz debates sobre literatura e seleciona textos, de autoria dos próprios presos, para serem impressos em um fanzine mensal cujas duzentas cópias são distribuídas em todas as celas. “Posso garantir que a minha vida foi transformada pela leitura”, diz Marcos Rocha da Silva, de 41 anos, um ex-guarda municipal que cumpre pena de 32 anos por duplo homicídio. Ele também participou da criação do Café Literário. “Ler não é fuga. Eu não esqueço que estou aqui dentro, até porque sofreria sanções severas se o fizesse. Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo, eu amplifico meus horizontes e consigo um diálogo com autores e personagens. E somos amigos, eu não fujo”, diz ele. Seu filho Francisco, de 16 anos, é quem faz as ilustrações publicadas no fanzine mensal. O jovem entrega os desenhos ao pai nas visitas de terça-feira à tarde. Quando a piauí visitou o presídio de Tremembé, em janeiro passado, Rocha estava lendo Torto Arado, o premiado romance de Itamar Vieira Junior. “Sinto que estou conversando com as irmãs Bibiana e Belonísia”, disse, referindo-se às protagonistas do romance.
Com o tempo, Rugai também começou a ajudar na renovação da biblioteca da prisão. O próprio Marcos Rocha hoje passa parte de seus fins de semana pedindo doações. “Escrevo para editoras de livros e organizações sociais, como a SP Leituras. Muitos atendem aos pedidos”, diz ele. O acervo quase duplicou. Hoje, tem 6 184 volumes. Com pé-direito de 4 metros, boa entrada de luz natural e chão de cerâmica vermelha, as dez estantes abrigam desde clássicos da literatura nacional, de autores como Machado de Assis, Jorge Amado e Graciliano Ramos, até lançamentos mais atuais, como o próprio Torto Arado. Numa prateleira, há edições mais raras, guardadas em caixas de madeira, que só podem ser manuseadas com luvas, como um exemplar de Os Miseráveis, de Victor Hugo, impresso em 1959, um Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, de 1954, e Contos, de Eça de Queirós, de 1938. Todos os meses, a biblioteca empresta 215 livros aos atuais 337 presos em regime fechado. Cada livro lido e resenhado – no limite de doze por ano – reduz quatro dias na pena do preso.
Durante a pandemia, obrigado a ficar na cela e abandonar as atividades culturais, Rugai começou a estudar russo. “Um preso deixou de presente um livro inicial de curso de russo, comecei a ler e gostei bastante”, conta ele, enquanto exibe seu caderno cheio de anotações no alfabeto cirílico. “A sutileza, a poesia. O russo é uma língua muito bonita.” Nos dois anos de pandemia, Rugai recebeu de sua mãe outros livros didáticos de russo. No feriado de Natal, em que teve direito a sair, aproveitou para treinar pronúncia pelo computador de casa com acesso à internet. “Mas meu objetivo é aprender a ler e escrever, não a falar.” Além de russo, Rugai aprendeu francês na prisão. No segundo semestre deste ano, quando poderá sair do presídio das 17h30 às 23h30, pretende prestar vestibular para arquitetura em alguma faculdade da região.
A penitenciária de Tremembé é uma exceção no sistema prisional brasileiro. Não é controlada pelo crime organizado – boa parte dos presídios paulistas é dominada pelo Primeiro Comando da Capital, o PCC –, suas celas variam de 8 a 15 m2, seus presos são tratados pelo nome e não existe superlotação. Os prédios abrigam 467 detentos, mas têm vaga para 608. No meio penitenciário, a prisão tem dois apelidos: Presídio de Caras, por receber autores de “crimes de mídia” e outros famosos, e Cadeia Cinco Estrelas, dadas as boas condições que oferece, em oposição à enorme precariedade da maioria das prisões do país. Por lá, passaram o banqueiro Edemar Cid Ferreira, o jornalista Pimenta Neves e o publicitário Marcos Valério.
Alojado no pavilhão que recebe os autores de “crimes de mídia”, Rugai dividia cela com Guilherme Longo, preso preventivamente sob acusação de aplicar uma injeção letal de insulina no enteado de 3 anos e jogar o corpo em um rio. Agora, no semiaberto, Rugai fica em outra ala. “Tem pessoas que chegam aqui, escutam meu nome e sobrenome e fazem uma bagunça. Já perguntaram se eu era o namorado da Suzane von Richthofen”, diz Rugai, referindo-se à jovem que planejou a execução dos pais e cumpre pena no presídio feminino de Tremembé. Em outro pavilhão, concentram-se os presos que são ex-funcionários públicos, ex-policiais militares ou seus familiares, como é o caso do ex-guarda municipal Marco Rocha.
Maristela Rodrigues Grego e Luiz Carlos Rugai se separaram quando Gil tinha 3 anos. Ele continuou morando com a mãe, mas quando fez 12 anos decidiu se mudar para a casa do pai, já então casado com a segunda mulher, Alessandra de Fátima Troitiño. Aos 14 anos, começou a dar expediente na produtora de vídeos do pai, a Referência Filmes, que produzia peças publicitárias para clientes como Danone e Lojas Marabraz. Primeiro como ajudante geral, depois como office-boy. Em paralelo, levado à igreja pela avó paterna, começou a sonhar com a vida religiosa.
Aos 18 anos, aprovado nos vestibulares para direito e teologia, escolheu a segunda opção. Assim que começou a frequentar a Escola Dominicana de Teologia, assumiu o posto de administrador da empresa do pai. Enquanto isso, fez cursos livres e aleatórios, como mergulho em alto-mar, tiro e costura. Pai e filho tinham suas desavenças por questões de trabalho. Rugai recorda que por mais de vinte vezes foi demitido à noite e readmitido na manhã seguinte. Certa vez, sem informar ao pai, ele abriu uma empresa cujo objetivo era fazer anúncios para a mídia impressa, enquanto a Referência Filmes focava em publicidade para a tevê. Houve novo desentendimento. A gota d’água, segundo a acusação, ocorreu quando o pai descobriu que o filho dera um desfalque de 280 mil reais, em valores de hoje, mas as investigações nunca comprovaram o desvio.
Na noite em que o casal foi assassinado – a madrasta foi abatida com cinco tiros ao lado da entrada da sala principal, o pai recebeu quatro tiros na sala de tevê, onde tentou se refugiar –, Gil Rugai dormiu na casa da mãe. O vigia da rua, Domingos Ramos, informou à polícia que não vira nada de anormal naquela noite, mas, num segundo depoimento, mudou sua versão. Disse que um homem “de capa de chuva caramelo e suspensórios” saiu da casa, na companhia de outra pessoa – cuja identidade nunca foi descoberta.
Na condição de principal suspeito, Rugai começou a aparecer em todos os telejornais. Em 6 de abril, nove dias depois do crime, foi preso quando se apresentou à polícia para prestar depoimento. Além de outros indícios, um laudo do Instituto de Criminalística havia concluído que a marca de sola de sapato que aparecia na porta arrombada combinava com a sua, e um exame de ressonância magnética mostrou que Rugai tinha lesões no pé compatíveis com a de alguém que tivesse chutado uma porta.
Começaria então um entra e sai na prisão. No dia 25 de junho de 2005, mais de um ano depois do crime, a polícia encontrou uma pistola calibre .380 na caixa externa de contenção de esgoto do prédio onde Rugai tinha uma sala comercial, no bairro dos Jardins. A polícia concluiu que se tratava da arma do crime. Quase um ano depois, em abril de 2006, Rugai conseguiu um habeas corpus para aguardar o julgamento em liberdade. Nesse período, terminou o curso de letras, mas não entregou a tese de conclusão, cujo tema era a obra de José Saramago. No mesmo período, abriu uma camisaria chamada Elgrego, encerrada logo depois.
Em setembro de 2008, a Justiça revogou o habeas corpus que lhe garantia responder em liberdade, e Rugai foi parar em Tremembé. Houve mais um entra e sai até que, em fevereiro de 2013, nove anos depois do crime, ainda sob forte atenção da mídia, o júri popular o condenou a 33 anos de prisão por um placar apertado: 4 a 3. Três anos depois, em fevereiro de 2016, Rugai entrou em Tremembé, onde está até hoje. O advogado Thiago Anastácio, que cuida da defesa de Rugai, aponta incongruências nas investigações e, apesar da condenação, continua sustentando a inocência do réu. Alega, com base num laudo elaborado por um perito contratado pela defesa, que o vigia de rua, cuja guarita ficava a 100 metros da casa do crime, tinha sua visão bloqueada por árvores e não conseguiria distinguir alguém deixando a residência na parca iluminação noturna. Que a arma do crime foi encontrada meses depois que a tubulação do prédio passara por uma limpeza, sem que nada tivesse sido achado então. Que Rugai estava em seu escritório na hora dos disparos e depois foi jantar com uma amiga. “Aceitou-se a mentira e se concordou com a tese de que um homem pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Destruiu-se uma vida em prol da sensação de justiça”, diz Anastácio.
Os familiares de Luiz Carlos Rugai, que morreu aos 40 anos, e de Alessandra Troitiño, que era sete anos mais jovem, não comentam o crime. “A família de Alessandra nunca deu entrevista. Todos ficaram muito revoltados, ainda mais porque o crime foi cometido pelo enteado”, diz o advogado da família, Ubirajara Mangini Kuhn Pereira. O delegado do caso, Rodolpho Chiarelli Jr., que lembra do crime como a investigação mais rumorosa que fez em sua carreira, continua convicto da culpa de Rugai. “Vou morrer dizendo que o Gil é o autor do crime. Se tirar o Gil da cena do crime, não tem outro autor. Todos os caminhos levam até ele, tanto que o Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal entenderam da mesma forma”, diz. “O Gil é tão frio que, em uma das suas idas e vindas da prisão, quando eu cheguei ao escritório dele para levá-lo para a detenção, ele chegou a me oferecer um cafezinho.”
Para ter direito ao semiaberto, todo preso passa por exames e avaliações psicossociais. A piauí teve acesso às avaliações de Rugai, ocorridas entre agosto e setembro do ano passado. O laudo da assistente social Niégida Lopes informa que Rugai admitiu que, durante o tempo de reclusão, aprendeu “a dar mais valor às pessoas”, pois antes era “muito mimado”. Em sua avaliação, a psicóloga Karina Prates da Fonseca relata todas as atividades culturais lideradas por Rugai e, com base nelas, conclui: “Se o objetivo é observar as práticas e comportamento pós-delito e no cumprimento da pena, percebe-se um amadurecimento emocional e psicológico deste sentenciado denotando a estruturação da sua personalidade a partir da terapêutica penal.”
Em três páginas, o laudo do psiquiatra Leandro C. S. Gavinier foi o último a sair, em 27 de setembro do ano passado. Ali, o profissional atesta que Rugai tem “transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva”, conhecido pela sigla TPOC*. Os portadores desse distúrbio são excessivamente organizados e costumam ter um comportamento rígido, perfeccionista. Em geral, não é uma doença capaz de trazer grandes perturbações à vida cotidiana. Tanto Gavinier quanto a assistente social e a psicóloga concordaram que o detento estava pronto para deixar o regime fechado e ir para o regime semiaberto.
Em Tremembé, o dia amanhece às 5h45, quando se faz a contagem dos presos. Nesse momento, Gil Rugai faz sua primeira oração do dia, chamada de matina. Ele reza três vezes ao dia. No processo de avaliações, ele contou que, logo depois do crime, rompeu com Deus por dois meses, mas reconciliou-se com sua fé e retomou o hábito de rezar. Depois da reza matinal, Rugai toma o café da manhã, que vai das 6 às 7 horas. O almoço é servido entre 11h30 e meio-dia. O jantar, das 17 às 18 horas. Nos intervalos, ele se ocupa em manter em dia a faxina de duas salas, onde ocorrem os encontros e debates, e desdobra-se nas atividades culturais. Como preso do regime semiaberto, tem direito a assistir tevê quando quiser. Interessa-se pelo noticiário e programas da TV Cultura, como Roda Viva e Linhas Cruzadas. Costuma dormir cedo. Em média, lê uns cinquenta livros por ano, que, depois, vão para o acervo da biblioteca.
Além de livros e revistas, a cela de Rugai tem um bom arsenal de doces, seu fraco. Ele recebe todas as semanas um Sedex enviado por sua mãe, com livros, revistas e comida. O limite semanal é de 500 gramas de bolacha, 500 gramas de bala, 300 gramas de barras de chocolate e 2 bolos tipo Pullman. Na televisão, ele gosta de assistir a telejornais. Quando passa futebol, se concentra na leitura de seus livros. Vive sob a expectativa de ter autorização para deixar a prisão em meados de 2024, salvo mudanças imprevistas. No primeiro dia de todos os anos, faz seu planejamento anual num caderno Moleskine sem pauta. Ele rabisca as linhas e, na primeira página, anota os títulos dos livros que lerá durante o ano. Rugai nunca namorou, nem recebeu visita íntima nos treze anos de reclusão.
* Na versão impressa desta reportagem, publicamos que Gil Rugai sofria de TOC, quando o correto é TPOC, como foi corrigido.