ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
O lateral de esquerda
Igor Julião defende o trabalhador
Tiago Coelho | Edição 153, Junho 2019
Nos fins de semana, Roberto Julião costumava levar o pequeno Igor para dar um passeio pela cidade. Fazia questão de deixar o Fusca na garagem para que o menino conhecesse o metrô e o trem. No roteiro, os museus do Rio de Janeiro. “Meu pai me apresentou à cultura”, contou Igor Julião, 24 anos, jogador do Fluminense, na sala do pequeno flat onde vive na Barra da Tijuca. “Ele queria que eu tivesse experiências que não pôde ter. Esses passeios despertaram em mim o interesse por história, a disciplina que eu mais gostava.” Há um ano e meio, quando encerrou o contrato com um time na Eslováquia, Igor Julião cruzou a Europa de trem com a esposa Carolina Souza. No roteiro, vários museus. Ficou encantado com os renascentistas italianos e as telas de Juan Miró.
Sua família de classe média baixa sempre viveu em Bento Ribeiro, subúrbio do Rio. Ex-militar, o pai impôs que o menino só continuaria com os treinos no time de base do Fluminense caso tirasse boas notas na escola. Quando Igor tinha 21 anos, o tio Elionaldo Julião, doutor em ciências sociais, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e até então o único da família a fazer um curso superior, o levou para uma visita ao Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), que abriga menores infratores. “Vi os garotos presos como animais em jaulas superlotadas. Estavam ali esperando um julgamento por ter pichado uma parede ou portar maconha. Conversei com alguns e pensei: ‘Se eu não tivesse o futebol e uma família estruturada, podia estar entre aqueles garotos.’ Minha realidade era muito próxima da deles.”
Depois da visita ao Degase, procurou livros que o ajudassem a refletir sobre a sociedade. Deparou-se com o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. “Eu queria entender melhor as relações de classe”, afirmou. “Quando a pessoa é pobre e passa a vida sendo pisoteada, ela muitas vezes não consegue entender que existe uma hierarquia de classe. A busca pela igualdade é um ponto que considero importante na obra de Marx.” Hoje, entretanto, ele tem críticas ao pensamento marxista. “Vejo como uma utopia difícil de alcançar e não concordo em fechar a sociedade para as relações de mercado.”
Pouco a pouco, Igor Julião decidiu usar a visibilidade que o futebol lhe dava para falar publicamente sobre questões sociais, como o racismo. “A gente que joga futebol representa muita coisa para as crianças pobres. Ainda mais nesse momento em que o governador do Rio dá aval para a polícia atirar de helicóptero em pessoas na favela. Acredito que seja meu papel dizer: ‘Eu vim da pobreza e estou com vocês.’”
Como o ambiente no país é de acirramento político, o lateral direito passou a ser identificado pelos torcedores como um jogador de esquerda. “Igor Julião podia se afiliar logo ao PSOL e sumir do Fluminense”, tuitou @Lukkaszz. “Igor Julião comunista, melhor jogador do Fluzão”, escreveu @owillsemsmith.
Às vezes, Igor Julião é questionado a respeito dos salários estratosféricos dos jogadores. “Ganho um salário muito alto, comparado ao da maioria dos trabalhadores brasileiros. Mas não ganho 300 mil, 400 mil reais por mês, como alguns jogadores. Também nunca propus que eles baixassem sua base salarial. Minha defesa é que a classe trabalhadora tenha uma vida digna, de oportunidades, que possa se aproximar do padrão que eu tenho.”
Com os colegas de equipe, ele evita falar de política. “Sou do subúrbio, vim da mesma classe que muitos deles. Temos outros assuntos em comum.” Mas Julião diz que sempre puxa a orelha dos colegas com os quais tem mais intimidade quando ouve comentários preconceituosos.
No final do ano passado, postou no Twitter a foto de um pedaço de mar visto de uma piscina com a seguinte legenda: “Sol apareceu, Djonga na playlist e fogo nos racistas.” (Djonga é um influente rapper mineiro.) Um usuário comentou na postagem que Julião era branco, rico e, por isso, fazia marketing com causas sociais. O atleta respondeu: “Sou descendente de escravos e indígenas. Fui bolsista nos colégios particulares que estudei e terminei o ensino médio em uma escola pública. Tive um tio homossexual que se suicidou há 1 mês por não suportar mais homofobia. Defendo tudo o que eu vivo.”
No dia do segundo turno da eleição presidencial, foi votar usando uma camiseta estampada com o rosto da vereadora Marielle Franco, ignorando o pedido do pai para que se vestisse de outra maneira. Roberto Julião temia que o filho fosse alvo de alguma hostilidade no bairro onde cresceu, por causa da camiseta. “Me recusei a tirar. Não era o rosto do Pinochet. Era o rosto de uma mulher que defendia a igualdade de oportunidades, que lutava contra o racismo e o preconceito.”
O voto do jogador foi para Fernando Haddad. O pai preferiu Jair Bolsonaro. No Natal, os dois tiveram uma discussão política acalorada e terminaram a noite chorando. “Não valeu a pena. Hoje, quando ele faz algum comentário que me incomoda, evito discutir. Não quero estragar a relação por causa da política. Meu pai é muito importante para mim.”
Na última rodada do Campeonato Brasileiro, o Fluminense corria o risco de rebaixamento. Em 2 de dezembro, dia da disputa com o América mineiro, Julião pediu que os parentes não aparecessem no Maracanã, pois a torcida poderia ter alguma reação inesperada, no caso de derrota. Ansiosos, alguns jogadores passaram mal, vomitaram. Julião disse ter sentido um gosto de ferro na boca durante todo o jogo.
O Fluminense ganhou a partida por 1 a 0 e se livrou do rebaixamento. Apesar da vitória, o clima pesado não se desfez, e Julião preferiu não deixar o estádio no ônibus da equipe. Foi para casa de metrô, sozinho. Na estação, descobriu que estava sem dinheiro. Um torcedor o reconheceu e lhe ofereceu um bilhete. “Foi bom me conectar com o tempo em que eu era pequeno, andava de metrô pela cidade e não sentia gosto de ferro na boca.”