Quis criar uma caixa que obrigasse o comprador a usar uma faca, assim ele poderia decepar a mão FOTO: © ELLIOTT ERWITT_MAGNUM PHOTOS
O inventor da caixinha de CD chega ao inferno
As portas flamejantes do Inferno se abriram de par em par e o inventor da embalagem do CD se integrou à diabólica fanfarronada
Steve Martin | Edição 4, Janeiro 2007
As portas flamejantes do Inferno se abriram de par em par e o inventor da embalagem do CD se integrou à diabólica fanfarronada.
– Queríamos que tivesse vindo antes – comentou o Puro Mal Encarnado com seus lacaios demoníacos –, mas decidimos adiar um pouco. Afinal, ele estava fazendo um bom trabalho lá em cima. Empenhou-se com afinco em embrulhar os CDs com celofane e com aquela fita pegajosa que não desgruda de jeito nenhum. Chamem-no para o jantar. E não se esqueçam de convidar também o pessoal dos manuais de computador.
O Diabo desapareceu no ar, perdendo assim a calorosa demonstração de afeto oferecida ao inventor.
– O próprio Belzebu tirou uma lasquinha de pele do polegar quando foi abrir uma coletânea da Barbra Streisand – cochichou um diabrete. Uma serpente grossa rastejou para perto e se aninhou em torno da perna do inventor.
– Antes, ele adorava a turma do controle remoto e aqueles minúsculos botõezinhos espremidos um contra o outro – disse a cobra. – E, ainda por cima, com todas aquelas abreviações enigmáticas. Mas agora ele só fala em você, porque você isso, você aquilo… Bem, mas vamos indo, está na hora de se arrumar para o jantar. Podemos conversar mais tarde sobre as suas atribuições.
Enquanto indicava o caminho para os alojamentos satânicos, a serpente lançou- lhe um olhar ávido e inquiridor.
– Como conseguiu? – perguntou ela, fixando-o cara a cara. – Quer dizer, como é que inventou a embalagem? Todo mundo quer saber!
O inventor, sentindo o conforto dos pés em brasa e lisonjeado pelo reconhecimento, relaxou imediatamente.
– A maldita caixinha original do CD era um troço fácil demais de abrir – explicou. – Porque cá entre nós… Se for para dificultar o acesso do consumidor, pelo amor de Deus, vamos fazer a coisa direito! O que eu quis foi criar uma embalagem que obrigasse o comprador a ir na cozinha buscar uma faca, porque assim pelo menos teríamos uma chance de ele decepar a própria mão.
– Foi aí que surgiu a idéia daquele plástico do tipo termoencolhível? – perguntou a serpente.
– O plástico termoencolhível funcionou durante um tempo. Eu adorava a idéia de que não havia ali nem uma brechinha para ninguém enfiar a unha e rasgar, mas eu sabia que podia ir mais longe. Foi aí que descobri o celofane. O celofane e a fita que dá a ilusão perfeita de que existe, sim, um caminho para abrir a embalagem, só que na verdade nem a própria fita existe.
Naquela noite, no jantar comemorativo realizado a cada éon para homenagear os recém-chegados, o inventor da caixinha de CD sentou-se à direita do Diabo. À esquerda, sentou-se Cérbero, o cão de guarda do Hades e notório criador do abacaxi. O Diabo papeou a noite toda com o inventor e, a certa altura, pediu-lhe que abrisse outra garrafa de vinho, desta vez com um saca-rolhas de lâminas paralelas, aquele dispositivo semelhante a uma pinça, dotado de duas hastes finas e perfurantes que têm porque têm que entrar entre as paredes da garrafa e a rolha, sem machucá-la. O inventor suou, mas uma hora depois a rolha estava separada de sua garrafa.
A princípio, ninguém notou o ruído abafado que vinha de cima, e que logo se tornou um clamor incontido. Pouco a pouco, os comensais começaram a olhar para o teto e, por fim, o próprio Diabo percebeu que a atenção de seus convidados fora desviada. Ele ergueu os olhos.
Três anjos planavam no éter, cada qual segurando um objeto. O inventor sabia exatamente que objetos eram aqueles: a caixa de leite, o saco zip e a banana – três embalagens de desenho impecável. Lembrou que costumava admirá-las antes de sucumbir ao mal. Os três anjos deslizaram em direção ao parlatório. Um deles ergueu o saco zip sobre os asseclas do frasco de aspirina e lhes deu um banho de luz sobrenatural. O brilho amarelo da banana inundou o peçonhento Cérbero, projetista do abacaxi, e a caixa de leite derramou sua branca luminosidade em cima do inventor da embalagem do CD. O Diabo, nessa hora, se levantou abruptamente, urrou qualquer coisa em latim enquanto súcubos lhe escorriam da boca, desculpou-se a si mesmo e se retirou, irritado.
Depois do fiasco, o inventor voltou a seus aposentos e se ocupou com os cinco controles remotos necessários para operar o aparelho de DVD. Frustrado, fechou os olhos e contemplou a perspectiva da eternidade no vazio do Inferno, percebendo que provavelmente nunca mais veria um floco de neve ou um Chicabon. Em seguida, porém, pensando naquele belo jantar e em seus novos amigos, decidiu que flocos de neve e Chicabons não tinham tanta importância assim. Imaginou que, afinal de contas, a eternidade poderia não ser tão ruim. Aí ele ouviu uma batida na porta e a serpente entrou.
– O Diabo me pediu que lhe comunicasse qual será a sua incumbência – disse ela. – Às vezes ele tem enxaquecas fortíssimas. Ele quer que você fique do lado dele para abrir o frasco de aspirina.
– Acho que consigo – respondeu o inventor.
– Ah, e você já viu – esclareceu a serpente -, ele faz questão de aspirinas frescas. E então toda vez você vai ter que remover o resistente aro inviolável, a tampa de segurança à prova de crianças e o lacre de alumínio.
O inventor suspirou aliviado:
– OK. Sem problema.
– Ótimo – disse a serpente, dando-lhe as costas para ir embora.
Nesse instante, uma onda de pavor sacolejou o corpo do inventor:
– Mas espera aí, espera aí… – sua voz tremia de nervoso. – Quem é que vai tirar aquela bolota de algodão da boca do frasco?
A serpente se voltou lentamente. Seu rosto, num repuxão, havia se transformado na máscara de Belzebu:
– Por quê? – ela perguntou, agora com uma voz cavernosa que parecia brotar das profundezas do Inferno. – E você pensou que fosse quem?… UHAHAHAHAHA!