As consequências da riqueza súbita em um país despreparado podem ser nefastas. A repentina entrada de fundos estrangeiros provoca a supervalorização da moeda local, causando inflação e sufocando o desenvolvimento de outros setores da economia ILUSTRAÇÃO: JEAN MANUEL DUVIVIER
O iraquiano que foi para o frio
Como Farouk al-Kasim venceu a doença holandesa e desenvolveu o modelo norueguês de gerir as riquezas petrolíferas sem desequilibrar a economia
Branca Vianna | Edição 63, Dezembro 2011
A prospecção, transporte, refino e venda do petróleo que se encontra na camada do pré-sal significam muito mais que a continuação mecânica do trabalho em águas profundas, que a Petrobras conhece bem. O óleo bruto agora se encontra abaixo de 2 mil metros de água e de outros 5 mil de rocha, em média. Essa imensa fronteira energética exigirá a montagem de equipes de centenas de pessoas ainda não treinadas, tecnologias há pouco inventadas, equipamentos desconhecidos e toda uma infraestrutura marítima inexistente.
O americano Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, de São Paulo, levantou os dados e chegou à seguinte conclusão: nos próximos anos, o Brasil deverá gastar 1 trilhão de dólares em custos operacionais para retirar petróleo do pré-sal. A soma equivale a quase metade do Produto Interno Bruto nacional do ano passado.
Para suprir essas carências, a Petrobras anunciou investimentos de 224 bilhões de dólares para o período 2010-2014. O Brasil é hoje o maior mercado do mundo para bens e serviços no setor, sendo a Petrobras o maior cliente individual. Torres, navios, portos, bombas de sucção, computadores, fábricas de maquinário, a formação de milhares de doutores em dezenas de áreas – tudo ainda está por fazer.
“Desde a primeira descoberta, sempre tratamos o petróleo como problema”, disse Øystein Kristiansen na sede da Diretoria Norueguesa de Petróleo, na cidade de Stavanger. Alto e simpático, Kristiansen trabalha há mais de vinte anos na Diretoria, que é o equivalente norueguês à Agência Nacional do Petróleo no Brasil: o órgão regulador do setor. Ela está instalada em dois edifícios baixos e ecologicamente sustentáveis ligados por passagens cobertas, uma vez que chove ou neva mais de 200 dias por ano na cidade. Stavanger, um porto pesqueiro até o início dos anos 70, em questão de décadas virou um polo da indústria naval de plataformas de petróleo.
Øystein Kristiansen é diretor de projetos internacionais da Diretoria Norueguesa de Petróleo. Começou a aprender português porque uma de suas funções é assessorar o governo de Moçambique, que em outubro anunciou a descoberta de expressivas reservas de gás em alto-mar. Sabe dizer “bom-dia”, “obrigado” e algumas outras palavras que, por enquanto, ainda soam como norueguês a ouvidos brasileiros.
Seu objetivo é ajudar Moçambique a escapar da “doença holandesa”. Criada pela revista The Economist, em 1977, a expressão se refere ao súbito desequilíbrio, e piora geral, de uma economia nacional quando ela é beneficiada pela descoberta de um recurso natural valioso. O nome vem do processo aberto pela descoberta, em 1959, de enormes campos de gás na Holanda, que no curto prazo causou dificuldades.
As consequências da riqueza súbita em um país despreparado costumam ser nefastas. A repentina entrada de fundos estrangeiros provoca, na regra, a supervalorização da moeda local, causando inflação e sufocando o desenvolvimento de outros setores da economia. Há o risco do que os economistas chamam de desindustrialização. Como se não bastasse, os novos investimentos favorecem a corrupção e estimulam a cobiça nos grupos dominantes, o que pode levar a disputas que no limite transformam-se em guerra civil.
No caso da Holanda, a exportação de gás supervalorizou a moeda, diminuindo a competitividade da indústria local, que começou a encolher. Houve queda significativa nas exportações, que levaram dez anos para voltar a crescer. Como o país já possuía uma base industrial, um setor de exportações robusto e marcos institucionais sólidos, a economia se recuperou do choque e a Holanda, ironicamente, tornou-se um dos poucos países a não sucumbir à doença holandesa. Mesmo assim, o nome pegou. E a doença se manifestou no Oriente Médio e na África.
A Noruega, com reservas de petróleo e gás maiores que as da Holanda, escapou da maldição. E mais: virou local de peregrinação para todos os países que descobriram gás e petróleo na quadra final do século XX. Confrontados com uma repentina fartura de recursos naturais, é comum que muitos desses governantes agora falem em adotar o “modelo norueguês”.
Para Øystein Kristiansen, tal modelo não existe. O que existe é uma abordagem norueguesa, adaptada às circunstâncias ao longo dos anos, que se baseia numa ideia surpreendente: descobrir petróleo é uma roubada.
Foi Farouk al-Kasim, um geólogo iraquiano, o principal responsável por implantar a ideia na cabeça dos noruegueses. Ele não gosta de revelar a idade exata, mas tem mais de 70 e parece dez anos mais novo. Considerado o homem que salvou a Noruega da doença holandesa, Farouk – os colegas escandinavos o chamam sempre pelo primeiro nome – teve papel decisivo na formulação da política norueguesa de gestão de recursos petrolíferos.
Nascido em Basra, aos 16 anos Farouk foi estudar na Inglaterra, integrando a primeira leva de iraquianos que ganhou bolsa para se graduar no exterior, em áreas ligadas à exploração de petróleo. Eram os anos 50. Em Londres, Farouk se formou no Imperial College e conheceu a mulher, a norueguesa Solfrid. Ao concluir a universidade, instalou-se com ela em Basra e foi contratado pela Companhia Iraquiana de Petróleo, a CIP. De iraquiana, a empresa não tinha nada: era britânica. As bolsas de estudo haviam sido criadas devido a um acordo entre a CIP, que bancava uma parte dos custos, e o governo, que queria nativos na empresa. Farouk foi um dos primeiros iraquianos contratados. E o que subiu mais rápido na hierarquia.
Na época, o Iraque inteiro era uma concessão única, toda ela entregue à CIP. Oitenta por cento das receitas do governo vinham de royalties, e a companhia podia explorar petróleo, ou não, em qualquer lugar do país, quando e como quisesse. Era assim em todo o Oriente Médio – mas não apenas lá. Uma empresa chamada A. P. Möller chegou a deter os direitos de exploração de toda a plataforma continental da Dinamarca.
Ainda nos anos 50, o governo iraquiano teve dificuldades em negociar com a CIP, que se recusava a aumentar os royalties e a explorar áreas novas. Havia tanto petróleo, de tão boa qualidade, e tão fácil de encontrar, que a empresa produzia apenas o necessário para alcançar as metas de lucro, e parava por aí.
Ao longo das negociações, a companhia chegou a ficar dois anos sem pagar royalties. Passando necessidade e sem nenhum poder de barganha, o governo iraquiano percebeu que era preciso começar a formar gente da terra capaz de assumir o negócio. Era o período de alta dos movimentos nacionalistas árabes que contribuiriam para a formação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep, em 1960, em Bagdá, e das empresas nacionais de petróleo, nos anos 70.
Num raro dia de sol em Stavanger, em outubro, na Petroteam, a empresa de consultoria que criou em 1991, Farouk al-Kasim recapitulou um pouco de sua história. Em 1957 começou a trabalhar na Companhia Iraquiana de Petróleo. Depois de dez anos, era o iraquiano mais graduado da empresa. Tinha boas relações com os colegas ingleses, frequentava o clube dos executivos, onde era o único nativo que não servia mesas, e morava num condomínio especial para estrangeiros. Mas fazia questão de que os dois filhos – Ferid, nascido em 1957, e Nadia, dois anos depois – falassem árabe e estudassem em escola pública.
Sua mulher, Solfrid, que nunca aprendeu o árabe, os filhos e os colegas da CIP às vezes implicavam com o que chamavam de “jeito iraquiano de fazer as coisas”. No cinema, por exemplo, as crianças gostavam de se sentar na primeira fila. Mas, se a família do chefe de polícia tinha o mesmo gosto e encontrava as poltronas ocupadas, todos tinham de se levantar para dar-lhes lugar. Embora Farouk soubesse que não havia nada a fazer, a família achava que ele não reagia por covardia. “Imagine só, no Iraque, você provocar briga com o chefe de polícia por causa de lugar no cinema”, exclamou. “Impossível!”
Afora essas pequenas complicações, a vida era confortável e a família não pensava em sair do Iraque. Com o nascimento do terceiro filho, tudo mudou. O menino tinha paralisia cerebral e, na época – “como ainda hoje”, ele completou –, o atendimento médico no Iraque não era adequado. Depois de muito debater, em 1968 o casal decidiu se mudar para a Noruega, onde o menino teria acesso a um bom tratamento.
“O problema é que eu era geólogo, só entendia de petróleo, e não havia petróleo na Noruega”, disse. Farouk considerou a possibilidade de achar emprego em alguma outra parte da Europa, e visitar a família periodicamente. Outra possibilidade era mudar de profissão: “Na pior das hipóteses, poderia ser motorista de táxi em Oslo. Sempre gostei de dirigir.”
Antes, no entanto, havia um problema mais urgente: ele constava numa lista do governo de “pessoas valiosas para uma futura nacionalização do petróleo”. A família não obteve autorização para deixar o Iraque. E acabou fugindo do país.
Solfrid e as crianças seguiram para a Noruega e Farouk foi a Londres, apresentar o pedido de demissão à CIP. “Não é possível, Farouk, você é fundamental para os nossos planos no Iraque” – foi a reação inicial do seu chefe. No fim da conversa, o chefe lhe disse: “Não podemos ficar com você sem criar problemas com o Iraque, mas não vamos impedi-lo de trabalhar em outra companhia. Sem a nossa bênção, você sabe que não achará emprego em lugar nenhum.” E ele tinha razão. “Ninguém na época contrataria um iraquiano”, explicou Farouk.
Um traço de personalidade lhe mudou o destino. No dia em que enfim chegou à Noruega – depois de quatro meses de busca infrutífera por uma colocação – Farouk, que já considerava seriamente a opção do táxi, se viu na estação central de trem de Oslo. Ia à cidade onde moravam seus sogros e tinha algumas horas de sobra. “Como não gosto de ficar esperando, decidi dar um pulo no Ministério da Indústria”, explicou. “Achei que talvez conseguisse uma lista de empresas para mandar meu currículo.”
Para surpreender Solfrid, havia comprado um curso de norueguês em fitas cassete e já se comunicava com certa desenvoltura. “Sempre fui muito impaciente e dedicado”, disse. “Quanto mais difícil a tarefa, mais eu me empenho.”
No Ministério, foi recebido por um dos três solitários funcionários responsáveis pelo setor de petróleo. O homem lhe pediu que voltasse em uma hora – e uma hora depois, em vez de providenciar uma lista de empresas, havia feito uma reunião com os outros dois empregados, e estavam todos prontos para sabatiná-lo sobre seus conhecimentos. O resultado foi o que um ex-diretor-geral do órgão regulador, Gunnar Berge, chama de “o processo de contratação mais rápido da história da Noruega”.
Farouk recebeu a incumbência de avaliar os dados sísmicos levantados pelas empresas que exploravam a plataforma continental do país. Os geólogos da agência norueguesa de pesquisa geológica, os únicos que poderiam se encarregar da tarefa, não eram especialistas na área. Depois de dar uma olhada nos resultados, haviam dito que não havia petróleo no mar da Noruega. Como as petroleiras continuavam por lá, o Ministério estava desconfiado.
Ao analisar os dados, Farouk percebeu que não só havia petróleo, mas que a Noruega estava prestes a se deparar com o que ele considerava “a tragédia dos recursos naturais”, a mesma que vinha destruindo seu país de origem: a doença holandesa.
O Iraque é um exemplo extremo da moléstia: jamais conseguiu desenvolver outros setores da economia, teve no governo corrupção, desmandos e cobiça, e viu explodirem revoluções, golpes e contragolpes ao longo de toda a sua história. A riqueza proporcionada pelo petróleo facilitou a ascensão, em 1979, de Saddam Hussein, que a empregou para massacrar a oposição, desorganizar a sociedade, incitar disputas sectárias, provocar guerras com os vizinhos e erguer palácios dignos de inimigo de James Bond.
A invasão americana em 2003 foi o capítulo mais recente das agruras sofridas pelo Iraque desde as primeiras descobertas de petróleo, nos anos 20 do século passado. Vivendo em cima de uma das maiores reservas do mundo, os iraquianos mal têm energia elétrica, quanto mais hospitais, escolas, segurança e democracia estável.
Exemplo mais próximo do Brasil, a Venezuela também garantiu vaga no ambulatório de doentes holandeses. As estimativas de reservas comprovadas variam enormemente, mas qualquer lista sempre dá pódio aos venezuelanos. Segundo a Opep, por exemplo, a Venezuela, com 296 bilhões de barris, ocupa o primeiro lugar, à frente da Arábia Saudita. Já a CIA coloca os sauditas em primeiro, com 262 bilhões, e os venezuelanos em segundo, com 221 bilhões. Como termo de comparação, o Brasil tem hoje reservas comprovadas de 15 bilhões de barris, e as estimativas mais otimistas para o pré-sal chegam a 70 bilhões.
No ano passado, a produção industrial brasileira cresceu cerca de 10%, enquanto a da Venezuela diminuiu 3% – ou seja, o país está sofrendo desindustrialização, sintoma clássico de doença holandesa. Outro indício exemplar é a inflação, que lá chegou a 28% no ano passado. O rodízio do poder também anda abalado: na Presidência desde 1999, Hugo Chávez disse recentemente que pretende ficar no cargo até 2030.
“A Noruega em 1968 era um país pobre”, disse Marit Engebretsen, diretora-geral de Clima, Indústria e Tecnologia do Ministério do Petróleo e Energia, com sede em Oslo. “Ainda sentíamos os efeitos da ocupação nazista e nossa economia era muito básica, com apenas um setor de relevância internacional: o naval.” A indústria da pesca era praticamente só para consumo interno e o turismo internacional, inexistente. Mesmo hoje, com 5 milhões de pessoas, a Noruega tem menos gente do que a cidade do Rio. Há quarenta anos, tinha apenas 3,8 milhões.
Em sua sala na Universidade de Stavanger, decorada com fotos deslumbrantes de fiordes, o professor Hans Borge, diretor do Departamento de Tecnologia de Petróleo, relatou a situação da Noruega no pós-guerra: “Os americanos foram os primeiros a aproveitar nosso potencial humano e hidrelétrico, nos anos 50. Construíram fábricas de fertilizantes e as hidrelétricas para fazê-las funcionar. Descobriram nos noruegueses da época uma mão de obra barata, com alto nível de instrução e disposta a tudo.”
Até o início dos anos 60, disse Hans Borge, havia muitos noruegueses morando em barracas de acampamento porque não havia casas para todo mundo: “Nada foi construído e muito foi destruído em bombardeios durante a guerra. O país não tinha dinheiro para a reconstrução. Com o baby boom do pós-guerra, o déficit habitacional aumentou.” Quando Farouk teve seu primeiro encontro com os três colegas no Ministério da Indústria, a situação melhorara e todos tinham onde morar, mas ainda era bem presente a lembrança dos anos difíceis.
Farouk al-Kasim é afável e afetuoso. É perspicaz também: examina os interlocutores com atenção, interessado no que dizem e tentando adivinhar suas intenções. Usa óculos grandes e um pouco antiquados, de aro fino, por trás dos quais encara o interlocutor sem desviar o olhar. Quando fala de petróleo, seu objetivo é convencer e ganhar adeptos. Para isso, emprega seus consideráveis talentos de comunicador e uma capacidade particular de pescar as motivações alheias.
Ao expor ideias, assume o ar de um professor benevolente e atencioso, e usa um quadro branco para desenhar gráficos e curvas, triângulos, setas e travessões, com canetas de várias cores. Veste-se de modo mais formal do que os colegas. Em Stavanger, é raro ver alguém engravatado. Farouk está sempre de calça social, gravata e um suéter sobre a camisa, sem paletó. A combinação lhe cai bem, refletindo uma personalidade acessível, porém segura de sua competência e autoridade.
O professor Hans Borge, que não conhece Farouk pessoalmente, descreve-o como “uma lenda no setor de petróleo, mas desconhecido dos noruegueses. Aqui na universidade, todo mundo já ouviu a história do trem e dos três funcionários no Ministério da Indústria”. Segundo um jornalista especializado em gestão de recursos naturais – o norueguês Martin Sandbu, editorialista do Financial Times –, “sempre que alguém reclama do custo dos imigrantes para o Estado, o governo usa Farouk como exemplo dos benefícios da imigração”.
“Passei os primeiros anos tentando convencer o governo de que não havia tempo a perder”, disse Farouk. Não foi fácil. Além da índole cautelosa, os geólogos do Ministério descartavam a hipótese de haver petróleo na plataforma continental, apesar do que alegavam as companhias petrolíferas. “Eles me ouviam e respondiam: ‘É, pode ser. Vamos ver como fica.’” Farouk sabia que era só questão de tempo até encontrarem campos gigantes, chamados no metiê por “elefantes”. Em 23 de dezembro de 1969, como presente de Natal, ou de grego, surgiu o primeiro elefante: a reserva de Ekofisk, até hoje uma das mais produtivas do Mar do Norte.
Menos de dois anos depois, os poços de teste de Ekofisk entraram em operação. Farouk e um colega foram incumbidos de redigir uma recomendação ao Parlamento sobre a gestão de recursos petrolíferos. Como era verão, época em que os noruegueses não ficam dentro de casa de jeito nenhum, os dois foram para uma cabana na floresta, perto de um lago onde poderiam pescar. Dessa semana de trabalho e pescaria nasceu o que todos (exceto os noruegueses e o iraquiano Farouk) chamam hoje de “modelo norueguês”. Farouk, como Kristiansen, insiste em que não se trata de um modelo, mas de uma abordagem, uma visão, uma estratégia de longo prazo.
Desde o início, Farouk insistia que era indispensável e urgente criar uma agência reguladora. A essa altura, já fora autorizado a contratar e treinar um pequeno grupo de pessoas, para o caso de se realizarem suas previsões de riqueza petrolífera. Em 1973, mudou-se de Oslo para Stavanger e virou diretor de Gestão de Recursos da recém-nascida agência reguladora, cargo que ocupou por quase duas décadas. Øystein Kristiansen é uma de suas crias. Outras trabalham na Norad, a Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento. Na DNP, elas levam adiante o modelo Farouk de gestão de recursos para a Noruega; na Norad ajudam a exportar o modelo para outros países.
Segundo Farouk, a fórmula é a seguinte: “O governo deve se concentrar em estabelecer as políticas para o setor: administração, planejamento estratégico, legislação, essas coisas. Fora isso, é necessário ter uma agência reguladora que seja competente não apenas em leis e regulações, mas em tecnologia, para tratar com as petroleiras de igual para igual. É preciso que o regulador seja respeitado por todos, esteja livre de pressões políticas, do lobby da indústria e, o que é muito importante, da influência da companhia nacional de petróleo, que tende a se tornar poderosa demais e a formar um governo dentro do governo.” Outro conselho: é importante não ir com muita sede ao pote. Farouk recomenda “extrair o petróleo com calma, para dar tempo de a economia se ajustar”.
Nos primeiros anos, ainda em Oslo, Farouk foi posto numa sala nos fundos do prédio da Agência Norueguesa de Pesquisa Geológica, longe do Ministério da Indústria, e encarregado de analisar dados e documentos. “Eu não fazia parte dos círculos de poder”, lembrou ele. “Vinham falar comigo, me davam papéis para ler, pediam explicações, anotavam minha opinião e passavam para as pessoas que participavam das reuniões em que as coisas eram decididas. Eu não sabia o que acontecia nessas reuniões. Nem mesmo conhecia as pessoas.”
Aos poucos, “bem aos poucos, muito gradualmente”, os colegas começaram a exibi-lo. Passou a dar palestras para membros do Parlamento, a participar de audiências sobre a política de gestão de recursos, a dialogar com a equipe do ministro. Sempre, no entanto, na condição de assessor, de transmissor de informações, sem poder de decisão, o que não o aborrecia: “Sempre achei que o único poder que vale a pena é o poder invisível”.
A exploração de petróleo na Noruega funciona pelo regime de concessão de licenças, como no Brasil antes do pré-sal. A diferença é que as petroleiras não competem em leilão pelos blocos destinados à exploração. Também não há bônus de assinatura nem royalties. Marit Engebretsen, do Ministério do Petróleo e Energia, explicou: “Não há dinheiro envolvido no processo de licenciamento. Os vencedores são escolhidos em função de sua solidez financeira e da experiência e capacidade técnica para atuar no tipo específico de exploração exigido por determinado bloco.” Há outro ponto crucial – se a empresa tiver um histórico de contratação de bens e serviços no país, aumentam suas chances de ganhar a licença.
A receita do petróleo chega ao governo de três formas principais: uma alíquota de 78% sobre o lucro das petroleiras; dividendos da Statoil, gigante do setor que tem o Estado como acionista majoritário; e o lucro do SDFI (State’s Direct Financial Interest), um fundo de participação do Estado. Através do SDFI, o governo investe diretamente em alguns projetos de exploração. O lucro obtido é administrado por uma empresa 100% estatal, a Petoro.
Uma vez licenciada, a empresa que investir em pesquisa e treinamento na Noruega pode abater a despesa do imposto devido. Como a taxação é alta, muitos fornecedores de bens e serviços, como as americanas Schlumberger e Halliburton, preferiram montar laboratórios na Noruega, a maioria deles em Stavanger. Eles trabalham em parceria com universidades e centros de pesquisa financiados pelo governo, que investe bastante no setor. O know-how gerado internamente é exportado para todo o mundo.
A Universidade de Stavanger, construída nos anos 70, fica na zona rural, a vinte minutos de carro do centro da cidade. O campus é bonito, arborizado, com prédios baixos de arquitetura arrojada, construídos para aproveitar ao máximo a luz natural, tão escassa na região quanto é abundante o petróleo. Vê-se mais diversidade étnica aqui do que no país em geral. Alunos de todas as raças e religiões, inclusive moças de véu islâmico, misturam-se nos vários cafés espalhados pela universidade, ocupando sofás e poltronas.
O professor Hans Borge contou que, dos trinta alunos de doutorado admitidos neste ano, só uma minoria é norueguesa. Os outros vêm do mundo inteiro, mas principalmente do Irã e da Rússia. As aulas são em inglês. “A presença dos estrangeiros força os alunos noruegueses a trabalhar mais”, disse ele. “O resultado é excelente. A maioria se emprega aqui mesmo em Stavanger. Os iranianos, em particular, quase nunca voltam para o Irã.”
A universidade é gratuita e os estrangeiros ganham uma bolsa do governo: “Equivale a um salário. Dá para eles se sustentarem com folga durante o curso.” A interação entre universidade e indústria é grande. “Muitos dos nossos programas são financiados pela iniciativa privada, norueguesa ou estrangeira”, disse. “Para nós, é importante que nossa pesquisa seja relevante para o setor.”
Faroukgosta de usar um triângulo para ilustrar seu modelo de gestão de recursos naturais. Governo, companhias de petróleo e sociedade são as três pontas. “É importante entender que as companhias de petróleo não são mal-intencionadas nem chegam para roubar a riqueza da nação”, disse. “Querem ganhar dinheiro, claro, e têm esse direito, mas vão também contribuir para o crescimento da economia. Os acordos têm de ser feitos pensando na criação de valor para todos os interessados.”
Se o governo é o único favorecido, não atrai as melhores empresas, condição fundamental para o bom aproveitamento dos recursos e para garantir a transferência de tecnologia de ponta. Se as vantagens se acumulam todas do lado das empresas, a consequência será a doença holandesa. “O país e a sociedade só se beneficiam se as companhias de petróleo também estiverem lucrando”, explicou Farouk. “Já o contrário não é verdadeiro: é perfeitamente possível as petroleiras ganharem dinheiro sem que a população veja um centavo.”
Nos primeiros anos de exploração do petróleo, a Noruega decidiu que todo o ganho seria reinvestido no setor sob a forma de subsídios à pesquisa, de treinamento de mão de obra, melhoria da infraestrutura e pagamento da dívida externa. Em 1996, quitada a dívida, o governo passou a colocar toda a receita líquida do petróleo num fundo soberano, chamado Fundo de Pensão Público Global. Esse fundo tem hoje o equivalente a 100 mil dólares para cada homem, mulher e criança noruegueses. O objetivo é garantir o padrão de vida da população quando o petróleo acabar. A produção já está caindo, apesar da descoberta recente de um grande reservatório e do crescimento da produção de gás. Mesmo assim, a Noruega se prepara para o fim da era do petróleo. A matriz energética já é quase 100% hidrelétrica.
O Estado só pode utilizar 4% do ganho financeiro do fundo, mesmo que no ano o ganho tenha sido maior. Assim, em tempos de vacas magras, como na crise mundial de 2008, o governo tem como tapar buracos no orçamento. Quando as vacas voltam a engordar, o bolo fica lá, crescendo. Como a Noruega não é uma federação e esses 4% entram a título de orçamento do Estado, as regiões não têm como brigar por uma fatia maior do bolo. Não há também desigualdade extrema de renda, nem entre regiões, nem entre classes sociais, nem entre zona rural e zona urbana. Os 10% mais ricos detêm 20% da riqueza nacional. No Brasil, os 10% mais ricos ficam com 75% da riqueza.
“Outro elemento importante, e pelo qual Farouk é em grande parte responsável, é o alto nível de recuperação de óleo nos campos da Noruega”, disse Martin Sandbu, do Financial Times. A maior parte do petróleo encontrada no mundo nunca chega a ser produzida. Cerca de 75% ficam, literalmente, no fundo do poço. Marit Engebretsen, do Ministério do Petróleo e Energia, concorda com Sandbu a propósito de Farouk: “Ele instituiu a cultura da última gota, que prevalece até hoje, mais de dez anos depois de ele ter deixado o governo.” A taxa de recuperação na Noruega se mantém entre 45% e 50%.
“Quando deixei o Iraque, eu tinha muito a perder”, disse Farouk. “Lá, eu era um homem importante, tanto para os meus chefes como para o meu país, e importante para os meus filhos, que eram iraquianos, eram árabes.” Havia um ideal alimentado desde a conclusão da universidade: “O que dava sentido à minha vida era a ideia de ajudar o desenvolvimento do meu país.” Seu trabalho era uma forma de contribuir “para que finalmente nos tornássemos senhores em nossa própria casa”. Na Noruega, seria apenas um imigrante. Achava que a origem árabe e o sobrenome Al-Kasim trariam problemas para os filhos. Temia que eles esquecessem o idioma, que dali em diante só falassem norueguês (“E eu tinha razão, foi o que aconteceu”).
Aos 32 anos, tendo abandonado uma carreira de sucesso e aberto mão de seu objetivo de vida, decidiu que sua missão passaria a ser global: ajudar a indústria como um todo, e a Noruega em particular. “Fui muito bem recebido aqui, com muita generosidade”, contou. “Isso me deu vontade de contribuir para o país. Encontrei um sistema democrático, justo e aberto. Um pouco lento, é verdade, mas perfeito para fazer as coisas do jeito certo.”
Em 1990, o diretor-geral da DNP aposentou-se. Farouk, o segundo na hierarquia, foi incentivado pelos colegas a candidatar-se ao posto, mas sabia que não seria indicado: “Não por ser estrangeiro – ou, ao menos, não apenas por isso –, mas por ser polêmico.” As relações entre a DNP, o Ministério e a Statoil nem sempre foram tranquilas: “Tivemos de lutar para sermos respeitados.” A seu ver, o governo ofereceu-lhe uma saída honrosa, designando para o cargo um ex-ministro das Finanças, um homem de muito prestígio.
Aos 55 anos, Farouk achou que era hora de tentar a vida fora do governo. Com alguns sócios, fundou uma empresa de engenharia de reservatório. “Eu não tinha um tostão, naturalmente, mas tinha muitas ideias”, explicou. “Eles me deram ações da companhia, que foi vendida em 1995. Hoje tenho um padrão de vida confortável. Não preciso me preocupar com o meu futuro nem com o dos meus filhos.”
Isso permite que Farouk se dedique à outra empresa de consultoria que fundou, a Petroteam. Esta, numa continuação da missão que escolheu aos 32 anos, ajuda outros países a administrar seus recursos petrolíferos. E o projeto do coração de Farouk é uma fundação criada pelo governo para transferir conhecimento e treinar técnicos do setor energético em outros países. Duas vezes por ano, essa fundação recebe em Stavanger quarenta alunos para um curso de gestão de recursos com duração de oito semanas. O grupo de 2011 incluiu alunos de 24 países. Há engenheiros, geólogos, economistas, contadores, advogados, todos funcionários públicos em seu país ou vinculados às companhias nacionais de petróleo. A fundação também dá cursos e consultorias in loco. A ideia é treinar quadros técnicos que no futuro possam ter uma atuação-chave no desenvolvimento das políticas nacionais. Mais de 13 mil pessoas passaram pelos programas.
Inocência Maculuve, geóloga moçambicana, exausta depois de seis semanas de curso, e com outras duas pela frente, contou que não sobrou tempo para mais nada, além do estudo. Mal sabe que cara tem Stavanger. Suas atividades vão das oito da manhã às cinco da tarde, sete dias por semana, com duas sessões noturnas semanais que terminam às 21 horas. Ela tem certeza de que poderá empregar seus conhecimentos em Maputo. Disse que em Moçambique a recente descoberta de gás causou medo, não euforia. “A população e o governo veem o que acontece em outros países africanos e pensam: ‘Será que é bom ter gás? Não era melhor antes?’”
Nils Fuglestad, diretor de projetos da fundação e um dos instrutores do curso em Stavanger, é o coordenador do programa para o Sudão do Sul. O país, que se tornou independente em 9 de julho passado, concentra 75% das reservas petrolíferas antes pertencentes ao Sudão. “Começamos a trabalhar com o governo ainda antes da independência”, disse Fuglestad. “A região é rica em petróleo, mas não tem expertise nem infraestrutura. Tudo dependia de Cartum, no norte. Tenho uma foto minha numa reunião com os funcionários do órgão regulador, todos sentados debaixo das árvores porque não havia prédios. Os escritórios eram ao ar livre, no meio do nada.” Fuglestad passa duas semanas por mês no Sudão do Sul. A Petrobras foi várias vezes convidada a enviar técnicos para o curso, mas nunca participou.
Em 2004, logo após a invasão americana, Farouk foi chamado pelo governo em formação para preparar um projeto de lei para o setor petrolífero do Iraque. Mas constatou que os iraquianos “não conseguem se entender para aprovar qualquer legislação. O país é governado por grupos mafiosos que só se preocupam em defender os próprios interesses. Me disseram que as coisas estão melhorando, e eu espero que seja verdade, mas desisti de tentar ajudar”.
Farouk costuma visitar os irmãos, que ainda moram em Basra, mas o ponto de encontro é o Curdistão: “Em Basra eu seria sequestrado em questão de horas. O sequestro virou uma indústria na região.”
Nadia, sua filha e também secretária, não se sente ligada ao Iraque: “Eu era a única menina, era a favorita da minha tia e dos meus avós, mas não me lembro de muita coisa. Meus avós e meus tios vieram algumas vezes nos visitar em Stavanger, mas nós nunca voltamos lá. Esqueci tudo do árabe. Eu tinha só 8 anos quando mudamos para a Noruega.”
Farouk se considera um homem realizado. Diz que é de bem com a vida que sai todos os dias para trabalhar. “Meu objetivo, quando cheguei à Noruega, era que os netos que eu viesse a ter se orgulhassem de mim, e que um dia eu pudesse olhar para trás e achar que dei uma contribuição importante.” Ele hoje é avô de quatro meninos e cinco meninas.
Raid, seu filho caçula, o motivo da mudança para a Noruega, recebeu o tratamento que lhe permite levar uma vida independente. Com 44 anos, ele mora sozinho e se locomove de bicicleta pelas ruas de Stavanger.