Walter Salles e Fernanda Torres Crédito: Alile Dara Onawale /VideoFilmes_2024
Mas onde é aqui?
O livro de Marcelo Rubens Paiva, o filme de Walter Salles e o Brasil contemporâneo
Fernando de Barros e Silva | Edição 217, Outubro 2024
Planet Earth is blue, and there’s nothing I can do.
David Bowie
O verso acima faz parte da letra de Space oddity, a canção que projetou David Bowie no mundo e se tornou um de seus grandes clássicos. Lançada em julho de 1969, dias antes que Neil Armstrong e a missão Apollo 11 chegassem à Lua, a música narra outra viagem, fictícia, do astronauta Major Tom. Ao contrário de Armstrong, o personagem de Bowie não retorna. Desaparece para sempre na imensidão do universo. Nós o acompanhamos desde a partida rumo ao espaço, em contagem regressiva, até o instante em que chega à Lua. Depois de ter seu feito histórico efusivamente festejado, Major Tom perde o contato com a base terrestre da operação. E uma de suas últimas frases antes de sumir no infinito é essa:
A Terra é azul, e não há nada que eu possa fazer.
Blue também pode significar “triste” em inglês. Marcelo Rubens Paiva escolheu esse verso de Space oditty como epígrafe de Ainda estou aqui, o livro de memórias que lançou em 2015. A obra narra a tortura e o assassinato de seu pai, Rubens Paiva, pelos agentes da ditadura, em janeiro de 1971, mas conta sobretudo a história de sua mãe, Eunice Paiva, viúva aos 41 anos, com cinco filhos – Vera, de 17, Eliana, de 15, Ana Lúcia, de 13, Marcelo, de 11, e Beatriz, de 10 anos.
Viúva é modo de dizer, porque na realidade as coisas foram mais cruéis. A morte de Rubens Paiva só foi reconhecida pelo Estado brasileiro em 1996, 25 anos depois de seu assassinato. Até então, oficialmente, ele era um “desaparecido”. Uma das 243 pessoas vítimas de “desaparecimento forçado”, mais da metade das 434 exterminadas pela ditadura, segundo consta do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014. Foi só naquele ano, meio século depois do golpe militar de 1964, que vieram a público as circunstâncias das torturas sofridas por Rubens e a identidade dos responsáveis por elas. Nenhum dos algozes que agiram criminosamente em nome do Estado brasileiro jamais foi julgado e punido. Estamos em 2024. E o corpo de Rubens Paiva continua desaparecido.
Antes de sumir para sempre, Major Tom pede à base terrestre que ainda o escuta: Digam à minha mulher que eu a amo muito/ Ela sabe disso. Podemos imaginar que as palavras do astronauta de Bowie seriam as mesmas que Rubens, agonizando, gostaria de dizer a Eunice, se tivesse a quem pedir. O verso escolhido como epígrafe do livro, no entanto, aponta para outra coisa. Ele sugere uma espécie de aceitação desenganada diante do sentimento de um vazio infinito, da solidão mais absoluta, de um desamparo de proporções cósmicas. A Terra é triste, e não há nada que eu possa fazer.
As coisas são como são. É o próprio autor quem nos anuncia isso antes de iniciar seu relato. Não deixa de ser uma homenagem ao senso de realidade com que Eunice enfrentou a adversidade extrema ao longo de anos, ou décadas, desde o sumiço do marido. Senso de realidade e lucidez incomuns, que já não a acompanhavam no momento em que Marcelo escreve – o Alzheimer havia se instalado.
A epígrafe não deixa de ser ainda um comentário desiludido sobre o Brasil. Um suspiro diante de tudo que haviam vivido – traumas, angústias, esperas intermináveis, algumas conquistas –, e também uma antecipação do que estava por vir. A arte, em seus melhores momentos, tem essa capacidade, de captar no ar o Zeitgeist e iluminar algo que não sabemos o que é.
Eunice Paiva morreu em 2018, aos 89 anos. Mesmo ano em que o país, acometido de demência coletiva, escolheu como presidente o mais desqualificado entre os apologetas da ditadura militar, um sujeito que fazia questão de exaltar como ídolo e referência histórica o torturador-símbolo do regime de exceção. No momento que esse tipo foi eleito, o país atualizou o significado do que é nivelar tudo por baixo. Precipita-se quem aposta que isso já ficou para trás.
O primeiro capítulo do livro de Paiva se chama Onde é aqui?. E tem como núcleo o dia em que ele e sua irmã Veroca acompanham, ou antes, conduzem Eunice até o Fórum João Mendes, no Centro de São Paulo, onde vão sacramentar sua interdição judicial diante de um juiz da Vara da Família. Advogada, Eunice conhecia muito bem o lugar, havia passado décadas frequentando o prédio, mas naquele dia 30 de janeiro de 2008 já não saberia chegar lá sozinha. Tinha 78 anos e não conseguia responder ao juiz em que ano estavam, ou quem era então o presidente do Brasil.
Na fase inicial do Alzheimer, conta Paiva, era comum que Eunice perguntasse “o que estou fazendo aqui?”, “o que é mesmo que vim fazer aqui?” ou, ainda, “onde é aqui?”. Não importa qual fosse a resposta, a reação dela quase sempre era “quero ir embora”, “quero ir pra casa”.
Antes de assistir ao filme de Walter Salles,[1] eu imaginei essa sequência da chegada ao Fórum João Mendes, logo na abertura, como acontece no livro. Começar pelo fim, ou pelo começo do esquecimento, com uma cena tão pungente, seria uma maneira impactante de conquistar logo de cara o espectador.
Imaginei também outras passagens do livro que me pareceram ter nascido para ser filmadas. Cenas de cinema à espera de um diretor. Falo a seguir um pouco delas. Daqui em diante, o leitor encontrará alguns spoilers pelo caminho, tanto do filme como do livro.
Engenheiro de formação, um dos construtores do Plano Piloto de Brasília, Rubens Paiva se elegeu deputado em 1962, pelo partido de Getúlio Vargas, o PTB. Seu curto mandato foi marcado pela atuação de destaque na chamada CPI do Ibad/Ipes. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática, de 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, de 1961, criados no contexto da Guerra Fria, foram duas entidades financiadas por empresários (brasileiros e americanos) e pelo governo dos Estados Unidos para atuar na propaganda anticomunista e promover a desestabilização do governo de João Goulart.
O livro pioneiro e hoje clássico do cientista político René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado, um catatau de quase oitocentas páginas publicado em 1981, trata justamente da participação dos empresários reunidos em torno do Ibad e do Ipes na conspiração que levaria ao golpe militar.
O envolvimento dos institutos, sobretudo do Ibad, no financiamento de candidatos de direita nas eleições de 1962 levou à abertura da CPI em 1963. A descoberta de doações ilegais, boa parte delas provenientes dos Estados Unidos, culminou com a extinção do Ibad em dezembro daquele ano. Vice-presidente da Comissão de Inquérito, Rubens Paiva ficaria marcado pelos militares. Sua cassação se deu na primeira leva de políticos perseguidos, junto com mais quarenta deputados, no dia 10 de abril de 1964, um dia depois da publicação do Ato Institucional nº 1.
No dia 1º de abril, ainda investido do mandato, Paiva fez um discurso na Rádio Nacional conclamando a população a resistir ao golpe. Sua fala é destemida e dá a dimensão do que estava em jogo. Cito um trecho:
Julgamos indispensável que todo o povo se mobilize tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade, prestigiando a ação reformista do presidente João Goulart, que neste momento está com seu governo empenhado em atender todas as legítimas reivindicações do nosso povo. É indispensável que se processe de uma vez por todas a divisão da riqueza brasileira entre todos os seus habitantes. […] O que se diz, que o governo pretende acabar com o direito de propriedade e estabelecer o confisco de tudo que existe como propriedade privada, é uma grande mentira, uma grande farsa. […] O presidente João Goulart em suas reformas visa tão somente dar ao povo brasileiro uma participação na riqueza deste país. […] É indispensável, entretanto, para isso, que o presidente e o governo contem com toda a mobilização da opinião pública, com todos os trabalhadores, todos os estudantes, os intelectuais e o povo em geral, para que pacífica e ordeiramente digam um não e um basta a esses golpistas que pretendem cada vez mais prestigiar a pequena minoria privilegiada.
Dois dias depois, Eunice conseguiu viajar até Brasília. Temia pela prisão do marido e queria estar perto. Dormiram no apartamento funcional do ainda deputado, esperando pelo pior. Marcelo descreve assim a cena:
Quando foram dormir, ele lhe deu um revólver que ela nem sabia que ele tinha, explicou rapidamente seu funcionamento e pediu que não se desgrudasse dele. Foi a primeira vez que minha mãe segurou uma arma. Passou a noite com o dedo no gatilho. Dormiu com ele no colo. Dormiram cada um com um revólver, numa capital em suspense, atordoada, sem comando, sem governo, cercada.
Rubens Paiva sabia pilotar avião. Nos primeiros dias de abril, enquanto os militares organizavam a bagunça autoritária, ele retirou de Brasília, no teco-teco de um amigo, Waldir Pires e Darcy Ribeiro*, do primeiro escalão do governo deposto. Quando veio a cassação, o próprio Rubens decidiu fugir de Brasília num aviãozinho que chegou a decolar de uma pista de pouso pouco conhecida, feita durante a construção da cidade. No ar, o piloto recebeu a ordem da torre de controle para retornar, caso contrário a aeronave seria abatida por caças. Retornaram, e quando o avião parou na cabeceira da pista, Rubens saiu correndo em zigue-zague em direção ao Fusca que havia lhe levado até lá, sob tiros de soldados:
Ele corria, eles atiraram, balas passaram rente, ele se agachou e rastejou até o carro, aceleraram, fugiram, entraram no setor de embaixadas, ele correu de novo e pulou o muro da Embaixada da Iugoslávia, onde já estava parte de seus amigos cassados […] Eu sempre pedia para o meu pai contar e recontar essa história para meus amigos. Era incrível imaginar um cara meio gordo, sempre de sapato, terno e gravata, com abotoaduras, meio sedentário, num momento cinematográfico, heroico.
Da embaixada, antes de partir para o exílio, onde ficaria só alguns meses antes de voltar para o Brasil, o ex-deputado escreveu uma carta para os cinco filhos. Marcelo a guardou. Dizia o seguinte:
Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.
Recebi suas cartinhas, desenhos etc., fiquei muito satisfeito de ver que os nenês não esqueceram o velho pai. Aqui estou fazendo bastante ginástica, fumando meus charutos e lendo meus jornais. É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e quando foi ser deputado começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar o que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas que queremos vender o Brasil: é mentira! Eles disseram tanta mentira que teve gente que acreditou. Eles se juntaram – o nome deles é gorila – e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom entre eles que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos com o que ele fez.
É possível imaginar a tentação de Murilo Hauser e Heitor Lorega, que acabam de vencer o Prêmio de Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Veneza, para incluir essas passagens, repletas de aventura e heroísmo, na trama de Ainda estou aqui. Nenhuma delas aparece no filme de Walter Salles. Para quem leu o livro, trata-se de uma opção radical. E que parece ter sido muito refletida pelo diretor e sua equipe.
A figura de Rubens Paiva é desinvestida da condição de herói. Quase nada ficamos sabendo de sua trajetória política. O personagem vivido por Selton Mello é sobretudo e quase exclusivamente o pai amoroso e brincalhão, um tipo expansivo e folgazão, que gosta de desfrutar a vida e vê o mundo pela lente do otimismo. Lembra O engenheiro do poema de João Cabral de Melo Neto: A luz, o sol, o ar livre/envolvem o sonho do engenheiro.
Essa figura solar, que encarna o princípio do prazer, tem na esposa, Eunice, o seu contraponto, o princípio de realidade. Ela é uma mulher intelectualizada e discreta, pouco afeita a efusividades e econômica na distribuição de afetos, mas sempre presente. Como resumiu Salles numa entrevista, “Eunice era o fio terra da família.”
A cena inicial do filme a acompanha de perto nadando no mar do Leblon, com o Dois Irmãos ao fundo. Um helicóptero cruza o céu num voo rasante e some. São os militares. O paraíso na água e o inferno no céu se condensam em poucos segundos na mesma imagem. Se tivéssemos que legendá-la, poderíamos apenas perguntar – Onde é aqui?.
Estamos no final de 1970. Boa parte do filme se concentra nas semanas que antecedem e sucedem o desaparecimento de Rubens Paiva, em 20 de janeiro de 1971. É um período particularmente tenso, marcado pelo sequestro do embaixador suíço, Giovanni Bucher, pela Vanguarda Popular Revolucionária, de Carlos Lamarca, no bairro do Flamengo, no dia 7 de dezembro de 1970. Um dos seguranças do embaixador foi assassinado a tiros no local. Seria o último e mais longo sequestro entre os praticados pela luta armada contra autoridades estrangeiras. Depois de muita negociação, Bucher foi solto no dia 16 de janeiro de 1971, em troca da libertação de setenta presos políticos, que foram embarcados para o Chile. Quatro dias depois, Rubens Paiva seria morto sob tortura. Não fazia parte da luta armada, era contra ela, mas integrava silenciosamente uma rede de solidariedade aos perseguidos pelo regime.
Até sua prisão, o que chega ao espectador são fragmentos do ambiente político carregado – uma blitz no Túnel Rebouças, caminhões do Exército cruzando a Delfim Moreira à luz dia, o barulho do helicóptero, a voz de Cid Moreira noticiando o sequestro, sem que ninguém preste muita atenção à tevê ligada na sala.
Já sabemos o que vai acontecer, mas as coisas não acontecem como imaginamos. O filme se desenrola da perspectiva de Eunice, que sente a tensão no ar, mas não sabe exatamente o que está acontecendo. Durante os primeiros 30 minutos, ou um pouco mais, o que se destaca é a crônica familiar, onde, a despeito de tudo, a vida transborda. Tendo a presença incômoda da ditadura como pano de fundo, somos conduzidos para dentro da casa dos Paiva, e as imagens gratuitas de uma rotina movimentada e alegre se sucedem: o cachorro resgatado na areia e incorporado à família, o vôlei de praia, as peladas do filho na rua, o pebolim noturno com o pai, as músicas na vitrola e as danças improvisadas das garotas na sala, as reuniões com os amigos, o sorvete, os drinques, os cigarros, os charutos, as risadas – em meio a tudo, as conversas sobre política, das quais só Rubens e seus amigos homens participavam. Quando ele desaparece, a casa, que vivia aberta e iluminada, se fecha e escurece.
A crônica de época dessa família burguesa e progressista morando de frente para o mar no Brasil da contracultura e do ai-5 nos é mostrada em vários momentos através de filmes caseiros, em super-8, como se fossem registros feitos pelos próprios personagens. São tão realistas na sua precariedade e beleza fugaz que cheguei a desconfiar que pertenciam de fato aos arquivos da família.
Quando não recorreu ao super-8, Walter Salles filmou em película de 35 mm. Não usou câmera digital em nenhum momento. A opção analógica, digamos assim, pelo cinema old style, traduz uma obsessão pela reconstituição minuciosa da casa que ele frequentou quando adolescente – era amigo de Ana Lúcia, a Nalu, interpretada de forma brilhante por Bárbara Luz. “Não quis construir um mundo de personagens, e sim reencontrar aquelas pessoas com quem tive o prazer de conviver nesses anos formativos”, disse ele.
Marcelo Paiva descreveu a sensação que teve ao visitar o set, em depoimento à Folha S.Paulo: “Ao entrar, gelei. Os mesmos móveis, cores, elementos. O mesmo cheiro. A inconfundível umidade entrava pelas frestas. Foram tão detalhistas que tinha uma conta de luz da Light de 1971 no nome da minha mãe.”
A ressurreição da casa que a ditadura havia destruído, casa na qual o cineasta, filho da elite criado numa redoma, havia feito a descoberta do país, ou de um outro mundo, que lhe era próximo e distante ao mesmo tempo, tem uma dimensão catártica, o que é uma das forças dessa obra. O êxito da operação de resgate passa pelo trabalho dos atores que interpretam a família. As filhas mais velhas – Valentina Herszage, no papel de Veroca, e Luiza Kosovski, que faz Eliana – entregam muito ao filme.
A Eunice de Fernanda Torres é um caso à parte. Como as esculturas de Giacometti, ela exprime tudo com quase nada. “Eunice não reage como se espera que uma heroína desse tipo reaja”, disse Fernanda, quando conversamos por Zoom, dias antes de Ainda estou aqui ser escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2025, na categoria de Melhor Filme Internacional. A atriz estava em Nova York para participar de um festival de cinema na cidade. Semanas antes, havia sido aclamada no Festival de Veneza, onde o filme fez sua estreia mundial.
“Eu nunca representei de forma tão realista”, ela comentou, atribuindo a Walter Salles a forma concisa e seca que a personagem foi adquirindo. “O Walter dizia o tempo todo que não podíamos trair a Eunice, transformando a vida dela num melodrama. Minha mãe também fala que a tragédia não permite autopiedade. O filme levou isso a sério, e a Eunice me ensinou muito. Acho que não sou mais a atriz que eu era depois deste filme.”
No país da telenovela, Ainda estou aqui evitou a estereotipia e os exageros dramáticos, mas evitou também certos clichês que costumam aparecer em filmes sobre a ditadura – não há a figura do rebelde romantizado; não há preocupação didática ou empenho militante, em arte quase sempre infantilizantes; não há cenas excruciantes de tortura; não há truculência exacerbada, pelo menos não nos termos que estamos acostumados a ver retratadas no cinema.
Desconfio que vem daí a observação breve e certeira do diretor Kleber Mendonça Filho em sua conta no Instagram: “Muito tem sido dito nas reações ao filme que ele é emocionante, mas eu também o achei aterrorizante, como um filme de terror. Muito bom.” O líder dos agentes da repressão que invadem a casa dos Paiva, Schneider, vivido pelo ótimo Luiz Bertazzo, é um tipo aflitivamente calmo e reflexivo. O terror que sua figura silenciosa concentra e irradia está espraiado ao longo do filme.
Quando a sessão em Veneza terminou, depois de dez minutos de aplausos, Selton Mello disse a alguns colegas, ainda emocionado: “Este filme é o corpo do Rubens.” Instantes mais tarde, também no cinema, Nalu – não a atriz, mas a filha de Eunice e Rubens – desabafou entre os atores: “Estamos vingados!” As duas frases, que se complementam, entraram desde então para o álbum afetivo da equipe do filme.
É difícil não se emocionar com Ainda estou aqui. O filme nos coloca na condição de testemunhas de algo como uma cerimônia fúnebre, ou da celebração de um corpo que está (eu já ia dizendo estava) desaparecido há mais de 53 anos. Poucas vezes as ideias da arte como reparação e do cinema com resgate da memória se materializaram com tanta propriedade entre nós.
É incômodo, ao mesmo tempo, constatar que o filme realiza simbolicamente aquilo que a democracia brasileira não foi capaz de cumprir. É forçoso admitir que o país fracassou. Jamais voltaremos a ver Major Tom. Ele desapareceu no infinito. O Brasil é assim, e não há nada que a gente possa fazer.
O efeito reconfortante, ou a sensação de que enfim a memória de Rubens Paiva está vingada, de que a luta de Eunice valeu a pena, não deve ofuscar a desilusão que inspira a epígrafe do livro de Marcelo. Impossível não lembrar da promessa aos filhos na carta de 1964: “A gente volta para fazer um Brasil muito bonito.”
O filme de Walter Salles termina em 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade, depois de passar dois anos debruçada sobre os crimes da ditadura, entrega seu relatório final. Entre outras tantas medidas, o texto recomendava a revisão da Lei da Anistia, de 1979, por considerá-la “incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional”. Ou seja, aqueles que cometeram “crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia” deveriam ser punidos. Foi o último esforço do país para colocar os torturadores no banco dos réus. Não deu em nada.
Há um estudo muito revelador do sociólogo Fernando Perlatto, da Universidade Federal de Juiz de Fora, sobre a artilharia dos chamados grandes jornais – O Globo, Folha, Estadão – contra a recomendação da Comissão da Verdade. É fácil encontrá-lo na internet. Segundo os jornais, a revisão da lei seria “oportunista”, “revanchismo”, “extrapolação perigosa”. Não haveria razão para “revogar a anistia a favor de um lado, e com isso reabrir um capítulo já encerrado da história”. Isso inclusive iria contra “a tradição brasileira da reconciliação”. São posições conhecidas, mas a leitura cerrada dos editoriais de 2009 a 2014, vista em conjunto, escancara não só uma espécie de concerto conservador, mas a contemporização diante do passado autoritário e um pacto pela impunidade, tudo em nome da… estabilidade democrática.
Conhecemos o resto da história. Em 2015, já havia pessoas nas ruas pedindo a volta dos militares ao poder. No ano seguinte, Jair Bolsonaro sapateou diante de todos os democratas: “Perderam em 64, perderam agora em 2016”, disse, antes de dedicar seu voto a favor do impeachment à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Estava aí, desenhado, o revanchismo. Dois anos depois, esse pária vestia a faixa presidencial.
Voltamos a falar de anistia no país em 2024. Mas não se trata mais de punir os torturadores de antigamente – quem é que se importa com isso? –, e sim de beneficiar os golpistas de agora – com isso muita gente se importa. Venceram ontem, podem vencer de novo em 2026. Ainda estamos aqui. Mas que democracia é essa? O que conseguimos construir, o que queremos esquecer e o que estamos tentando salvar? Onde é aqui?
[1] O cineasta é irmão do fundador da piauí.
* Versão anterior do texto trocou o nome de Darcy Ribeiro por Darcy Passos. O erro foi corrigido.
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