Cristina Peri Rossi: em Evohé, publicado em 1971, ela lidou explicitamente com relações entre mulheres – e causou um escândalo em Montevidéu, tanto entre a direita quanto a esquerda CRÉDITO: DANIEL MORDZINSKI
O longo exílio
A vida e as obras proibidas de Cristina Peri Rossi, ganhadora do Prêmio Cervantes de 2021
Anita Rivera Guerra | Edição 185, Fevereiro 2022
Montevidéu, 4 de outubro de 1972. Cristina Peri Rossi enche uma mala com sua máquina de escrever Remington, cem folhas de papel em branco e um volume de cada um dos seis livros que escreveu até então, incluindo os poemas datilografados de um inédito. São cinco da manhã quando ela e sua companheira fecham a porta do apartamento em que moram e entram no carro do poeta Hugo Achugar, para quem haviam ligado uma hora antes. Peri Rossi não deu maiores explicações e Achugar não esperava nenhuma. Sabia que os telefones de ambos estavam grampeados, e que mais cedo ou mais tarde ele e a esposa também precisariam sair escondidos de casa – e do país – sem saber quando poderiam voltar. Seis horas depois, o transatlântico italiano Giulio Cesare flutuava na direção oposta do porto da capital uruguaia e Peri Rossi fazia, aos 30 anos, a primeira viagem de sua vida. Como bagagem/uma mala cheia de papéis/e de angústia/os papéis/para escrever/a angústia/para viver com ela/companheira amiga, como diz o poema A Viagem, de seu livro Estado de Exílio.
Além de nunca ter saído antes de Montevidéu, a viagem do exílio também foi a primeira vez em que Peri Rossi subiu num barco – talvez a única forma de escapar do naufrágio que sofria seu país. Desde 1967, com a chegada de Jorge Pacheco Areco à Presidência pelo Partido Colorado e a crescente influência das Forças Armadas no governo, a situação política do Uruguai estava cada vez mais crítica. Em maio de 1968, acompanhando o movimento mundial de revolta estudantil e proletária cujo estopim foi em Paris, uma série de manifestações culminou no decreto de estado de sítio por Pacheco Areco em junho. Enquanto isso, o grupo guerrilheiro tupamaros – que tinha como um dos líderes o hoje ex-presidente José “Pepe” Mujica –, em atuação desde a primeira metade da década, ganhava força e realizava diversos ataques pelo país. Peri Rossi, como uma parcela considerável da população uruguaia, simpatizava com o grupo, embora não atuasse na guerrilha. Ainda uma democracia em 1971, o país se preparava para a eleição presidencial, e a esquerda não armada se uniu na grande coalizão chamada de Frente Ampla – na qual Peri Rossi militava, e pela qual Mujica seria eleito em 2009. Era uma tentativa de driblar o sistema bipartidário de até então, em que a disputa era tradicionalmente apenas entre o Partido Colorado e o Partido Nacional. Em meio a acusações de fraude, venceu o candidato do Partido Colorado, Juan María Bordaberry, e a repressão por parte do Estado foi aumentando até culminar na dissolução do Legislativo em 1973. Ao contrário dos vizinhos Brasil, Chile e Argentina, não houve uma tomada de poder à força por parte dos militares, e tampouco uma figura central como foi o general chileno Augusto Pinochet.
Sobre Descripción de un Naufragio, o livro inédito que compunha sua bagagem, Peri Rossi escreve que os poemas são uma “alegoria em versos de uma derrota, de uma ruptura, de uma separação, ou seja, de um exílio, e alegoria, também, de uma sobrevivência”. Um dos poemas, sem título, é diagramado na forma de um barco; a última parte, que seria o casco, diz: p/o/r/q/ue/indolores, afligidos por cruéis tragédias cotidianas/– a sombra daquele faminto que se enforcou na árvore/os gritos dos prisioneiros nas celas sem luz/os lamentos das mães, órfãs de filhos –/a sotavento dos sonhos mais caros impossíveis/lançamos a nau das navegações infinitas/navegamos pelo úmido mar dos sargaços/em rota sem derrota, perecedora,/até o fundo do mar, onde/jaz a sombra dos justos.
No final de 1972, Peri Rossi foi considerada “inominável” pelo governo uruguaio. Qualquer menção ao nome da autora na mídia foi proibida, assim como seus livros. Também perdeu, e nunca conseguiu reaver, sua cátedra de literatura comparada no Instituto de Professores Artigas, um centro de ensino terciário de excelência em Montevidéu – o lugar onde se formara em 1964 e conhecera Achugar, que, depois de ajudá-la, conseguiu fugir para a Venezuela e hoje é professor emérito da Universidade de Miami, nos Estados Unidos. Naquela época, além de ser professora, Peri Rossi já era uma personalidade conhecida nos grupos da esquerda independente na capital uruguaia e colaboradora do jornal comunista El Popular, além de abertamente homossexual.
A chegada de Peri Rossi à Espanha, porém, esteve longe de ser tranquila ou triunfal, e o plano de retornar a seu país natal depois de alguns meses durou pouco tempo. “Quando veio o golpe, me dei conta de que não podia voltar, de que o regresso era uma loucura”, disse certa vez a Parizad Tamara Dejbord, uma estudiosa de sua obra. “Eu me lembrava perfeitamente de que em Montevidéu, que estava cheia de exilados espanhóis, meu vizinho esperava que Franco caísse. Muitos espanhóis viveram quarenta anos no Uruguai e morreram esperando.” Quando Peri Rossi desembarcou na Espanha, o ditador Francisco Franco de fato ainda estava no poder, e quando o governo uruguaio retirou sua cidadania, em 1974, ela teve que fugir para Paris para não ser presa, no que chama de seu “segundo exílio”. Voltou alguns meses depois para Barcelona, casando-se com um amigo militante gay para naturalizar-se espanhola. Só recuperaria a documentação uruguaia – e a possibilidade de retorno – após o fim da ditadura, em 1985. Mesmo assim, nunca voltou a morar na cidade onde nasceu. “Quando caiu a ditadura, me dei conta de que havia vivido catorze anos com nostalgia de Montevidéu – uma nostalgia horrorosa – e agora não tinha vontade de ter nostalgia de Barcelona. Para ter nostalgia, sigo tendo sempre a mesma”, disse certa vez. “Além disso, não se exila porque se quer, se exila porque se tem que salvar a pele, e acho que, dentro dessa insensata geometria que é a vida, um ato involuntário não tem que ser respondido com um ato voluntário como é voltar. Estritamente não se pode voltar porque é um tempo que já não existe.”
No dia 10 de novembro de 2021, quase cinquenta anos após a fuga de Montevidéu, Cristina Peri Rossi estava de cama em seu apartamento no bairro Les Corts, em Barcelona, quando recebeu um telefonema de Miquel Iceta, ministro da Cultura e Esportes da Espanha. Faltavam dois dias para Peri Rossi completar 80 anos, e o médico que tinha ido a sua casa checar um broncoespasmo acabara de sair. Iceta lhe deu a notícia de que fora escolhida como ganhadora do Prêmio Miguel de Cervantes, o mais importante da literatura de língua espanhola, pela totalidade de sua obra – 46 livros, entre poesia, romances, contos e ensaios. A premiação consiste em 125 mil euros, aproximadamente 800 mil reais, galardoados pelo rei da Espanha. Peri Rossi é a sexta mulher a ganhar o prêmio, que conta 46 edições. A uruguaia é considerada por muitos críticos a única mulher do chamado boom latino-americano, ao lado de autores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar – apesar de já ter salientado numa entrevista de 1988 seu pertencimento a uma geração posterior, “marcada pela experiência do exílio”. Peri Rossi é 27 anos mais nova do que Cortázar, por exemplo – o que não os impediu de manter uma longa e intensa amizade até a morte do escritor argentino, com quem compartilhou o amor por dinossauros, caleidoscópios e justiça social, registrada no livro Julio Cortázar y Cris, de 2014.
Pouquíssimo lida no Brasil, com uma só obra traduzida no país (Habitaciones Privadas, de 2012, publicada como Espaços Íntimos pela editora Gradiva em 2017), Peri Rossi é também pouco conhecida quando comparada com os nomes mais famosos do boom. Desde seu primeiro livro, Viviendo (1963), lançado quando contava apenas 22 anos, causou polêmica; se não no meio da crítica literária, que possivelmente só lhe dedicou uma resenha relevante na época (porém muito elogiosa e assinada pelo autor Mario Benedetti), ao menos em seu núcleo familiar. No ensaio Detente, Instante, Eres Tan Bello, de 2016, ela conta que sua mãe se recusou a ler a obra, “temerosa, segundo suas palavras, de saber o que eu pensava e sentia”. Já seu tio materno, em cuja biblioteca Peri Rossi passou a infância e a adolescência, não só não leu o livro como a partir daí deixou de ler de vez. Nas palavras da sobrinha, abandonou os livros “sob o pretexto de que a literatura contemporânea (ou seja, eu) não valia nada”.
A rebeldia da escrita de Peri Rossi estava presente desde os 6 anos, quando anunciou à família que iria ser escritora, em um grande almoço de domingo na casa da avó. “Imediatamente, fez-se um silêncio geral”, ela escreve. “Só se ouvia o tilintar de algum garfo no prato. Por fim, meu tio materno, solteiro, intelectual, funcionário público, grande leitor, amante da música, porém misógino, neurótico e frustrado, exclamou: ‘O que a menina falou?’” A reação do tio desencadeou uma aflição geral dos parentes. “‘O que ela está falando?’, perguntava, incrédulo, um tio-avô. ‘Está louca’, sentenciava minha avó, que sempre me fez sentir como um bicho estranho. ‘Escritora? De onde tirou isso?’, proclamava outro.” A mãe, professora de literatura, foi a única que acreditou, “mas suspirou profundamente”.
Na biblioteca do tio, modesta mas bastante completa para uma família fora da elite intelectual montevideana – ele era um funcionário público de baixo escalão; o pai de Peri Rossi, alcoólatra e violento, trabalhava como operário numa fábrica têxtil –, ela descobriu a quase total ausência de autoras mulheres nas estantes. Havia três: a grega antiga Safo de Lesbos, Virginia Woolf, inglesa, e a argentina Alfonsina Storni. O tio perguntou-lhe um dia se ela sabia como as autoras tinham morrido; a menina respondeu que sim, que as três tinham se suicidado. “Viu? As mulheres não escrevem, e quando escrevem, se suicidam”, disse. Peri Rossi se viu num impasse, mas logo decidiu: “Ia ser escritora, e a coisa do suicídio ficaria para depois.” Quando se assumiu lésbica, ainda adolescente, viu que suas referências eram ainda mais estritas. “Bem, eu disse: somos três: minha namorada, Safo e eu. Como não tenho nenhum problema com as minorias, não me pareceu de todo ruim esse triângulo”, disse em entrevista ao jornal argentino Página 12, em 2009. Depois da adolescência, já aos 25 anos, uma visita desavisada, ao entrar na casa da escritora, se depararia com a frase “Eu não tenho preconceito contra os heterossexuais, nem os discrimino”.
Foi para conseguir livros de Peri Rossi que eu saí de Buenos Aires, onde estava fazendo pesquisa, para passar alguns dias do outro lado do Rio da Prata. Era maio de 2019, e depois de três anos me debruçando sobre sua obra, ainda não tinha conseguido acesso a quase nenhum dos livros anteriores à viagem do exílio, que foram proibidos e recolhidos pelos militares. Por isso mesmo não sabia se viria a encontrá-los, mesmo em Montevidéu. Tentativas preliminares de procurar as publicações em sites de venda online não geraram nenhum resultado. O plano era um tanto ingênuo: caminhar pela cidade, sozinha, entrando em todo sebo que eu cruzasse e perguntando sobre os livros. Para a minha surpresa – e a dos livreiros uruguaios, que achavam bastante curioso o meu interesse por Peri Rossi – encontrei primeiras edições de Los Museos Abandonados e El Libro de Mis Primos, respectivamente seu segundo e terceiro livros, ambos publicados em 1969. Uma das primeiras autoras a explorar a temática da repressão que tomava a América Latina nas décadas de 1960 e 1970, já nas duas obras Peri Rossi fazia referências explícitas à guerrilha urbana e à violência e perseguição contra militantes da esquerda por parte do Estado uruguaio.
Eu tinha descoberto Peri Rossi ao procurar, como ela, referências lésbicas na poesia, e quando a balsa em que eu estava embarcada entrou no porto de Montevidéu, a sensação que eu tinha era de que o Brasil, meu país, também estava naufragando. O Uruguai era, então, um dos poucos países da América Latina que resistiam ao avanço da onda conservadora – isso até Luis Alberto Lacalle Pou, o candidato do Partido Nacional, de direita, vencer a eleição em novembro daquele mesmo ano. No Brasil, Jair Bolsonaro estava em seus primeiros meses de governo e a atmosfera nos meus círculos sociais e profissionais era de medo e revolta. O projeto de extermínio de pessoas não brancas e/ou LGBTQIA+ não só já era evidente como relatos de casos de agressão física ou verbal, que eu mesma vivi poucas semanas antes do segundo turno em 2018, tinham aumentado sensivelmente. Os ataques às universidades federais e a órgãos de fomento à pesquisa como a Capes e o CNPq também já estavam em andamento – devo a esta última instituição boa parte da pesquisa acadêmica sobre Peri Rossi que resultou na minha dissertação de mestrado, Nostalgia de Infinito e a Poética do Impossível em Alejandra Pizarnik e Cristina Peri Rossi, defendida na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2020.
A primeira edição de Los Museos Abandonados, que encontrei no sebo de Montevidéu, é dedicada “Aos guerrilheiros. A seus heróis inominados. A seus mártires. A seus mortos. Ao Homem Novo que nasce deles. Ainda que essa seja, definitivamente, a mais desajeitada homenagem que se lhes possa fazer”. O livro, composto de quatro contos, ganhou em 1968 o prêmio de prosa de autores com menos de 30 anos da Arca Editora, com júri integrado por Eduardo Galeano e Ángel Rama – que depois apelidaria Peri Rossi de “la Rimbaudcita”, em referência ao poeta simbolista francês Arthur Rimbaud. Já em El Libro de Mis Primos, o personagem Federico é um adolescente de família burguesa que foge de casa para se juntar à guerrilha. O livro é escrito a partir da perspectiva de uma criança chamada Oliverio e seus primos; Federico é o mais velho e o preferido do menino, que fica desolado quando descobre que este foi para as guerrilhas sem levá-lo: “Eu não sei pra onde o Federico foi, mas estava magoado quando amanheceu e me dei conta de que tinha ido sem mim, sem me levar com ele, me deixando na casa cheia de pássaros e de galinhas e das tias que estão cada vez mais iguais aos pássaros e de noite me dão medo.” O capítulo tem como epígrafe a passagem “a gente cresce sempre, sem saber para onde”, do conto Nenhum, Nenhuma, de Guimarães Rosa.
Como no conto roseano, a história se passa numa enorme casa rodeada por um jardim que parece suspensa no tempo e no espaço, e também transita na fina linha entre memória, sonho e realidade. “Então, o fato se dissolve. As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um grande sono”, escreve Rosa. Tanto Oliverio quanto o “menino” de Nenhum, Nenhuma estão imersos nas fantasias e alegrias da infância ao mesmo tempo que na descoberta do mundo e suas angústias. E, no meio disso, fantasias e descobertas da – e na – linguagem. Há também, inevitavelmente, paralelos com a história familiar de Peri Rossi e sua própria infância, sobre as quais a autora se debruça em seu último lançamento, o romance autobiográfico La Insumisa (2020). Nele, Peri Rossi narra que a avó morava em uma casa com muitos quartos e um extenso jardim onde ela passava os dias, construída por seus bisavós, imigrantes genoveses, que tiveram catorze filhos ao longo de quinze anos. “O fundo da casa da minha avó era grande como o Paraíso que falavam na igreja, e como o Paraíso que falavam na igreja, estava povoado de animais diversos, em estado selvagem, que fugiam dos humanos e levavam uma vida solitária e perigosa.”
Ao fim de El Libro de Mis Primos, Oliverio, muito incomodado com o que o resto da família diz sobre Federico após a fuga, começa uma revolução dos primos contra os adultos com uma pedra que magicamente voa pela casa enquanto as crianças brincam de “soldados e guerrilheiros”, destruindo-a e matando os parentes mais velhos. Federico e seu grupo, por sua vez, conseguem invadir a cidade, numa página final que também ecoa Rosa: “Na noite calma, branca, mansa, entramos na cidade como homens de paz, mas protegendo-nos nas sombras que permitem os parapeitos das casas e as claraboias. Noite de verão, noite calma. Nem às crianças se ouve chorar, essas crianças que sempre choram ao longe nas noites de verão. Cada um sentiu sua nostalgia, sua nostalgia de coisas e de casas. […] e Rafael se aproxima, companheiro, às ordens, estamos prontos, e Rafael sorri, como nunca, na noite branca de cartolina noite branca claranoite contente põe seu braço sobre meu ombro sorri. É a hora. CHEGAMOS.”
Peri Rossi afirmou certa vez que esse foi o primeiro livro uruguaio que trabalhava a temática dos grupos de guerrilha. Sendo essa informação exata ou não, é certo que seu trabalho estava não só a par dos feitos e desejos da juventude revolucionária, mas apontava novas direções, políticas e estéticas para a literatura uruguaia. Na própria forma do livro, que não apenas alterna poesia e prosa como as fusiona, de modo que se torna impossível definir o limite entre uma e outra, é explícito o movimento desafiador às normas de gênero. Um desafio que se reflete também no sentido do gênero enquanto construção social – presente em sua obra desde as primeiras publicações. Mas se as obras desse período carregam um tom esperançoso em relação ao futuro, jogando com a possibilidade palpável de uma mudança radical no destino do país, o crescente autoritarismo e a repressão por parte do Estado uruguaio logo frearam as expectativas de Peri Rossi. A epígrafe de Indicios Pánicos, de 1970, é uma fala de Mussolini, cuja frase final, assustadoramente contemporânea, diz: “Em certo sentido, pode-se dizer que o policial precedeu, na história, o professor.”
Em 1971, Peri Rossi publicou Evohé, seu primeiro livro de poesia e o último antes do exílio, altamente erótico e lidando explicitamente com relações entre mulheres. Evohé foi um escândalo em Montevidéu, tanto entre a direita quanto a esquerda; também foi um marco importantíssimo em sua vida e obra. Embora a relação entre corpo e palavra, linguagem e erotismo já estivesse presente nos trabalhos anteriores, aqui toma uma forma que Peri Rossi segue por toda a vida. Nomeado em referência aos gritos de êxtase das sacerdotisas do deus Baco, Evohé é uma literatura movida pelo desejo, em todas as suas facetas: a angústia de ser um corpo só no mundo, o êxtase dos encontros, a impossibilidade de fundir-se com o ser amado, ou com a palavra. Nele, como em toda sua obra, linguagem e o Outro se confundem, numa disputa de gozo e sofrimento extremamente angustiante e ainda assim necessária, uma experiência de comunhão e ruptura com o que há de externo ao sujeito: Silêncio./Quando ela abre suas pernas/que todo mundo se cale./Que ninguém murmure/nem me venha/com contos nem poesias/nem histórias de catástrofes/que não há enxame melhor/que seus pelos/nem abertura maior que a de suas pernas/nem abóbada que eu vislumbre com mais respeito/nem selva tão fragrante quanto seu púbis/nem torres e catedrais mais seguras./Orais: ela abriu suas pernas./Todo mundo ajoelhado.
Se Peri Rossi deixou o Uruguai como uma escritora de renome e fazendo parte ativa da vida intelectual de Montevidéu, ao desembarcar em Barcelona era uma desconhecida. “Tenho que começar tudo de novo”, concluiu, e para ela isso queria dizer ganhar prêmios. Assim o fez, acumulando dezenove ao longo de 59 anos de carreira. Mas até hoje parece sentir o peso do exílio, e um descompasso com o mundo à sua volta que vai além de uma questão territorial e se torna mesmo ontológica. Em carta a Cortázar de 17 de outubro de 1983, narra um sonho em que estava no hospital, prestes a ser operada, e o médico informa o diagnóstico: “Carece de capacidade de identificar-se.” E, ao mesmo tempo, o movimento de exilar-se, de não se identificar, se torna indispensável para o trabalho do escritor. Essa é uma das lições que Miguel de Cervantes – o autor, não o prêmio – parece nos dar em Dom Quixote de la Mancha, com o fidalgo que leu livros de cavalaria até que “se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo”. O “eu”, na literatura, são muitos, e tanto ler quanto escrever implicam sair um pouco de si, pelo menos por um tempo. Peri Rossi, por sua vez, também nos deixa muitas lições, e em Detente, Instante, Eres Tan Bello faz uma espécie de dedicatória ao tio: “Às vezes as mulheres escrevem, e, apesar disso, não se suicidam.”
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