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O limbo não passa de um teologúmeno
O que a libertinagem, a fraqueza, as salas de espera e, talvez, a irmãzinha do Papa têm a ver com o destino das crianças inocentes
João Moreira Salles | Edição 2, Novembro 2006
“A realidade do pecado original pode ser observada naquelas agradáveis tardes de verão em que as crianças, entediadas, começam a torturar o gato.” A frase é de um católico, o escritor inglês G. K. Chesterton. Talvez o gato pudesse encontrar algum consolo no fato de estar a serviço de uma história quase bimilenar que está prestes a chegar ao fim. Entre um caldo e outro, ele especularia: Afinal, o pestinha está me afogando porque pode ou porque quer? É escolha ou inclinação? E caso o gato fosse teólogo, ele formularia o problema assim: Peca-se por vontade ou por natureza?
A pergunta está na origem da questão do limbo. Trata-se de uma longa discussão teológica que envolve livre-arbítrio, libertinagem, fraqueza, ascese, perdão, aborto e, talvez, o impulso de um papa em salvar sua irmãzinha. O ponto final da história depende apenas de um dixit do papa Bento XVI. Anunciou-se que o limbo deixaria de existir oficialmente numa sexta-feira, 4 de outubro de 2006, data em que o Santo Padre decretaria seu fim. Quando ainda era o cardeal Ratzinger, Bento XVI declarara: “Pessoalmente, eu aboliria o limbo, visto que ele foi sempre uma simples hipótese teológica”. Na sexta- feira em causa, muita gente suspendeu a respiração na expectativa de saber o destino das criancinhas não batizadas, condôminas por excelência do limbo. O decreto não veio. Bento XVI não se pronunciou.
“Nem deveria”, sorri o teólogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade. Para ele, assim como para quase todos os seus pares, o limbo é assunto tão ultrapassado quanto o debate sobre o número de anjos que cabem na cabeça de um alfinete. Salvo nas franjas mais extremas da Igreja, o limbo é uma espécie de polaina teológica, uma velharia que ressurge apenas porque o Vaticano não se deu ao trabalho de oficializar seu anacronismo. O limbo jamais foi um dogma, verdade que não pode ser contestada a menos que se queira incorrer em pecado. Tecnicamente, não passa de um teologúmeno, palavra tão esdrúxula quanto útil: trata-se de uma hipótese teológica que ganhou ares de verdade por haver sido repetida à exaustão, até virar consenso.
A palavra limbo não ocorre nas escrituras. Na história de Caim e Abel, aparece Nod, desterro de Caim, “lugar de miséria, de solidão e de afastamento de Deus”. Em Jó, essa terra desolada ganha o nome de Sheol, lugar escuro, de poeira e silêncio. É a morada dos que são esquecidos de todos. Lá, o martírio não é medido em intensidade, mas em distância. Os mortos estão longe de Deus. Dante instala seu limbo no primeiro círculo do inferno e se refere a ele como cego mundo. Seus habitantes sentem a oportunidade perdida e têm consciência de que, para eles, o essencial jamais se cumprirá. Não existe arrependimento, mas sentimento de predestinação: a dolorosa noção de que estão condenados porque nasceram, ou morreram, antes da hora; de que a sorte, não os atos, os condenou. O limbo é o lugar dos que sofrem os desencontros do destino.
Até o século V o limbo não tinha importância. A razão é que os antigos entendiam o pecado original de outra maneira. Para os teólogos pré-agostinianos, a queda de Adão maculava os homens pelo exemplo, não pelo mal. Diante do bem e do mal, Adão preferiu o segundo. Com isso, introduziu a possibilidade de imperfeição. A passagem canônica do Novo Testamento que trata do tema é Romanos, capítulo 5, versículo 12: “Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram…”. O limbo nasce aqui – por uma escolha, ou equívoco, de tradução.
O teólogo suíço Hans Kung explica que o Oriente grego dedicou-se a especulações metafísicas, como a doutrina da Trindade. Já o Ocidente latino debruçouse sobre problemas de ética e disciplina: a culpa e o perdão. A tradução grega de Rom 5:12 não diz que o pecado entrou no mundo por um só homem. A variante empregada é outra: o pecado entrou no mundo em conseqüência de um homem. A diferença é imensa. No primeiro caso, fala-se do pecado como um mal entranhado. No segundo, ele é uma escolha. O nó da questão é a doutrina do livre-arbítrio.
E aqui entra Agostinho. A essência da disputa em torno do limbo pode ser resumida numa pergunta: como se alcança a salvação? Agostinho dará uma resposta definitiva, cruel e logicamente irretocável. Se a interpretação latina de Rom 5:12 estabelece que todo homem nasce com a mácula do pecado; se a narrativa do Novo Testamento leva a uma só conclusão — a de que os meios de redenção dependem da aceitação de Cristo —; segue-se então, inapelavelmente, que não há remissão possível depois da morte. Os sacramentos não têm como alcançar quem já não os pode receber. Os patriarcas, os profetas e os justos do Antigo Testamento viveram no período trágico entre a queda e a redenção. Existiram antes do tempo, morreram sem poder se livrar do pecado com que vieram ao mundo. Seu destino seria o inferno, o mesmo dos pequeninos que morreram antes do batismo.
Maria Clara Bingemer, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-RJ, diz que o limbo foi uma saída honrosa para lidar com as crianças mortas prematuramente. Antes de Agostinho, os pais da Igreja enfrentavam a situação dando piruetas teológicas. Para não condenar bebês ao fogo do inferno, inventaram zonas intermediárias entre a bem-aventurança e o horror. O limbo seria como uma sala de espera chatíssima. Na verdade, duas salas: a dos justos e a das crianças. A dos justos está vazia — a narrativa católica diz que, antes de ascender aos céus, Cristo desceu até lá para salvar os homens honrados do Antigo Testamento. Sobraram as crianças.
Essa era a tradição até Agostinho, que em 418, no Concílio de Cartago, fulminou: “Não existem lugares intermediários onde crianças não batizadas vivem felizes”. Mais tarde, incomodado com a própria severidade, recuou: a punição reservada às crianças seria a mais suave de todas. Elas não sofreriam dores físicas, apenas dores da perda (jamais veriam Deus) – eternamente, e no inferno.
Ao negar a zona intermediária do limbo, Agostinho respondia diretamente a um de seus maiores adversários intelectuais. Pelágio nasceu em 354. Aos vinte e poucos anos, foi a Roma, e ali, ao ver a permissividade do clero, elaborou a teologia do livre-arbítrio radical. Pelágio constatou que os homens da Igreja recebiam os sacramentos, mas isso não os impedia de pecar. Desenvolveu então um credo segundo o qual o homem dependeria apenas de si mesmo para se salvar. Os elementos da salvação seriam a força moral, a retidão e a ascese. Sintetizou sua teologia numa frase: “Insisto no merecimento de um destino para si”.
O pelagianismo, no limite, tornava a Igreja dispensável. Pelágio acreditava que o homem é livre para o pecado — pode ou não cometê-lo. Sua interpretação da queda é a mesma dos padres gregos. Adão pecou, mostrou que é possível escolher o mal, mas a queda não atingiu todos os homens, atingiu apenas Adão. O pecado original é uma possibilidade, não uma predestinação. É preciso negá-lo, e Pelágio o nega. As crianças não batizadas estão na mesma situação de Adão antes da queda. Sobre o destino delas, Pelágio escreveu: “Para onde não vão, eu sei; para onde vão, não sei”. Não vão para o inferno. Talvez chegassem ao paraíso, mas esse era um aspecto marginal.
Para Agostinho também. Essencial era a realidade do pecado original, do qual todo o resto derivava. É o pecado original que torna necessária a redenção. A crer em Pelágio, se o pecado de Adão não foi transmitido aos homens, cada um tem capacidade de se salvar ou de se perder. Cristo seria o anti-Adão. Adão deu o exemplo da perdição pelo mal. Cristo mostrou que é possível salvar-se pelo bem. Seu exemplo leva o homem a desejar a via reta — mas não será por causa dele que alguém ressuscitará. A vida eterna é uma conquista pessoal, sem concurso divino. Cristo é supérfluo.
Heresia, e das grandes. Agostinho combateu- a em pelo menos catorze textos — em nome da Igreja e em causa própria. Nascido em 354, no Norte da África, ele passou seus primeiros 17 anos na esbórnia. Preferia brigas de galo à escola e andava na companhia de canalhas. Roubou e fornicou. A mãe lhe pediu que ao menos livrasse as mulheres casadas. Talvez tenha sido durante uma missa que seduziu a mãe de seu filho indesejado. Usava métodos de contracepção. Pai aos 17 anos, é provável que tenha sugerido o aborto. O segundo capítulo das suas Confissões se abre assim: “Devo agora conduzir meus pensamentos para as coisas abomináveis que fiz naqueles dias, os pecados da carne que profanaram minha alma”. Como quase todo puritano que um dia foi libertino, Agostinho abomina o sexo. Sucumbiu a ele e se odiou pela fraqueza. Certamente viu na heresia pelagiana um indiciamento. Ao contrário dos ascetas, não fora capaz de dominar seus impulsos. O livre-arbítrio não bastou para salvá-lo. Era preciso algo mais do que a vontade, algo que não dependesse do seu caráter. Algo que lhe fosse oferecido gratuitamente e não se confundisse com sua natureza. Com essa idéia — a da graça —, que já existia, mas foi trazida por ele para o centro da fé católica, Agostinho derrotou a radicalidade do livre-arbítrio. Ao vencer, legou à Igreja católica a doutrina do pecado original, que era desconhecido no Oriente, e tornou maldito o sexo, transmissor do pecado de Adão.
Pelágio considerava Agostinho um fraco. Se é assim, o fraco venceu. O pecado original é um dos dogmas da Igreja. Com o tempo, a noção das zonas intermediárias foi sendo recuperada — seria embaraçoso demais condenar crianças ao fogo eterno. Oitocentos anos depois de Agostinho, surgiu a palavra limbus — orla, fronteira — para designar o destino dos inocentes. Tomás de Aquino defendeu a idéia que se tornou consenso — as crianças vivem num estado de alegria, à beira do paraíso, e não sentem a falta de Deus por não saberem de sua existência. Seriam assim como crianças no Simba Safári, satisfeitas por não terem ouvido falar da Disneylândia.
Em 1980, João Paulo II publica uma encíclica em que não menciona o destino de crianças como Olga, sua irmãzinha que morreu antes do batismo, mas as entrelinhas são claras: o limbo não existe. Tomando a parábola do filho pródigo, o papa defende a posição do pai que acolhe o filho faltoso. Rejeitar o filho “seria exigência da justiça”: ele havia ofendido o pai e dissipado a fortuna herdada. João Paulo escreve: “Mas a justiça, por si só, não basta”. Levada às últimas conseqüências, ela se aniquila. “Um mundo do qual se eliminasse o perdão seria apenas um mundo de justiça fria e irrespeitosa.” É o primado da misericórdia sobre a lei. Deduz-se, sem muita dificuldade, que aos olhos da Igreja atual a misericórdia supera o pecado original — Olga e todas as crianças estão no céu.
Por que então o assunto voltou à tona? Há algumas hipóteses. Bento XVI é teólogo, e é da natureza dos teólogos esclarecer os pontos da doutrina. O limbo seria uma poeira a ser varrida. O que interessa a Ratzinger é o pecado original, sobre o qual já planejou escrever um livro. Se a queda for interpretada não como realidade metafísica, mas como metáfora — a desordem no mundo, a injustiça social –, então a Igreja se tornará supérflua. Lamenta que a palavra “redenção” venha sendo progressivamente substituída por “libertação”.
Uma outra razão, sutil, talvez possa ser encontrada numa das encíclicas mais importantes do pontificado de João Paulo II, a Evangelium Vitae. Nela, o papa fala do livre-arbítrio como prerrogativa de todos, menos dos frágeis e indefesos. O tema central é a inviolabilidade da vida, e numa extensa argumentação a respeito de seus extremos – a “vida ainda não nascida”, os velhos e os enfermos –, a palavra aborto aparece 68 vezes, em oposição às treze ocorrências de eutanásia e às quatro de pena de morte. O aborto é uma das questões prementes da Igreja. Está na confluência dos grandes temas da fé católica: castidade, sexo, família. As inúmeras referências a “crianças não nascidas” parecem elidir o pecado original: “A pessoa eliminada é o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar. É frágil, inerme”. Paul Ricoeur, pensador francês que dedicou parte de sua obra à reflexão sobre o mal, escreveu: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Quanto a mim, tenderia mesmo a dizer que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos requer, porque o frágil está de algum modo confiado à nossa guarda.” Se a Igreja subscreve essa tese, é natural que queira eliminar oficialmente o limbo. Se o destino dos nascituros escapa à sua jurisdição, o das crianças mortas, não. Que ao menos elas se livrem do tédio imenso do limbo.
No interior da Paraíba, há uma senhora de 99 anos chamada Neném Grande. Nunca teve filhos, mas rezou muito para que a prole de sua sobrinha “vingasse até a hora do batismo”. Como as crianças morriam antes do sacramento, decidiu fazer promessa a são Francisco. Se resistissem até lá, receberiam o nome do santo. “Nunca fiz promessa pra criança vingar no mundo. Só pedi que nenhuma morresse pagã.” Segundo ela, criança que morre antes do batismo “vira um anjo triste e vai para um lugar escuro onde passa toda a eternidade chorando e pedindo pra que o mundo se acabe”. Seu limbo é muito mais cruel do que o de Dante e Aquino, mas esse não é o problema. Para Neném Grande, o limbo é perigoso. É lá que se trama o lobby do Apocalipse. Quando (e se) Bento XVI declarar o fim do limbo, ao menos uma pessoa dormirá mais sossegada.
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